Olhemos firmemente, não desviemos os nossos olhos, contamos com o exemplo heróico dos profissionais da Fiocruz, Instituto Butantan e todo contingente do sistema de saúde. Sem eles o país estaria numa situação muito mais dramática, caso não fosse a dedicação e competência de seus profissionais. São elos que enfrentam dificuldades para agir, mas insistem, mesmo tendo pela frente a pandemia. Eles nos protegem e aguardam, de nossa parte, uma resposta coletiva que abrace o enorme desafio que é de todos.
Comunidades que reverenciam a democracia e sociedades civis ativas conseguem maior sucesso na contestação dos desmandos daqueles que detém o poder e são responsáveis pelas políticas públicas. O objetivo é um só: atender as necessidades coletivas. Munidos de capacidade de diálogo, elaboração discursiva e interpelação política dos poderes, os cidadãos se organizam e abrem janelas que colocam a gestão pública à serviço do bem comum.
Os indivíduos dessas comunidades tendem a fugir de comandos autoritários, que visam desorganizá-los. São revigorados pelas ideias de independência e autonomia. Agarram-se aos seus conhecimentos e à dedicação abnegada, muitas vezes heróica, de seus talentos que continuam a prestar serviços, salvar vidas, cuidar e educar. Um esforço descomunal para cumprir sua missão. Profissionais que são lembrados pela própria Bíblia, na Carta de 1 Pedro 4.10:
“Sejam bons administradores dos diferentes dons que receberam de Deus. Que cada um use o seu próprio dom para o bem dos outros.”
Toda sociedade precisa de técnicos e administradores. Sociedades desiguais dependem ainda mais desses profissionais. O Estado deveria funcionar como guardião e coordenador dos meios de vida. A coletividade, a rigor, não sobrevive sem esses recursos. A cidadania se fortalece com uma incessante mobilização. Essa articulação acumula recursos éticos e políticos para “domesticar” as instâncias de poder, forçando-as a trabalhar em seu benefício sem sobrecargas.
As facilidades proporcionadas pela era digital, que nos absorvem e fascinam, potencializaram um tipo de “colonização da vida”, detectada por Jürgen Habermas, pensador da Escola de Frankfurt, numa época em que não existiam ferramentas e compartilhamento de dados nas dimensões que temos hoje. Sua conclusão é que nos entregamos ao que não podemos dispensar. E assim, cedo ou tarde, descobrimos que estamos presos nas malhas das estruturas que nos prestam serviços.
Na falta de uma efetiva liderança e coordenação, os meios que organizam e protegem a vida foram atingidos. Formou-se uma “neblina” que fomenta precariedades e posterga ações urgentes e necessárias.
Promotora dos recursos emocionais e éticos, a cultura está acuada. O sistema educacional vive espremido entre a “guerra cultural” e a “religiosidade postiça”. O sistema de justiça atua descolado da realidade. O sistema político funciona precariamente, refém de demandas rasas, movidas por interesses mesquinhos.
Mais do que nunca, sentimos falta de uma sociedade que “atue sobre si mesma de modo democrático”. (Jürgen Habermas) Como cidadãs, cidadãos, não conseguimos nos reunir em âmbito coletivo buscando forças para uma reação. Falta-nos solidariedade cívica, sobra fragmentação e polarização. “Dissonâncias” paralisam, o palavreado superficial e agressivo, só faz aumentar insegurança e constrangimento. “Ficou mais difícil um agir consciente e articulado sobre o mundo”, constata o professor Marco Aurélio Nogueira.
Diante da situação dramática, que vivemos atualmente, sentimos falta de uma comunidade política organizada em prol de uma causa maior. Faltam-nos lideranças qualificadas e boas estruturas associativas. O processo de precarização é abrangente: institucional, ético, político, econômico, ambiental, existencial e espiritual.
A principal tarefa nos próximos meses e anos será reagir a essa situação, numa resposta articulada, diante da fragilidade “que nos rouba a vida”.
(Texto original: “O caos que nos rouba a vida”, Marco Aurélio Nogueira. Adaptado por Hermann Wille.