Prédica: 1 Coríntios 10.16-17
Leituras:
Autoria: Scheila Janke
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 06/04/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Comunhão em Cristo – comunhão entre as pessoas
1. Introdução
Nas celebrações de Quinta-Feira Santa, a Ceia é central. Nesse dia, recordamos sua instituição e a celebramos conforme a ordem de Cristo fazei isto em memória de mim (1Co 11.24, 25). Neste sentido, o texto indicado para a prédica se tornará bastante palpável na celebração da Ceia que ocorrerá em seguida.
Tanto o texto de Êxodo 24.1-11 quanto o de Mateus 26.36-56, indicados como leituras, fazem referência ao sangue. No caso de Êxodo, o sangue dos sacrifícios oferecidos ao Senhor é aspergido sobre o povo, simbolizando a aliança de Deus com o povo. Apesar de o texto de 1 Coríntios 10.16-17 não fazer referência à aliança, tanto os evangelhos quanto 1 Coríntios 11 falam da nova aliança no sangue de Cristo. Já o texto de Mateus lembra o cálice amargo, ou seja, o sacrifício que Cristo está prestes a oferecer ao derramar o seu sangue para cumprir a vontade do Pai. Com isso é selada a nova aliança. A celebração da Ceia nos torna partícipes da nova aliança e nos une em comunhão no corpo e sangue de Cristo.
2. Exegese
O contexto maior no qual o texto de 1 Coríntios 10.16-17 está inserido (1Co 8.1 – 11.1) trata do impasse causado pelo consumo de carne que originalmente havia sido sacrificada a ídolos conforme os rituais pagãos no mundo gentílico. Importante destacar que os cristãos e as cristãs a quem Paulo se dirige perfaziam uma minoria nesse universo majoritariamente pagão. Muitos deles, convertidos do paganismo, não viam problema no consumo de carne antes sacrificada a ídolos.
Paulo, no entanto, fala da importância de pessoas cristãs se afastarem da idolatria. E faz isso lembrando o exemplo da história do povo de Israel, que em diferentes momentos havia se afastado de Deus e praticado a idolatria, sofrendo, assim, as consequências. A experiência do povo de Israel servia como advertência às comunidades.
Em diferentes estudos percebeu-se uma inversão na ordem costumeira ao se abordar a Ceia. O texto de 1 Coríntios 10.16-17 fala primeiramente da comunhão do sangue, ao invés da comunhão do corpo, como nos demais textos que abordam a Ceia, inclusive o próprio Paulo quando trata da instituição da Ceia (1Co 11.23ss). É possível que aqui o apóstolo queira ressaltar o derramamento do sangue de Cristo, já que o cálice tinha, nas cerimônias de sacrifício pagãs, uma importância significativa, enquanto o pão era considerado insignificante nesses rituais. Nesse sentido, Paulo estaria colocando ênfase na comunhão no sangue
justamente dentro do contexto da controvérsia da carne sacrificada a ídolos (Morris, 1992, p. 117). No entanto, provavelmente as duas formas chegaram a ser usadas: 1. em alguns casos primeiramente o cálice era distribuído e depois o pão (o texto de Lc 22.14 parece sugerir isso); 2. em outros, aparentemente em sua maioria, primeiramente o pão era partido e em seguida distribuído o cálice (Champlin, 1995, p. 156). De qualquer forma, a ordem dos elementos aparentemente nunca diminuiu a importância do sacramento, principalmente se pensarmos numa celebração no contexto de ágape.
O cálice é abençoado antes de ser distribuído. Isso indica uma palavra de oração proferida sobre esse elemento, que era separado, ou seja, consagrado para um uso santo. Esse era um hábito litúrgico herdado dos judeus, que proferiam uma oração de ação de graças antes das refeições. Os cristãos dão continuidade a essa prática, adaptando-a.
