O fechamento do mandato de Pastor Sinodal oferece a oportunidade de não só relatar sobre o trabalho empreendido, mas, sobretudo, tecer considerações de caráter avaliativo e prospectivo acerca da atividade sinodal. É ensejo para um olhar panorâmico que não se detém ao detalhe, mas foca, dentro do possível, uma visão de conjunto. Trata-se de uma avaliação da atuação específica no campo pastoral e administrativo do Sínodo nestes anos.
Esta avaliação tem um caráter bastante particular e pessoal. Ela está sempre limitada ao que Deus recolherá e valorará como importante para o florescimento de sua causa no mundo. Nossos esforços e nossa dedicação sempre ficam relativizados ao sim e ao não de Deus. Sujeitos a sua graça e ao seu amor, agimos na esperança de que a nossa ação contribua para que “o seu reino venha” e a “sua vontade seja feita”. Inspiro-me em tantos personagens bíblicos que viveram suas contradições em meio a inúmeras contrariedades. A despeito de tudo contribuíram para que a confissão da experiência da revelação de Deus encontrasse eco entre os seus contemporâneos. Lembro, em especial, do profeta Jonas que oscilante, inseguro e confuso torna-se instrumento para a transformação da realidade humana. Deus não manifesta a sua glória pelos méritos de Jonas, mas pelos deméritos. Deus é vitorioso na fraqueza e não na auto-suficiência de seus servos.
Ao olhar para o período do(s) mandato(s) que se finda(m) posso dizer que foram anos de enorme aprendizagem. Tive o privilégio de acompanhar a vida das comunidades e de seus/suas obreiros/as e suas lideranças. Pude estar presente em momentos de alegria e de dificuldade. Foram anos em que pude colocar a serviço da igreja dons e potencialidades. Foram também anos de descobertas e de afirmação da consciência de limites pessoais. Foram anos em que senti na pele a contradição entre o ser teólogo e o ser pastor, entre o ser intelectual e o ser pastor sinodal, enfim, a tensão entre o pessoal e a função institucional.
Quero dar uma visão panorâmica sobre a realidade sinodal através de citações dos relatórios passados. Experimentamos a primeira etapa da implantação da estrutura sinodal. Vejamos como nos reportamos a ela nos seus primórdios:
“Caminhar juntos/as - Eis o propósito colocado por comunidades/paróquias, obreiros/as, conselho sinodal e pastor sinodal nesta nova estrutura de Igreja. Caminhar juntos/as significa olhar na mesma direção, ter o mesmo propósito, tendo lado a lado pessoas, grupos, movimentos, organizações, instituições com projetos comuns. Não que este propósito não estivesse presente anteriormente. Acontece que agora as expectativas voltam-se menos para a direção central/nacional e focaliza-se mais a realidade local e regional como lugar de articulação da Igreja com vistas ao testemunho e a missão evangélica. Este foco novo exige uma reeducação por parte de lideranças e obreiros/as. Além disso todo este projeto se desenrola tendo como protagonistas os/as obreiros/as não ordenados/as mais conhecidos/as como leigos/as.
A descentralização teve e tem como meta conferir ao povo de Deus, organizado em comunidades, a precedência no testemunho e na missão. Seria, adaptando o ditado dos ecologistas(“pensar globalmente e agir localmente”), pensar no conjunto da Igreja e agir comunitariamente em nível local. A sinodalidade estará garantida quando estiver acontecendo o equilíbrio entre a atuação local e a visão regional/nacional.
Esta novidade não se impõe por decreto. Antes é um novo espírito que marca as relações de poder e as atividades pastorais das comunidades e entre as comunidades. Este novo jeito exige um constante repensar dos papéis que são atribuídos a todos/as neste processo de sinodalização.”
