Ensino - os fantásticos séculos XV e XVI

A passagem do século XV para o século XVI testemunha uma das mais incríveis transformações no cotidiano e na mentalidade das pessoas do mundo ocidental.

A Reforma faz parte dessa verdadeira revolução. Lutero afixou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo em Wittenberg, a 31 de outubro de 1517. Dessa ação – e nem é importante se não foi bem assim – resultou a sua entrada no cenário da história. Entretanto, esse cenário é bem mais amplo e não foi só a ação de Lutero que determinou que a escola e o ensino mudassem radicalmente em bem pouco tempo.

As coisas começaram a mudar, de fato, bem antes, com um evento no Oriente. Em 1453, os turcos conquistaram a cidade de Constantinopla – hoje, Istambul – fechando o caminho por terra à Índia e à China, onde os europeus buscavam as tão apreciadas especiarias, como o cravo, a canela e a pimenta. A solução era contornar o continente africano e enfrentar o ´Mar Tenebroso´. Portugueses e espanhóis, aproveitando a sua localização privilegiada, se lançaram ao mar. Eles tinham, agora, instrumentos para tornar possível a empreitada: a bússola, o astrolábio e as mais ágeis caravelas. Os reinos de Portugal e Espanha, interessados na expansão, buscaram quem financiasse as viagens.


Foi rápido: em 1488, o português Bartolomeu Dias demonstrou que era possível chegar ao oriente por mar, contornando o extremo africano em um local que ele denominou Cabo das Tormentas, depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança pelo rei D. João II. Em 1492, o genovês Cristóvão Colombo, a serviço do reino de Castela, chegou à América. Em 1498, Vasco da Gama, comandando uma pequena esquadra de quatro navios, organizada por D. Manuel, o Venturoso, chegou a Moçambique, e, em 1500, o português Pedro Álvares Cabral chegava a Porto Seguro, na Bahia. Estava iniciado o processo de globalização.

Esse processo teve mais um impulso fantástico: a invenção do tipo mecânico móvel, por João Gutenberg, que desempenhou papel fundamental no período da Renascença, em especial para a difusão da Reforma e da Revolução Científica, que lançaram as bases para a sociedade moderna baseada no conhecimento e a disseminação da aprendizagem em massa. A primeira impressão de Gutenberg foi a Bíblia, iniciada em 1450 e concluída cinco anos depois, em março de 1455. Estava lançada a Idade Moderna.

As transformações sociais também foram intensas. A sociedade surgida da transição do feudalismo para o capitalismo promoveu modificações nas artes, no pensamento e no conhecimento científico. Enquanto a Igreja continuava considerando heresia os experimentos científicos, um movimento de origem burguesa apoiava e promovia uma cultura laica. Estava, assim, aberta a porta para a ampliação do conhecimento, mediante o ensino. Tinha início o Renascimento.

O papel desempenhado pela Reforma
Na Idade Média o acesso ao conhecimento estava quase que restrito aos monges. Na verdade, coube a eles a preservação do conhecimento clássico, armazenado em suas bibliotecas, e a produção de cópias dos livros, que eram diligentemente copiados à mão sobre pergaminho e, raramente, sobre papel feito de trapos de pano. A celulose somente entrou em cena em 1840.

Nobres tinham acesso à leitura e escrita, porque tinham recursos para pagar tutores com a finalidade de ensinar os filhos. As escolas estavam ligadas a mosteiros ou catedrais e os Professores eram clérigos de ordens menores. É interessante observar que a escola nasceu de cima para baixo. Primeiro a Universidade, depois a escola básica. A metodologia de ensino empregada no período baseava-se na leitura de textos e na exposição de ideias pelos Professores.

Concedendo ao cristão o direito à livre interpretação das Escrituras, tornava-se necessário que ele pudesse ler. A tradução da Bíblia do Latim para o Alemão tinha essa finalidade, mas ainda era necessário que o cristão soubesse ler. Nesse momento, Lutero torna-se o político que advoga pela escola básica para todos os meninos e meninas.

Ao tentar convencer as autoridades municipais da Alemanha, ele ressalta a relação entre o pleno exercício da cidadania e a educação da juventude, percebendo-a como condição para a própria sobrevivência da cidade ou do Estado: […] incumbe às autoridades municipais pôr toda a sua atenção e empenho na juventude. […] A prosperidade da cidade não consiste só em acumular grandes tesouros e construir fortes muralhas e casas bonitas, fabricar muitos canhões e armaduras. De fato, quando há abundância de tudo isso e alguns loucos e insensatos se apoderam de tudo, tanto pior será e tanto maior o prejuízo para toda cidade. Ao contrário, a maior prosperidade, segurança e força de uma cidade consistem em ter muitos cidadãos capazes, sábios, judiciosos, honrados e bem educados, os quais depois poderão acumular, conservar e utilizar devidamente tesouros e toda classe de bens.