O termo koinonia (comunhão), por sua vez, refere-se à participação que a pessoa comungante tem em Cristo. Ou seja, ao participar da Ceia, a pessoa tem participação em Cristo, recebe a Cristo. Não se trata aqui, em primeiro lugar, de uma associação com outras pessoas, mas da participação em algo de que essas outras pessoas também participam. Nesse sentido, a comunhão com Cristo é a origem da comunhão entre as pessoas comungantes. Cristo é, por assim dizer, a ligação e o eixo central do qual deriva a comunhão com outras pessoas.
Na Ceia, participamos de tudo quanto Cristo é, juntamente com as demais pessoas que dela comungam (Champlin, 1995, p. 156). O sangue de Cristo (no sangue está a vida, conforme Lv 17.11) é a referência por excelência à morte expiatória de Cristo por nós. Ao comungarmos da Ceia, participamos em tudo que foi adquirido por Cristo quando ele derramou seu sangue na cruz para nos salvar.
O v. 17, por sua vez, acentua a unidade do corpo. Nas celebrações da Ceia usava-se um pão único que era partido em vários fragmentos. Mas, apesar da partilha do pão em vários pedaços, o pão continuava sendo um único pão, assim como as pessoas que comungam da Ceia, apesar de serem muitas, formavam um só corpo. Uma versão siríaca desse texto bíblico inclusive traduz essa passagem como: assim como o pão é um, assim também somos um só corpo (Champlin, 1995, p. 157). Em Cristo, as pessoas que comungam da Ceia formam uma unidade, um corpo, o corpo de Cristo. E a participação das pessoas comungantes no corpo e no sangue de Cristo garante a unidade entre elas.
E é justamente essa unidade em Cristo que não permite uma unidade na adoração de outra coisa, ou seja, a idolatria. É nesse sentido que todos os vestígios de idolatria precisavam ser eliminados da comunidade cristã, incluindo a carne sacrificada a ídolos pagãos. Pois a participação em Cristo não permite uma participação em outra forma de adoração.
3. Meditação
O culto de Quinta-Feira Santa sempre é uma boa oportunidade para uma pregação sobre a Ceia, até porque reina bastante desconhecimento por parte dos membros das comunidades sobre a importância desse sacramento. Na prática, muitas pessoas, ainda que se confessem luteranas, têm uma compreensão reformada da Ceia, ou seja, entendem que pão e vinho apenas “simbolizam” corpo e sangue de Cristo. E nós, como ministros e ministras e como igreja evangélica luterana, somos responsáveis por possíveis compreensões equivocadas, já que um assunto tão essencial para a nossa fé cristã e para nossa confessionalidade é tão pouco abordado.
Obviamente que a temática da presença real de Cristo na Ceia, como defende Lutero (o pão é o corpo e o vinho é o sangue de Cristo, conforme constam nas palavras de instituição), não é tratada no texto bíblico em questão. Mas, partindo de uma realidade diferente, o apóstolo Paulo aqui aborda a importância de uma compreensão clara a respeito da Ceia diante das dúvidas bastante concretas das pessoas de sua comunidade. E essa deveria ser a nossa preocupação em relação às dúvidas que as pessoas manifestam sobre a Ceia, seu significado e seu proveito.
A pregação do texto bíblico em questão se torna ainda mais relevante por ele perfazer o momento litúrgico da Fração dentro da Liturgia da Eucaristia. Ou seja, nós repetimos essas palavras a cada celebração da Ceia. Nada mais justo do que explicar para a comunidade o que de fato elas significam.