“A construção de uma rede de solidariedade entre comunidades passa pelo conhecimento mútuo de sua atuação e de suas necessidades. Como vamos fazer “pontos com nós” sem que homens, mulheres, jovens e crianças tenham um rosto concreto? Na rede existem ligações/nós(comunidades/grupos) feitas por pessoas que se encontram e se comunicam com outros ”nós”.(Relatório de 1998)
Esta foi, em tese, a carta de intenções assumida pelas comunidades. Ela não deixou de estar presente como horizonte a ser perseguido. No caminhar juntos/as descobrimos até que ponto pudemos ser capazes de concretizar este propósito. Eis a reflexão anos depois:
“Na nova estrutura da IECLB o Sínodo Sudeste seguiu um caminho lento. Privilegiou as estruturas comunitárias supraparoquiais existentes (Uniões Paroquiais), entendendo que o Sínodo não faz o caminho. Sínodo significa caminhada conjunta das comunidades. Quem caminha é o povo de Deus reunido em comunidades. O Sínodo é instância mediadora, articuladora, fomentadora, motivadora e catalisadora da caminhada conjunta daqueles que se colocam sob o guarda-chuva da IECLB”. (Relatório 2002)
“`Fato é que nos cinco anos de existência do Sínodo Sudeste iniciamos muitas atividades que não tiveram uma continuidade satisfatória. O Levantamento Sinodal de 1998, que se propôs a recolher pontos fortes e carentes das comunidades para construir uma rede de apoio mútuo, teve como resultado positivo o fato de Rio Claro/SP assumir ao longo de todos os anos a coordenação do Culto Infantil no Sínodo.”
“Cabe aqui abrir um parêntese sobre as dificuldades que enfrentamos em matéria de motivação e mobilização para atividades sinodais. Percebemos que as distâncias e os custos inibem a participação das pessoas. As pessoas despertadas e motivadas a colocar os seus dons a serviço o fazem antes de tudo na comunidade local. Carecemos de lideranças e cada pessoa deslocada ou retirada para atividades supra-paroquiais, abre lacunas. Por isso faz-se urgente um maior planejamento e uma maior racionalização de eventos supra-paroquiais. A nucleação ( Uniões Paroquais) já existente poderia ser realçada e receber, assim, um outro status.”
“A participação nestes seminários de planejamento ficou aquém do desejável. Por isso a tomada de consciência sobre o problema central que afeta as comunidades não acontece de forma igual. A sintonia só é possível quando há encontro e partilha. A construção de um consenso se dá quando obreiros/as e presbíteros/as se encontram, fazem um diagnóstico e conversam sobre metas e objetivos. Quanto mais os/as presbíteros/as tiverem visão clara acerca dos objetivos futuros, tanto menos as comunidades sofrerão com as trocas de obreiros/as. O envolvimento e comprometimento dos/as presbíteros/as em torno da focalização das ações comunitárias bem como o aprofundamento das motivações que levam a estas ações torna-se fundamental para a saúde comunitária. Em muitos casos são os/as obreiros/as que tem as visões e os/as presbíteros/as, muitas vezes, apenas retificam, ratificam e assumem estes projetos. Quanto mais os presbíteros/as estiverem imbuídos dos sonhos e projetos, a saída de obreiros/as sofrerá menor descontinuidade.” (Relatório de 2003)
A nucleação foi assumida com mais vigor nos últimos anos. Essa idéia estava presente já nos anos 98 e 99, mas não implementada e impulsionada com mais intensidade porque se temia dificuldades no Estado de Minas Gerais. Constatamos, agora, com satisfação, que estes temores eram infundados. Já o planejamento, iniciado de forma entusiasmada em 2000, foi atropelado por fatores alheios a nossa vontade.
O Plano de Ação Missionária da IECLB ( PAMI) teve impacto limitado na articulação sinodal. Do ponto de vista estratégico não elaboramos uma proposta de ação integrada com o estabelecimento de prioridades nos investimentos. Se considerarmos o fato, segundo o PAMI, de que as cidades com população superior a 200.000 habitantes deveriam receber atenção especial, então o Sínodo Sudeste deveria ser a prioridade da IECLB. Falhou a IECLB que não pautou o assunto e falhou igualmente o Sínodo Sudeste que não levou a sério essa perspectiva.
