Ide e servi ao Senhor com alegria!
A Organização Mundial da Saúde, bem como outros órgãos competentes, definiu, em 2011, que a saúde humana já não poderia mais ser escrita, entendida e vivida isoladamente de um ambiente saudável, onde animais, humanos e não humanos convivem, nascem, crescem, se reproduzem, produzem diversas fontes de alimentação, sobrevivência e convivência, e morrem.
Este termo – Saúde Única –, tem sua gênese em Hipócrates no século V a.C, o famoso pai da medicina, que defendeu que a Saúde Pública estava relacionada a um ambiente saudável. Adiante, no século XIX, tivemos a colaboração de um médico alemão chamado Rudolf Virchow, que afirmou que “entre a medicina animal e a medicina humana não existem linhas divisórias e nem devem existir”. Já na pós-modernidade, Calvin Schwabe concebeu o termo Medicina Única. A evolução do termo para Saúde Única ocorreu no século XXI, mais precisamente em 2011.
Martinho Lutero, nosso reformador, ao conviver diretamente com a mudança na economia alemã em seu tempo, presenciou que agricultores, mineiros e demais trabalhadores já não podiam mais trabalhar de forma independente, fazendo seu livre comércio e exercendo suas profissões com liberdade, agora, sim, nas mãos de bancos e nobreza.
Diante disso, Lutero cria uma nova palavra, do alemão Beruf, que significa, bilateralmente, vocação e profissão. Sim, todo aquele que exerce uma profissão é chamado por Deus para aquilo e o pode fazer em serviço às pessoas e à criação de Deus. Ainda com o reformador protestante, podemos aprender que toda pessoa é chamada a servir, de fato, através do batismo, santo Sacramento que nos envia ao mundo para sermos aqueles e aquelas que cumprem o que está, também, em Mateus 25.35ss.
Além disso, o chamado de Deus para todas as pessoas batizadas é de que sejamos mordomos de sua criação e não donos dela, por isso, devemos cuidar do ambiente em que vivemos e isso tem tudo a ver com Saúde Única.
Ao final de cada Culto, logo após a bênção final, a pessoa celebrante, seguindo a liturgia, nos dirá como forma de envio: ide e servi ao Senhor com alegria.
Poxa vida, em todos os Cultos eu saia da Igreja pensando como eu iria fazer para servir ao Senhor com alegria durante essa próxima semana que se iniciaria, até que chegasse à celebração seguinte e eu ouvisse novamente: ide e servi ao Senhor com alegria. E não foi uma vez que isso aconteceu. Foram várias.
Um dia, após muito tempo de estudo e dificuldades, tornei-me médico veterinário – quando o que de verdade ardia em meu coração, era a vontade de ser Pastor. A cada semestre da graduação em Medicina Veterinária eu pensava: “Senhor, agora só́ faltam mais nove semestres para eu poder ir estudar Teologia”. E por pensamentos como esse, se passaram cinco anos.
Eu não entendia, mas – como costumo falar em minhas palestras, nas quais conto sobre os resgastes em desastres ambientais que participei como voluntário –, foi assistindo um filme chamado O Impossível, que conta a história de uma família que vai passar férias na Tailândia e é surpreendida por um tsunami que destrói tudo, que me senti chamado a ajudar com a minha profissão, em situações como aquelas.
Em 05 de novembro de 2015, o Brasil foi impactado com a notícia do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais. Eu estava apenas no segundo semestre da faculdade. Mal sabia fazer um curativo de forma adequada, mas, sim, pedi afastamento do estágio na Prefeitura de Toledo/PR, município onde moro, para ser voluntário no desastre. Eu não sabia com quem falar, para onde ligar, mas as coisas foram se conduzindo e eu consegui falar por telefone com a médica veterinária responsável pela ação com os animais e combinamos que eu iria para lá trabalhar. Eu não tinha dinheiro algum, mas pagaram passagens aéreas para mim, amigos doaram alguns poucos reais que foram o suficiente para comer e, muito além disso, homens e mulheres de Deus se encarregaram de tudo, para que nada me faltasse. Mal eu sabia que estava simplesmente cumprindo aquele envio litúrgico: ide e servi ao Senhor com alegria.
Em Brumadinho/MG, presenciei na beira da lama pessoas chorando procurando por seus familiares e animais desaparecidos, enquanto buscávamos socorrer e salvar os animais que foram atingidos. Além do ar de luto e destruição, debaixo de nossos olhos estava, novamente, uma situação de injustiça ambiental, até hoje mal resolvida.
