ESTUDO DE TEXTO PARA SEPULTAMENTO
Salmo 39.4- 7, 12s
Marlon R. Fluck
I — Introdução geral
O Salmo 39 tem forma própria daquilo que se classifica como cântico de oração. Aí, parte-se das necessidades concretas para então refletir sobre os caracteres transitórios e enganosos da vida (Kraus, p. 452). Transparece um certo desnorteamento quanto ao sentido da existência humana (Knider, p. 177). O salmista não sabe, de princípio, como administrador aquilo que lê em sua própria experiência e aquilo em que crê: a contradição entre a prosperidade dos impiedosos e a justiça de Deus (Delitzsch, p. 28). Tudo isso é causa de profunda angústia e perplexidade. Misturam-se, em meio a tal situação, sentimentos reprimidos que levarão ao extravasamento de lamento, oração e lágrimas.
Há aspectos do salmo que aproximam-se das reflexões do livro de Eclesiastes (a nulidade e a vaidade como caracteres típicos da vida), bem como do livro de Jó (os questionamentos acerca da prosperidade dos maus).
Os eruditos têm, em geral, entendido esse salmo como sendo a oração de um moribundo (cf. Kraus, p. 455; Craigie, p. 307). Transparece uma consciência reflexiva da idade avançada, sendo que a morte é vista como inevitável (Craigie, p. 307). Aparecem elementos da tradição cúltica de Israel, bem como da tradição de sabedoria, sendo que essa última é mais densa (cf. Kraus, p. 453; Craigie, p. 308).
O salmo, bem como o de número 37, apresenta uma estilização fortemente biográfica, havendo, no entanto, uma substancial diferença de ênfase entre ambos. Enquanto o SI 37 é voltado ao jovem, pondo acento na terra, o SI 39 é uma reflexão de alguém que não tem mais seus olhos postos no aqui e agora, mas sim no devir. Na terra, a vida não lhe concedia um status legal (era um forasteiro). Suas esperanças voltam-se, agora, para além do transitório.
II — Comentários exegéticos
1. v. 4-6 — Depois de expor aquilo que se passava em seu interior, quando reprimiu sentimentos e pensamentos, em virtude da aparente impunidade e vida boa dos descrentes, o salmista passa a revisar seus conceitos sobre a existência. Fala com Deus, visto que reconhece sua incapacidade de conter por mais tempo sua dor. Nesse falar com Javé, o salmista logo vê que é necessário que esse lhe conceda uma nova dimensão axiológica —exatamente aquela que falta aos que não crêem em Javé —, a perspectiva da transitoriedade. Exatamente essa é que é a dimensão relevante na tradição de sabedoria (cf. SI 90.12; 119.84; Jó 14).
Na tentativa de somar os seus dias, chega a um produto irrisório: alguns poucos palmos. O palmo (quatro dedos) era uma das medidas hebréias (cf. Craigie, p. 309). De uma forma metafórica, o salmista testemunha que, quando passou a relacionar-se com as perguntas da vida a partir da perspectiva de Deus, sua existência tomou-se como que um nada desvanescente diante de Deus, o eterno (Delitzsch, p. 29). Dentro da perspectiva mais ampla do referencial oferecido por aquilo que Javé é, suas dificuldades e sofrimentos passam a ser avaliados diferentemente. Os intentos e a própria valoração daquilo que é próprio do homem são reclassificados. Há uma depreciação antropológica: o prazo da minha vida não é nada (v. 5b), todo homem... é pura vaidade (v. 5c, 11 c), uma sombra (v. 6a), como traça (v. 11). Mesmo que haja quem encare essas palavras como um insulto, visto que, se Deus fez o homem à Sua imagem, a atitude do salmista seria deplorável (cf. Oesterley, p. 232), não penso que tal aspecto deva ser tido como essencial, visto que o alvo é muito mais o de reconhecer que está desmascarado como insuficiente tudo aquilo que se limita em sentido apenas à essa vida (uma ilustração neotestamentária pode ser vista em 1 Co 15.19). Evidentemente, essa caminhada levará à avaliação dos tesouros da existência. Nossos tesouros são tudo aquilo em que pomos nossa esperança, o alvo de nossa confiança, o centro, a partir do qual organizamos a nossa vida. (Uma proposta acerca das seis ideias fundamentais que organizam as vidas humanas, pode ser vista em Schumacher, p. 79-85). Poderíamos dizer que o salmista, tendo achado a pérola de grande valor, vendeu tudo que possuía e a comprou (uso Mt 13.45s como ilustração dessa virada existencial-axiológica no todo da vida do salmista). É isso que ele passa agora a explicar.