Na Ceia, nós temos comunhão com Cristo. Lutero inclusive falava da troca alegre, referindo-se ao fato de que, na Ceia, Cristo assume sobre si nosso pecado, nossa culpa, nossas injustiças e, em troca, nos concede o perdão, a salvação e a vida eterna, obtidas por meio do sacrifício (o derramamento do seu sangue) na cruz por nós. A partir dessa comunhão com Cristo, nós também temos comunhão com as pessoas comungantes. Nossa dor, nosso sofrimento, nossa angústia e nossos problemas se tornam delas. E a dor, o sofrimento, a angústia e os problemas delas se tornam nossos. Nesse sentido, a participação na Ceia não permite que continuemos indiferentes à dor que há no mundo. Nós participamos mutuamente das nossas “cruzes”.
Isso nos leva a refletir sobre como a nossa comunhão é fraca. As pessoas comungam da Ceia, mas não querem saber dos problemas e da dor que há no mundo. Pelo menos não de forma ativa, no sentido de engajamento para sua diminuição. Pouco importa se há pobreza no mundo, não sendo nós as pessoas atingidas ou alguém conhecido, não faz mal. Nem a noticiários as pessoas querem assistir mais, pois é melhor nem ficar sabendo de tanta desgraça. Porque conhecimento compromete; desconhecimento, por sua vez, possibilita uma fuga da realidade.
Mas no corpo de Cristo não pode ser assim. Nós participamos juntos de Cristo. E Cristo não foi indiferente à dor das pessoas. Não mandou pessoas embora com fome depois de suas pregações; não fugiu das multidões que, desesperadas, pediam ajuda para alguém doente; e não aceitou ficar no monte da transfiguração, longe dos problemas das pessoas. Cristo se envolveu. Ele conheceu a miséria das pessoas, desceu até elas e deu a vida por elas.
Na Ceia, participamos de tudo que Cristo fez por nós. E participamos disso com as pessoas que dela comungam conosco. Não se celebra a Ceia de forma privada. Ela é e sempre será comunitária, porque pressupõe comunhão. Nós somos um só pão, um só corpo. Alegramo-nos e também sofremos juntos. Esse aspecto da comunhão seria, a nosso ver, um importante destaque para a prédica e o principal ponto de intersecção entre a época na qual o texto foi escrito e nossos dias.
A Ceia não é rito, nem mágica, nem tradição. Ela é comunhão física, concreta, presente, ativa e engajada. Não podemos espiritualizar a Ceia, como se ela tratasse de um mistério que acontece apenas no céu e de forma abstrata. Deus vem a nós na concretude dos elementos: nós ouvimos, vemos, pegamos, cheiramos e saboreamos. A comunhão com Cristo é tão intensa que envolve até mesmo o nosso corpo e os nossos sentidos. Sendo assim, a nossa comunhão uns com os outros não pode ser apenas de palavras vazias. Ela precisa envolver todo o nosso ser.
Uma comunhão plena com Cristo e entre as pessoas também concentraria nossos esforços na unidade e na solidariedade, protegendo-nos do perigo da idolatria a nós mesmos, aos falsos deuses – bens, moda, dinheiro, fama –, às disputas por poder que produzem tantas guerras e desigualdade e ao uso indevido da criação de Deus, que tem produzido tanto sofrimento na forma de catástrofes naturais e pandemias. Afinal, não é possível beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios (1Co 10.21).
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Sugiro abordar as consequências da falta de comunhão entre as pessoas: guerras, refugiados, violência no campo, na cidade e dentro do que deveria ser um lar, pobreza, fome, solidão, depressão, desigualdade social e desemprego. E pedir perdão pela falta de engajamento pela paz, pela segurança, pela reconciliação, pela falta de disponibilidade em repartir, pela indiferença com as pessoas.
Kyrie: Pelas dores deste mundo. Nas comunidades que dispõem de recursos para projeção de imagens, sugiro projetar as situações de dor no mundo durante o hino.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Candeia, 1995. v. IV.
LUTERO, Martinho. Um sermão sobre o venerabilíssimo Sacramento do santo e verdadeiro corpo de Cristo e sobre as irmandades [1519]. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2004. v. 1, p. 425-444.
MORRIS, Leon. 1Coríntios. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1992.
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