No desastre de Presidente Getúlio/SC, onde vidas humanas foram ceifadas em instantes, com dezenas de vítimas e doze delas fatais, membros da nossa igreja, tive a satisfação de ser coordenador do Hospital Veterinário de Campanha, montado ecumenicamente e solidariamente no salão da Igreja Luterana do Brasil (IELB), onde pude atender os dois cães sobreviventes dessa família – que passava por este momento tão doloroso, depois de terem perdido seus queridos familiares e todos seus bens – e pude devolver a eles, com vida, mesmo frágeis, seus animais sobreviventes.
Além disso, pedi demissão de onde eu trabalhava para poder cumprir com o chamado o qual eu havia recebido e, inclusive, passar o Natal longe de minha família para ficar ao lado daqueles e daquelas que tanto precisavam de nosso trabalho.
Em Poconé/MT, pude trabalhar em duas oportunidades. Uma com comunidades ribeirinhas, muitas vezes esquecidas pelos Governos, e levar a eles Saúde Única através de uma ação de castração de seus cães e gatos, numa perspectiva de controle populacional desses animais – que em área de animais silvestres, como a onça pintada, podem ser um fator negativo em relação a doenças transmitidas principalmente entre os felinos. Este trabalho foi realizado em parceria com a Marinha do Brasil e outros órgãos competentes.
Não posso me esquecer de uma senhora muito idosa em sua casa de pau a pique, na beira do Rio Cuiabá, que, ao buscar seu cão para a castração, me perguntou se o Padre iria levar a Comunhão para ela. Lhe disse que naquele momento não, porque só haviam médicos e médicas veterinárias por ali – e eu ainda não tinha me dado conta de que aquilo que estávamos fazendo também era Evangelho.
Ainda no Pantanal, pude ficar por quatorze dias atendendo animais vítimas das queimadas devastadoras que, muito em breve, tornarão uma de nossas maiores riquezas em biodiversidade num deserto.
Recentemente, em Pernambuco, nas cidades de Recife, Jaboatão dos Guararapes e Olinda, trabalhei no resgate, atendimento e realocação de animais atingidos pelas enchentes ocasionadas pelas fortes chuvas que têm devastado o Estado, sendo também o médico veterinário responsável pela condução da operação.
São diversas situações em que vejo que, além de medicina veterinária, tenho levado o Evangelho, muitas vezes sem falar nada, apenas aplicando uma injeção. Foi assim que me senti quando, em uma ligação para um Pastor de uma Igreja Batista do município de Jaboatão dos Guararapes/PE, no bairro Montes Verdes - local onde houve o maior número de óbitos humanos –, conseguimos mobilizar uma grande ação de vacinação, vermifugação, desparasitação e orientações sobre Saúde Única para mais de 200 animais e seus tutores, todos de área atingida.
Às vezes as pessoas podem pensar que simplesmente atender animais não pode ser um meio pelo qual nós, médicos veterinários e médicas veterinárias, possamos servir a Deus. Eu também já achei isso. Para mim, eu só estaria de fato fazendo a vontade de Deus se eu estivesse vestido com um talar, celebrando os Sacramentos e pregando em um púlpito para o povo de Deus.
Descobri através de todas essas situações que, vestindo meu jaleco, calçando luvas, capacetes, botas e por vezes meu uniforme do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD Brasil) – o qual faço parte e hoje mantém ativos mais de 60 pessoas voluntárias de diversas áreas profissionais, justamente para trabalhar por essa causa, a qual chamamos Saúde Única –, eu posso cumprir satisfatoriamente o: ide e servi ao Senhor com alegria.
Eu sou Arthur Gava dos Santos, tenho 25 anos, faço parte da Paróquia Evangélica de Toledo/PR, Sínodo Rio Paraná. Sou médico veterinário desde 2020, clínico geral, membro do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Paraná e Santa Catarina, nos quais faço parte ativamente das Comissões de Gestão de Risco em Desastres que envolvam Animais. Também tive a grata satisfação de estudar Teologia por um semestre em São Bento do Sul/SC.
Entre outros trabalhos voluntários no município de Toledo, desenvolvi programas junto com a Prefeitura do Município, promovendo visitas com animais para pessoas idosas em asilos, palestras sobre saúde pública, programas de castração de animais de pessoas carentes e abandonados, ações de defesa a animais em maus tratos junto com a Polícia Civil e Militar e também em ações com o Ministério Público local.
Atualmente, trabalho com suinocultura, atendendo produtores integrados de uma empresa local, servindo a Deus através da produção de animais sadios para que chegue alimentos de qualidade, na mesa de milhares de pessoas, no Brasil e no mundo.
Arthur Gava dos Santos
gavaveterinario@gmail.com
(Fotos: Acervo pessoal)