2. v. — O salmista chega ao ponto decisivo de seu discurso, o que se pode depreender da introdução de VE'ATTA (e agora), termo não constante na tradução de Almeida. Em suma, ele está se perguntando: Em conexão com essa nulidade ou vanidade da vida, que é tão cheia de sofrimento e inquietação, o que eu posso esperar? (Delitzsch, p. 30). Se, por um lado, todo tipo de tesouro torna-se o sentido da vida quando não se está vivendo a partir de Javé, o que traz consigo a ilusão da onipotência do homem, por outro lado, a visão da fragilidade conduz o salmista a ver que o potencial e o significado da existência encontram-se em Javé mesmo. As aspirações fundamentais da sua vida descansam em Javé. A partir desse momento, a desonra e o vexame não procedem mais de seus inimigos, os impiedosos, mas de dentro dele mesmo: suas próprias transgressões (v. 8), o flagelo impingido por Deus em sua vida (v. 10), a repreensão de Deus por sobre a iniqüidade humana (v. 11). Em vez de uma vexação externa há agora uma vexação interna (Craigie, p. 309). Cada um desses vexames experimentados pelo salmista conduziu-o ao silêncio (v. 2 e 9). A contemplação do novo sentido para a vida (a nova esperança) levou-o à análise das incoerências de sua forma de viver e da forma de Deus lidar com as mesmas. Em face à realidade da morte, o todo da vida humana é questionado, e há um lançar-se à única esperança que vá além da morte: Javé (cf. Kraus, p. 456). A esperança do salmista agora encontra-se sobre outro fundamento. Javé é o novo centro renovador do seu ser. Ele tem uma esperança não limitada à transitoriedade. A realidade última é que ilumina, agora, às penúltimas.
3. v. 12s — A oração apresentada nesses versículos denota arrependimento de parte de alguém que reencontrou o seu devido lugar na história.
Lado a lado com a linguagem da oração, até mesmo as lágrimas aparecem aqui como uma prece que é inteligível a Deus, porque, quando as portas da oração parecem fechadas, as portas das lágrimas ainda permanecem abertas.... (Delitzsch, P-31)
Como razão para ser ouvido o salmista aponta o caráter finito de sua vida. O termo traduzido por Almeida por forasteiro (GER) é o designativo daquele estranho que viaja a esmo e que peregrina como um convidado num país que não é sua terra nativa, enquanto que peregrino (TOSHAB), alguém que goza da proteção .das leis; que, sem possuir nenhum título hereditário, está acampado ou morando ali e a quem o assentamento é permitido por indulgência (Delitzsch, p. 31).
Descrevendo-se como forasteiro/estrangeiro e peregrino, o salmista reconhece que não tem direitos sobre a terra —no AT, elemento essencial para a vida — mas sim que a duração de sua permanência está na dependência exclusiva da vontade de Javé. Como tal, pede ele possibilidade para tomar novo alento, a fim de que o tempo que lhe resta, possa ser vivido em SHALOM. O término desse salmo encontra ecos multiformes no livro de Jó (cf. Delitzsch, p. 32).
III — Considerações homiléticas
A partir dos comentários exegéticos, parece evidente que o autor do Salmo 39 aprendeu a vislumbrar sua vida no limite da morte. Como tal, esse salmo é bastante próprio para o momento em que se está diante da morte, essa frequente companheira e, ao mesmo tempo, inimiga da humanidade. A morte é vista, geralmente, como algo natural, o destino de todos, uma das poucas coisas que todos sabemos que certamente nos sobrevirá. No entanto, apesar de sabermos tudo isso, ela é uma realidade muito dura para se viver quando atinge família, amigos,... A partir do salmo abordado, podemos constatar que A MORTE E UM DESAFIO PARA A VIDA. A partir dessa proposição, podemos desdobrar a alocução em algumas reflexões em torno da morte como desafio para a vida. Proponho como ênfases:
1. A morte é desafio para a vida, exatamente porque mostra nossa própria fragilidade (v. 4).
Essa é uma ênfase que temos comentado suficientemente nas colocações acima feitas, sendo que julgamos desnecessário alongar-mo-nos nas asseverações a respeito. Salta aos olhos, no entanto, o fato de que nesse Salmo a nossa fragilidade contrasta grandemente com a grandeza de Javé.
2. A morte é desafio para a vida, porque é sinal que essa passa rapidamente (v. 5s).
A morte vem como ladrão. Isso chama a um estado de alerta para com a vida, a aprender a amá-la e colocá-la a serviço. Percebe-se que o prazo de nossa vida é muito curto para se ficar investindo muito tempo naquilo que não tenha valor permanente. Aqui há uma possibilidade de ilustrar-se a vida como sendo uma vela. As velas são de diversas formas e tamanhos. Nós não sabemos o tamanho de nossa vida. O que importa é que ela esteja sendo queimada a favor do reino de Deus. Há um chamado a valorizar o que temos recebido da parte de Deus: anos de vida concedidos, tempo que tivemos o(a) falecido(a) conosco, família, amigos,... Há um chamado à reconciliação e fraternidade cristã.