Esse é um Lutero que entende a educação como condição para a própria sobrevivência da cidade ou do Estado. Em outro escrito, chega a afirmar: A escola deve dar personalidades à Igreja, personalidades capazes de se fazerem Apóstolos, Evangelistas, Profetas, o que vale dizer Pregadores, Pastores, Governadores, sem falarmos nas demais funções, necessárias ao mundo, quais sejam, entre outras, Ministros de Estado, conselheiros, notários, importantes auxiliares do Governo.

Na concepção de Lutero, portanto, a escola devia servir não só para a cultura básica, mas também para formar uma elite, isto é, de pessoas capazes de assumir as tarefas mais complexas, dando origem ao conceito de utilidade social da educação.

Importante, porém, é que Lutero, mesmo atribuindo a tarefa ao Governo – portanto, aparentemente, defendendo uma escola estatal – caracteriza essa escola com dois elementos adicionais que não permitem que ela seja confundida com a escola estatal que conhecemos hoje: a) a escola que ele tem em mente é uma escola cristã; b) atribui a cada cidadão, pessoalmente, o dever de contribuir para manter essa escola.

Lutero não foi um Pedagogo, mas compreendeu com muita agudeza o enorme potencial da educação. Chegou a escrever um Catecismo, o pequeno, com nítido caráter didático. Entendia que a escola, para os pequenos, devia ser um ambiente alegre e lúdico: Falo por mim mesmo: se eu tivesse filhos e tivesse condições, não deveriam aprender apenas as línguas e a História, mas também deveriam aprender a cantar e estudar Música com toda a Matemática.

Ele compreendeu com muita agudeza o enorme potencial da educação e ele mesmo, se não fosse pregador, disse que queria ter sido Professor. Igreja e escola, portanto, estavam intimamente ligadas na concepção do Reformador: a escola deve estar perto da igreja…, o lar do cidadão perto da escola…, seguem, então, a Prefeitura e o Palácio do Governo”.

O legado luterano para a educação no Brasil
Saltando 300 anos, chegamos a 1824, quando vamos encontrar as primeiras levas de imigrantes, oriundos em grande parte de regiões protestantes da Alemanha. Não eram pessoas com excepcionais conhecimentos. Restringiam-se, em geral, aos rudimentos do ler, escrever e contar, mas traziam consigo dois elementos importantes: os vínculos religiosos e a vivência em um Estado que, já há muito, se preocupara com a educação do povo. Ao aqui chegarem, não encontraram escolas. Havia poucas e distantes das regiões rurais que passaram a ocupar, mas, de imediato, passaram a transmitir, eles próprios, os poucos conhecimentos que possuíam. Cartilhas manuscritas circularam e já em 1828 era impressa a primeira Cartilha em Alemão, em Porto Alegre.

Os professores foram sendo improvisados aqui e ali. Sem preparo, sem apoio, muitos deles, além de lecionar, não podiam descuidar de garantir o seu sustento. Com a chegada dos primeiros Pastores, passou-se a ligar Igreja e escola, funcionando os prédios, em geral, para as duas finalidades.
Se, então, nos perguntamos qual foi a contribuição luterana específica no campo educacional, podemos dizer que, em primeiro lugar, ela reside em uma atitude de vanguarda. Aquele ´um passo à frente´ do seu tempo na percepção das necessidades e das soluções. Em segundo lugar, uma herança mais duradoura: a escola comunitária, escola completamente distinta da escola particular, da escola estatal e da escola paroquial católica. Uma escola que surge de uma comunidade de pessoas se une para, cooperativamente, manter uma orientação educacional definida. Uma escola pública na sua concepção, mas uma escola pública cristã como a queria Lutero. Essa escola marcou todo o sistema educacional do e no Rio Grande do Sul. Se observarmos as redes municipais de muitas localidades, perceberemos a presença dessa mesma escola, tendo como mantenedora o município.

Prof. Dorival Fleck
(licenciado em Letras pela PUC/RS, foi Diretor do Colégio Ipiranga, em Três Passos/RS, Conselheiro do Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul e Diretor Executivo do Departamento de Educação da IECLB)
Fonte: Jornal Evangélico Luterano, 2012 setembro
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