Mesmo assim temos boas intuições no Sínodo Sudeste. No mapa temos focado algumas áreas geográficas importantes que merecem uma atenção especial. O entorno de Belo Horizonte, a Grande São Paulo ( Guarulhos, Zona Oeste, Sudeste/Diadema), Vale do Paraíba ( São José dos Campos/SP e Resende/RJ), São Carlos/SP e Piracicaba/SP, Ribeirão Preto/SP e Franca, Vale do Atibaia/SP.
É bem verdade que carecemos de definições anteriores acerca do que entendemos por missão. Se olharmos para o sentido pautado pelo senso comum, segundo o qual a missão representa o simples aumento de membros para a igreja mediante ações que favorecem a conversão e a adesão de pessoas a determinado credo, podemos dizer que estamos bastante limitados nesta área. Agora, se entendermos a missão com a articulação de toda a ação da igreja que proclama o evangelho pelo anúncio (palavra) e pela vivência (ação) como parte da grande missão de Deus no mundo, então temos que relativizar nossos intentos de crescimento a qualquer custo.
O núcleo de Campinas, que se ocupou mais diretamente com este tema, mostra que todo o processo de crescimento carece destas definições. A experiência carismática fez com que houvesse um incremento no número de membros, mas ela provocou também a saída de muitos membros que viam nesta experiência um distanciamento da identidade luterana.
Se olhamos para os recursos financeiros repassados pelo Orçamento Extraordinário da IECLB ao Sínodo Sudeste, percebemos que alguns são encaminhados para frentes pioneiras e outros para manutenção e/o consolidação do trabalho regular de paróquia. Há neste aspecto também indefinições por parte da IECLB que denominou/a os auxílios e subvenções com a rubrica apoios missionários ou orçamento missionário. Com a nova Coordenaria para Assuntos de Missão haverá uma clareamento maior no futuro. Além disso, a redução maior dos recursos para o orçamento extraordinário da IECLB forçará uma definição das prioridades segundo um planejamento mais estratégico da igreja como um todo.
Os setores de trabalho ainda não conseguiram achar o seu melhor jeito de articulação. Estamos numa oscilação entre a sua organização por núcleos ou organização em rede como vinha acontecendo de forma brilhante com o culto infantil.
As comunidades, no entanto, são a base a partir da qual acontece o testemunho evangélico. Existe uma riqueza, um tesouro precioso presente em seu meio. Destacaria na grande maioria das comunidades uma grande e profunda fidelidade a uma identidade evangélica e luterana nem sempre articulada no discurso. Uma fidelidade que resiste em meio ao pluralismo religioso e em meio ao isolamento e a dispersão (uma minoria em meio aos milhões de pessoas).
“As comunidades são o lado vivo, belo e apaixonante da Igreja. A fé cristã acontece nela e a partir dela. Elas se tornam aquela página de livro por onde passam e desfilam a vida de fé com todas as suas alegrias e dificuldades. Nelas se encontram verdadeiros documentos vivos. Nas comunidades acontece Igreja. Já o Sínodo é aquela “gramática” que não aparece diretamente, mas mesmo assim está presente. Nem sempre está visível, mas representa aquele “regramento” mínimo necessário para que a caminhada comum das comunidades filiadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil possa acontecer. A fé vivida nas e pelas comunidades encontra na estrutura sinodal ( e da igreja como um todo) o apoio para o seu testemunho comum.”( Relatório 2005)
A preocupação em torno do distanciamento do regramento institucional e do consenso teológico-confessional tiveram por parte do Sínodo Sudeste uma enorme dedicação de tempo. Olhemos para algumas reflexões que enfocaram o assunto:
“Temos que reconhecer que não conseguimos ao longo da história acompanhar a contento todas as gerações de tal forma que pudessem ser educadas na fé cristã segundo a confissão luterana. Não conseguimos imprimir um dinâmica participativa que possibilitasse um envolvimento de todos/as os/as batizados/as luteranos/as em nossa Igreja.
Somos uma Igreja centenária no Brasil. (...) Dentro do pluralismo religioso contemporâneo as igrejas de tradição estão sendo desafiadas a superar o mero atendimento por uma proposta inclusiva que dê conta da necessidade das pessoas de externar as razões de sua fé e de sua esperança. Como Igreja de Confissão Luterana temos conseguido dar passos nesta direção. Acontece, no entanto, que os resultados não são tão grandes quanto gostaríamos e, por isso, podemos cair na tentação de adquirir de forma a-crítica kits pastorais de outras denominações ou movimentos e aplicá-los nas nossas comunidades, gerando desconforto, tensões e descontentamentos.
Estamos num momento de articulação das comunidades e paróquias na perspectiva sinodal. Podemos e devemos inovar para conseguir reavivar a vida comunitária. Não necessitamos cair na resignação e no desânimo de que não há alternativas. Somos desafiados a viver a nossa vocação de evangélico-luteranos com toda a seriedade sem abrir mão dos nossos fundamentos teológico-confessionais. Como pastor sinodal tenho afirmado junto a obreiros/as e lideranças que o descuido para com os nossos fundamentos no presente terá como desdobramento um vazio de identidade e de proposta no futuro.”(Relatório de 1999)
“Somos uma Igreja que vem de longe. Temos tradição e história tanto é que podemos dar graças pela herança que recebemos. Agora, esta tradição se confronta com novas situações e novos momentos históricos. Estamos mergulhados numa cultura de massas que invade, a partir dos centros metropolitanos, todos os espaços possíveis e imagináveis. Esta cultura rouba a individualidade na ilusão de a estar promovendo. Ao mesmo tempo que abre um enorme leque de possibilidades, massacra as consciências com valores despersonalizantes. Dificulta a eclosão do dissenso, costurando consensos artificiais. A predominância do assim chamado “pensamento único” oculta os conflitos e as diferenças presentes na sociedade. Na ausência de ideologias claras floresce um cinismo, uma apatia e uma descrença generalizada. As religiões são desaguadouro desta demanda represada por valores claros e insofismáveis.
Somos chamados a manter vivo o cerne do Evangelho sem sucumbir às forças atrozes da sociedade que massacram os seres humanos e destroem a natureza. Somos instados a preservar a imagem de Deus presente em cada ser humano. Somos desafiados a viver e anunciar a proposta de vida e de esperança, presentes no Jesus ressuscitado, num mundo de muita violência e desesperança.
Num mundo cada vez menor, em que muitas fronteiras são quebradas, confrontamo-nos com o pluralismo religioso e a multiplicidade de credos cristãos. Como manter a originalidade, a identidade e a especificidade da confissão de fé neste contexto?
O ecumenismo, como expressão do diálogo entre os cristãos, é um marco deste século que está findando. Já o diálogo inter-religioso apenas engatinha precisamente quando historiadores projetam o próximo século como um século a ser marcado por conflitos bélicos, motivados por motivos religiosos. A razão maior destas previsões ameaçadoras seriam a intolerância e o desrespeito decorrentes das leituras fundamentalistas dos textos sagrados das mais variadas religiões.”
“Muitas atividades, muita energia e esforço e muito tempo tem sido concentrado na administração dos conflitos surgidos em comunidades e/ou entre obreiros advindos justamente porque somos um corpo vivo marcado por diferenças. Vivemos momentos de definições substantivas(clareza doutrinária, ministério, liturgia, etc.) que terão reflexos para a nossa atuação futura. Estas definições darão forma e conteúdo a nossa presença no sudeste e no Brasil. Somos uma minoria, sim, mas uma minoria com presença qualitativa na sociedade. As definições, a serem traduzidas em nossos seminários, cursos e encontros, sinalizam tanto as raízes quanto os frutos da Palavra que Deus nos confiou e diuturnamente mantém.”(Relatório 2000)
¨Um dia vieram, e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram um outro vizinho, que era comunista. Como não era comunista, não me importei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho, que era homossexual. Como não era homossexual, não dei bola. No quarto dia, vieram e levaram um conhecido meu, que era cigano. Como não era cigano, deixei pra lá. No quinto dia, vieram e levaram meu vizinho, que era católico. Como não era católico, não reclamei. No sexto dia, vieram e me levaram. E não havia mais ninguém para reclamar. ¨ - Martin Niemöller
Trago à lembrança estas palavras para dizer que uma crise e um problema no corpo da igreja envolve e diz respeito a todos os seus membros. É suportado e vivenciado por todos. Será que os desvios e os distanciamentos teológico-pastorais tolerados na IECLB ao longo dos anos não se assemelham (ao menos na atitude e não no mérito) à indiferença, à desconsideração e ao descompromisso expressos pelos cristãos da Alemanha no regime nazista? Enquanto não sou atingido, enquanto na minha comunidade as coisas estão sob controle, enquanto..., eu deixo as coisas andarem e acontecerem. Desde que a minha paz não esteja ameaçada, tudo pode rolar em minha volta.
Acontece que a vida social e eclesial é tecida por relações que, mais cedo ou mais tarde, passam, cruzam, se aproximam de mim e da comunidade. A realidade religiosa contemporânea, marcada pelo pluralismo religioso e pela disputa mercadológica, não isenta ninguém. Nenhuma comunidade está imune. Não há tranqüilidade a toda prova. A afirmação da individualidade se constitui em mérito da modernidade e, nestes tempos ditos pós-modernos com suas fragmentações e volubilidades, as pessoas possuem menos laços institucionais e grupais.
Encarnação, mergulho e vivência do evangelho neste contexto significa erigir uma pastoral que afirme e promova a força contra-cultural dos valores evangélicos. Significa reconhecer o valor do ser humano e das criaturas que o cercam, afirmar sua identidade e dignidade a partir da aceitação incondicional por Deus e restaurar as relações interumanas sempre com um esforço incansável de construir comunidade e promover solidariedade.
A nossa herança teológica é tão rica para ser simplesmente pisoteada por propostas fundamentalistas e autoritárias. É tão profunda para ser vilipendiada por interessados em sucesso fácil a partir de fórmulas simplificadoras e massificadoras. Lembro apenas que as massas deixaram Jesus na mão quando ele começou a aprofundar seu discurso e sua prática, chamando para o seguimento e para o carregar da cruz.
Vislumbro a necessidade de aprofundar o significado da herança confessional oriunda da Reforma em meio à massificação religiosa contemporânea. Compreendo as reais necessidades psicossociais presentes nas buscas religiosas, mas não posso admitir a desfiguração da identidade teológico-confessional do corpo institucional que representamos. Podemos ter diferenças entre nós porque toda unanimidade é burra ou cínica. O fundamental, no entanto, é que encontremos um nível de consenso tal que permita a confiança mútua e o respeito recíproco. Saber reconhecer e entender na atuação do outro, diferente de mim, a mesma igreja de confissão luterana – Eis nosso desafio e meta a serem buscados. (Relatório 2001)
“Tivemos sobressaltos e fomos assolados por várias intempéries. As crises comunitárias, as tensões entre lideranças(leigos e obreiros/as), que exigiram uma presença e um acompanhamento por parte do Sínodo, são parte de um processo de mudanças de caráter sócio-cultural( os membros não tem mais uma uniformidade étnica), sócio-econômica( não se limita a setores médios), mudança sócio-política( quebrou-se uma certa uniformidade ideológica) e mudança sócio-religiosa(o pluralismo religioso chegou para ficar). A insegurança e a instabilidade, que este quadro de mudanças provoca, desencadeia posicionamentos apaixonados. A diretoria e o pastor sinodal tiveram que transitar em meio aos conflitos marcados por paixões, convicções, visões e experiências muito diferentes.” (Relatório 2002)
Todos sabem que estivemos no olho do furacão do movimento carismático. Além do processo jurídico-doutrinário, movido contra um obreiro, tivemos a saída de um grupo considerável de membros por causa da sua incompatibilidade teológica com as bases confessionais da IECLB no que concerne à compreensão e prática do batismo.
No dia da Assembléia da Comunidade de Monte Mor em que o seu obreiro e um grupo de membros oficialmente se retirou da IECLB, disse o seguinte:
“A vida nos coloca em situações imprevisíveis, surpreendentes, inesperadas. Isso na esfera pessoal, comunitária e eclesiástica no sentido mais amplo. O normal é que se espere coisas boas. Ninguém gosta de coisas desagradáveis.
A vida nos coloca diante de situações que exigem escolhas. Somos colocados diante de bifurcações, verdadeiras encruzilhadas. Escolher, às vezes/muitas vezes se torna muito difícil. Encruzilhada lembra cruz. Algo pesado difícil de aceitar e assimilar. Nestes momentos de escolha sofremos porque uma escolha pode descontentar, desagradar, fazer sofrer.
Como filhos e filhas de Deus procuramos colocar a nossa vida nas mãos de Deus. Desejamos e confiamos que ele indique a direção certa. Colocamos os caminhos na sua mão. Confiamos que os nossos descaminhos sejam corrigidos por sua graça e misericórdia. Confiamos que Deus transforme o mal em bem. A vida é um aprendizado constante. Uma escola em que a gente não escreve à lápis. Só à caneta que não dá pra apagar. Só Deus apaga nossos garranchos e nossas mal traçadas linhas.
Estamos aqui nesta Assembléia como filhos e filhas de Deus colocados/as numa mesma condição – a condição de que não podemos invocar alguma posição privilegiada diante de Deus. Somos todos/as indistintamete carentes da graça de Deus e humildemente reconhecedores/as da necessidade do perdão de nossas culpas. Como instituição Igreja somos simultaneamente criatura divina e criatura humana. Esta é a nossa condição que nos torna humildes e nos remete sempre para o reconhecimento de culpas e a busca de orientação na palavra de Deus.” (Assembléia Monte Mor 1/10/2005)
Todo esse processo afetou profundamente o Sínodo Sudeste e a IECLB como um todo. No entanto, foram as comunidades do Núcleo de Campinas que sentiram mais o impacto desta saída. A elas eu me dirigi com as seguintes palavras:
“Irmãos e irmãs, deixem-me dizer algo sobre o trauma, o sofrimento causado por rupturas e separações ocorridas ultimamente em algumas comunidades. Separações sempre são traumáticas. Abrem feridas que levam tempo para cicatrizar. No entanto, Deus tem sempre uma proposta nova para momentos novos e para situações novas. No momento da crise muitas vezes não conseguimos visualizar claramente essa proposta nova. Importante é estarmos atentos a ação do Espírito de Deus. O novo pode provocar inseguranças, causar medo. Todo começo e/ou recomeço traz sentimentos desta natureza. O importante é nós nos colocarmos à disposição de Deus para sermos instrumentos de sua missão no mundo. Quem sabe, esta disponibilidade e abertura nos ajude em meio a todos os episódios recentes a realizar uma profunda reflexão acerca do que queremos e de como queremos empreender uma ação de avivamento e reavivamento, de inovação e renovação e dinamização de nossas comunidades.” (Dia da Igreja da UP Campinas - 30-10-2005)
Tensões e conflitos de outra natureza também tiveram lugar em várias comunidades e paróquias. Problemas entre lideranças e obreiros/as e vice-versa bem como dificuldades de relacionamento entre obreiros/as. Muitos problemas, conflitos e tensões puderam ter um caminho de solução razoável. Alguns lamentavelmente não obtiveram sucesso satisfatório. Ficaram pendentes e refletem uma realidade difícil de admitir e administrar, a saber, que a Igreja é formada por pessoas humanas agraciadas por Deus, mas, ao mesmo tempo, falhas e fracas em sua vida.
“Quantos problemas pessoais, familiares e comunitários se abatem sobre nós e complicam as relações entre as pessoas! Quantas divisões e separações têm como motivação o egoísmo, o individualismo, o ciúme, a inveja, o orgulho, a vaidade, a busca de posições, a megalomania e tantas outras tentações que se aninham no mais profundo abismo do ser humano! Quanta animosidade, quantos conflitos e quantas crises se instalam no seio das comunidades e atrapalham a caminhada de fé e a comunhão de irmãos e irmãs!