3. A morte é desafio para a vida, porque é um chamado a que reavaliemos os valores com que estamos comprometidos (v. 6s).
Muito da inquietação da mulher e do homem modernos e sua superocupação são nada mais do que a tentativa de abafar o vazio existencial que faz parte do dia-a-dia dessas vidas. Essa inquietação manifesta-se na busca incessante por acumulação de capital (tesouros), de formação acadêmica, de fama e de popularidade. Alguns amontoam números na caderneta de poupança, outros amontoam livros, outros, palavras para proclamar suas próprias virtudes. Amontoam... e não sabem quem levará sua acumulação. Jesus disse que onde está o teu tesouro, ali está o teu coração. Qual é a nossa esperança frente à morte? É interessante que, tanto o AT, como o NT, caracterizam o que crê como o que pode ter esperança. Para o crente a esperança não é sepultada junto com o que faleceu: O contato com o amor de Deus que está em Cristo não é interrompido pela morte (Rm 8.38s).
4. A morte é desafio para a vida, porque ela nos desafiou a sermos peregrinos (v. 12s).
Só é cristão aquele que tem sangue de peregrino, o que se dispõe a deixar-se guiar e desinstalar pelo Espírito Santo. Um amigo, que perdeu repentinamente sua esposa, compartilhou-me que a maior lição que aprendera foi: Deus não quer que eu acumule muita bagagem. O falecimento precoce de sua companheira foi um meio dele despertar para um novo estilo de vida: opção pela vida simples como pré-requisito para um serviço mais eficiente a Deus e ao próximo. Isso é postura típica de peregrino.
Tudo isso Deus pretende ensinar-nos em meio ao sofrimento que a proximidade da morte em nós produz. Há espaço, na presença de Deus, para oração, clamor e lágrimas.
Finalizo essas considerações homiléticas citando o amigo mexicano e presidente internacional da Fraternidade Teológica Latino-a-mericana em seu comentário homilético dos Salmos:
Contrastar a oração, o clamor e as lágrimas que emergem do mutismo do justo que tem sabido calar, enquanto Deus fala, e crescer enquanto Deus atua, frente à indiferença, à falta de vergonha e ao endurecimento, que seriam as características do processo do pecado na alma do homem, é mostrar a bondade da graça de Deus manifestada no crescimento do crente que se confia à atuação de Deus em sua vida, não lhe importando se esta atuação é através de perseguições, enfermidades, decepções ou sofrimentos.
Quando, diante da insensatez destruidora no mundo, anunciamos que o Espírito de Deus que, cuida da sua criação, renova a face da terra, provocando o crescimento milagroso pelo poder de suas mãos, e quando, ante a vaidade, declaramos que somente é possível um crescimento normal, quando é dirigido pelas legalidades de Deus, e, por isso, temos de apartar-nos de toda espécie de vaidade, não temos feito mais que adiantar elementos para agora dizer que ê criativo o silêncio quando o justo cala, enquanto Deus fala, porque cresce, enquanto Deus atua.
Deus fala pelos acontecimentos.
O mutismo do justo denota um caráter receptivo que atenta aos seus caminhos para não pecar com sua língua. Saberemos calar, como povo de Deus, distinguindo os sinais dos tempos e orar a tempo com fé, amor e esperança? (Gutiérrez Cortez, p. 120. O grifo é meu.)
IV – Bibliografia
- CRAIGIE, Peter C. Word Biblical Commentary; Psalms 1-50. 2 ed. Waco, Word Books, 1984. v. 19. 367p.
- DELITZSCH, Franz. Biblical Commentary on the Psalms. Grand Rapids, Eerdmans, 1955. v. 2. 420p.
- GUTIÉRREZ CORTEZ, Rolando. El mensaje de los Salmos en nuestro contexto; Salmos 1 al 50. B. Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1978. v. 1. 155p.
- KIDNER, Derek. Salmos 1-72; introdução e comentário aos livros l e II dos Salmos. S. Paulo, Mundo Cristão/Vida Nova, 1980. (Cultura Bíblica 13). 280p.
- KRAUS, Hans-Joachim. Psa-men. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. Neukirchen-VIuyn, Neukirchener Verlag, 1978. v. 15. 584p.
- OESTERLEY, W. O. The Psalms. London, SPCK, 1959. 599p.
- SCHUMACHER; O negócio é ser pequeno. São Paulo, Círculo do livro, 1982.
Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia