Martim Lutero - Da Liberdade Cristã

“Para conhecermos a fundo o que seja um cristão e sabermos em que consiste a liberdade que Cristo para ele adquiriu e ofertou, de que São Paulo tanto escreve, quero frisar estas duas frases:

Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas
e não está sujeito a ninguém.
Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos.

Estas duas frases se encontram claramente em São Paulo I Coríntios 9.19: “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos...” e adiante em Romanos 13.8: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros.”


“Logo, a única obra e única prática dos cristãos deveriam consistir no seguinte: gravar em seu ser a palavra e Cristo, exercitar-se e fortalecer-se sem cessar nesta fé.”


“Os mandamentos nos indicam e ordenam toda classe de boas obras, mas com isso não estão já cumpridos: porque ensinam retamente, mas não auxiliam; instruem acerca do que é preciso fazer, mas não fornecem a força necessária para realizá-lo.(...) aprende o homem, então, a desprezar a sua capacidade e buscar em outra parte auxílio necessário para poder livrar-se da cobiça e cumprir assim o mandamento com ajuda alheia, porque com esforço próprio lhe é impossível.”


“Significa que pela fé a palavra de Deus fará a alma santa, justa, sincera, pacífica, livre e plena de bondade, será, enfim, um verdadeiro filho de Deus, como diz João 1.12: Mas a todos que o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome.

Isto esclarece porque a fé é tão potente e porque não existem boas obras que possam igualar-se a ela. Nenhuma boa obra se atém à palavra divina como a fé, nem há boa obra alguma capaz de morar na alma, unicamente a palavra divina e a fé reinam na alma. Tal como é a palavra, assim se torna a alma à semelhança do ferro que unido ao fogo se torna vermelho incandescente, como o próprio fogo. Vemos assim que a fé é suficiente ao cristão, sem que precise obra alguma para ser justo. De onde se deduz que se não há necessidade de boa obra alguma, é porque também já está desligado de todo mandamento ou lei, e se está desligado disto, será por conseguinte livre.

Eis a liberdade cristã: na fé única que não nos converte em ociosos ou maldosos, antes, em homens que não necessitam obra alguma para obter a justificação e salvação.”


“Quem seria capaz de imaginar a grandeza e a honra de um cristão? Por seu reinado ou soberania, dispõe ele de todas as coisas; por seu sacerdócio, dispõe de Deus, pois Deus obra conforme ao rogo e desejo do cristão(...). Esta honra o cristão recebe só pela fé, jamais pelas obras. Do que foi dito, percebe-se claramente que o cristão é livre de todas as coisas e soberano delas, sem que necessite, portanto, de boa obra alguma para ser justo e salvo. É a fé que dá de tudo em abundância. E se o homem fosse tão insensato de pensar em se tornar justo, livre, salvo ou cristão em virtude das boas obras, perderia sua fé e com ela tudo o mais, tal qual o cão, que trazendo um pedaço de carne na boca, vendo-se refletido na água quis apanhar a carne refletida também. Perdeu, assim, a sua carne e mais a imagem refletida na água.”


“É pois necessário pregar a Cristo de tal forma que da pregação brote em ti e em mim a fé e se mantenha conosco. Uma fé que só nasce e permanece, quando se nos prega a razão porque Cristo veio ao mundo, de que maneira poderemos nos valer dele e de seus benefícios, o que ele nos trouxe e deu. Pregar-se-á, deste modo, quando se interpreta devidamente a liberdade cristã, que recebemos de Cristo; quando se nos diz de que modo somos reis, e sacerdotes, e donos, e senhores de todas as coisas; que Deus se compraz em tudo quanto fazemos e nos atende, como venho afirmando.”


“Ainda que o homem já esteja interiormente(...) bastante justificado e de posse de tudo quanto necessita(...) continua, contudo, na vida corporal e há de governar seu próprio corpo e conviver com seus semelhantes. Aí é que começam as obras.”


“Por conseguinte, o homem obriga seu corpo a não andar ocioso, mas, ao contrário, haverá de realizar muitas obras para submetê-lo. Porém, não são as obras o meio apropriado para aparecer como crente e justo diante de Deus, mas que executarão com puro e livre amor, desinteressadamente, só para agradar a Deus, buscando e olhando, unica e exclusivamente, o que agrada a Deus, à medida que se deseja cumprir sua vontade, o melhor possível.”


“Estas duas sentenças são, por conseguinte, certas:

‘As obras boas e piedosas jamais tornam o homem bom e justo, mas o homem bom e justo realiza obras boas e piedosas.’ ”


“Porque o cristão está desligado de todos os mandamentos e em uso de sua liberdade, tudo quanto faça, o fará voluntária e desinteressadamente, sem buscar nunca seu próprio proveito e sua própria salvação, mas unicamente para agradar a Deus. Pois já estará farto e santificado pela sua fé e graça divina.”


“(...) porque o homem não vive somente com e para seu próprio corpo, mas sim também com os demais homens. Esta é a razão pela qual o homem não pode prescindir das obras no trato com seus semelhantes; antes bem, há de falar e tratar com eles, ainda que ditas obras em nada contribuam para sua própria justificação e salvação. Logo, ao realizar tais obras, terá sua mira posta só em servir e ser útil aos demais, sem pensar em outra coisa que nas necessidades daqueles a cujo serviço deseja colocar-se. Este modo de obrar para os demais é a verdadeira vida do cristão, e a fé atuará com amor e satisfação, como ensina São Paulo aos Gálatas 5.6. (...) Filipenses 2.1ss (...) descreve o apóstolo simples e claramente a vida cristã, uma vida na qual todas as obras atendam ao bem do próximo, já que cada qual possui, com sua fé, tudo quanto para si mesmo precisa e ainda lhe sobram obras e vida suficientes para servir ao próximo com amor desinteressado.”


“O cristão é livre, sim, mas deverá tornar-se de bom grado servo, a fim de ajudar a seu próximo, tratando-o e obrando com ele, como Deus tem feito com ele mesmo por meio de Cristo. E o cristão fará tudo sem esperar recompensa, mas unicamente para agradar a Deus(...). Serei para com meu próximo um cristão, à maneira como Cristo foi comigo, não empreendendo mais que aquilo que meu próximo necesssite, lhe seja proveitoso, salvador; que já possuo todas as coisas em Cristo, pela minha fé.”


Eu te aconselho que, se desejas fazer em legado em benefício da igreja, ou queres orar e jejuar, não o faças pensando em teu próprio proveito, antes, ao contrário, faze-o desinteressadamente, para que os demais o desfrutem e se beneficiem com ele; se assim fizeres, será um verdadeiro cristão. Para que queres reter teus bens e boas obras, que te sobram para cuidar e dominar teu corpo, se já tens bastante com tua fé, na qual Deus te outorgou já todas as coisas? Saberás que os bens de Deus haverão de passar de uns para outros, pertencer a todos, ou seja, cada qual cuidará des eu próximo como de si mesmo.”


“Deduz-se, de tudo isso, que o cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e o próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até Deus e de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor divino(...) Eis aí a liberdade verdadeira, espiritual e cristã, que livra o coração de todo o pecado, mandamento e lei. É a liberdade que supera a toda outra liberdade, tal como os céus superam a terra.”

 

Extratos do livro:
Da Liberdade Cristã
Editora Sinodal

É isto que significa reconhecer Deus de forma apropriada: apreendê-lo não pelo seu poder ou por sua sabedoria, mas pela bondade e pelo amor. Então, a fé e a confiança podem subsistir e, então, a pessoa é verdadeiramente renascida em Deus.
Martim Lutero
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