Certamente nos perguntamos: Deus o que significa tudo isso? Como é possível tudo isso na comunidade cristã? Por que tanto desgaste e dispêndio de energia na administração de tensões e conflitos?” (Relatório de 2004)
Essa realidade nos leva a uma constante auto-análise e reconhecimento de nossos limites e fragilidades. Para ilustrar essas ambigüidades e contradições nas nossas difíceis relações humanas e comunitárias, menciono uma afirmação de Contardo Calligaris:
“(...) quando os outros são melhores que nós, tentamos rebaixá-los, por vergonha. Imaginando neles nossos próprios defeitos, afirmamos nossa inocência.”
“Para desculpar essa mesquinhez, nada melhor que imaginá-la nos outros. Nossa mediocridade sairá melhor na foto, se puder se confundir com a mediocridade de todos.” (FSP 19/3/2003)
A relação, às vezes, tensa entre presbitérios e obreiros/as gira em torno da supremacia nas competências específicas. Os obreiros/as quando acumulam de forma exagerada, para além de suas atribuições específicas, atividades administrativas e organizativas, ou acomodam as lideranças comunitárias, desobrigando-as de suas responsabilidades, ou tornam-se foco de tensão que poderia ser evitável. Os/As presbíteros/as, ao prescreverem a agenda pastoral dos/as obreiros/as, acabam interferindo no específico do seu ministério e acabam sendo fonte de controvérsias igualmente evitáveis. Há de se afastar o divórcio entre obreiros/as e presbíteros/as. A balança não pode pender para nenhum lado. Uma relação saudável ocorre quando os/as obreiros/as assumem a sua corresponsabilidade nas questões administrativas e os/as presbíteros/as participam do trabalho pastoral com críticas construtivas e contribuem tanto no planejamento quanto na sua execução.
Um olhar sobre os dados estatísticos aponta para uma significativa redução do número de membros. Esta queda não se deve unicamente pela saída dos membros identificados com o movimento carismático. Esses membros correspondem na realidade a uma quantia pequena (755 membros)1. Poucas paróquias conseguiram manter o seu número de membros e/ou crescer nestes últimos 9 anos. É bem verdade que os dados fornecidos nem sempre são confiáveis, mas eles tornam-se um referencial de análise importante.
Os critérios de contagem não são uniformes. A IECLB solicita o número de pessoas batizadas que integram a paróquia, titulares e dependentes. Algumas paróquias baseiam-se mais no critério pastoral (participa efetiva e regularmente de atividades comunitárias) e outras mais no critério administrativo (contribui financeiramente de forma regular durante um certo número de anos). Por causa destes critérios díspares encontramos oscilações nos dados de ano para ano.
A redução do número de membros deverá nos ocupar de forma decidida nos próximos anos. Nesta gestão não pudemos enfrentar esta realidade de forma mais conseqüente e duradoura. Uma análise e um aprofundamento da prática pastoral foi dificultada em nosso âmbito porque estivemos numa disputa séria no terreno teológico-confessional. Estavam em disputa propostas, modelos, projetos pastorais e um dos pólos era o movimento carismático. Nas conferências de obreiros/as chegou-se a falar de modelos pastorais, mas a reflexão não se revelou frutífera. Vejo que é necessário conversar mais. Lideranças e obreiros/as precisarão se debruçar sobre a realidade de forma desapaixonada e encontrar caminhos e práticas que ajudem a superar a crise.
Pode-se constatar que há um número significativo de novos membros que são admitidos por profissão de fé.2 Isso ocorre apesar de termos poucos materiais específicos e uma política planejada e articulada de atração, acolhimento, envolvimento e integração de novos membros. Falamos muito de missão (no sentido de aumento de membros), mas esta é uma lacuna significativa. É bem verdade que a missão acontece na e a partir da comunidade, mas é uma temeridade deixar somente aos movimentos organizados na igreja a produção de materiais e o desenvolvimento de estratégias de ação que, às vezes, deixam a desejar no quesito fidelidade confessional. Não deixa de ser louvável, no entanto, o esforço de obreiros/as na elaboração de cursos de profissão de fé independentemente de qualquer apoio institucional.
Só de passagem quero comentar que pode ter sido exagerada a expectativa em torno da entrada de bacharéis em teologia e/ou obreiros/as de outras tradições cristãs mais identificadas com uma perspectiva missionária. Sua contribuição pode ter ficado aquém porque se adaptaram por demais à igreja ou porque a igreja não conseguiu sensibilizá-los/as para uma ação mais decidida.
Em matéria de ofícios praticamente todos os números são declinantes. O que revelam estes dados? São reflexo do declínio populacional? Indicariam uma maior indiferença na busca religiosa? Outrossim, seria verdadeiro afirmar que há mais tempo para outras atividades? Onde está o novo foco das atividades? Estaria ainda na manutenção do existente?
Na área de pessoal tivemos nos últimos 8 anos uma grande efervescência, marcada por uma enorme rotatividade. Nos 39 campos de serviço ministerial atuaram 89 obreiros/as pastores/as3. Acresça-se ainda 15 diácono/as e 1 catequista. Contamos atualmente com 52 pastores/as, 7 diáconas/o, 1 catequista, 7 pastores/a emeriti e 4 viúvas de pastor.
O Sínodo Sudeste conta com o potencial de obreiros/as com pós-graduação em Teologia ou Ciências da Religião. São 9 mestres, 8 doutores/a, havendo ainda um mestrando e 4 doutorandos nestas áreas.
Importante mencionar as gestões, envolvendo o intercâmbio de obreiros de Igrejas irmãs da Europa para atuar no Brasil, mais precisamente, no Sínodo Sudeste. Temos três obreiros nesta condição. Existe a perspectiva da vinda de mais dois em futuro próximo.
Recebemos 28 candidatos/as para o Período Prático de Habilitação ao Ministério com Ordenação dos quais 7 atuantes no Sínodo Sudeste4. Trata-se de um investimento para a igreja como um todo, mas também para o nosso contexto em especial.
Toda esta área de pessoal exige muito tempo de acompanhamento. Lamentavelmente não foi possível a devida e necessária atenção. Ficaram por acontecer, por exemplo, nesta segunda gestão as avaliações de obreiros/as. Dificuldades de articulação e constatação de pessoal, as distâncias e o manejo de agendas obstaculizaram esta atividade.
Mesmo, assim, isso significou muitas instalações e ordenações de obreiros/as, exames pró-ministério, acompanhamento do processo seletivo nas paróquias e consultoria permanente em questões pastorais.
Na área da representação ecumênica e pública pude estar presente em diversas atividades. Sei que esta presença é controvertida, mas ela procurou responder ao coro dos que reclamam da invisibilidade da igreja na sociedade e clamam por uma presença maior na vida pública. Posso afirmar que em muitos círculos da sociedade civil não somos mais ilustres desconhecidos. Isso tem possibilitado contatos importantes graças à confiança depositada na instituição.
Agradecimentos
A todos os irmãos e irmãs que colocaram os dons a serviço da causa de Deus através da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Em especial, a dois irmãos falecidos que colocaram o dom da música a serviço do louvor e da adoração a Deus. Trata-se de Josias Nobre, pianista e regente de coral que atuou em Resende/RJ e Carlos Wacyk, organista durante 43 anos da Igreja Martin Luther – Centro de São Paulo.
Aos/Às obreiros/as que aceitaram o chamado de Deus para atuar no âmbito do Sínodo Sudeste. Em especial, a dois pastores que estão se despedindo: Hans Hartmut Wilhelm Hachtmann entra para o período de aposentadoria. Sua experiência e serenidade muito ajudou na caminhada das comunidades em que serviu. Wilhelm Nordmann retorna para a sua igreja de origem na Alemanha. Sua contribuição na área diaconal e na formação (Curso Básico da Fé) foram muito importantes dentro do espírito do intercâmbio entre as igrejas brasileira e alemã.
Aos presbitérios que mantiveram viva a caminhada nas mais diversas localidades. Por toda dedicação voluntária na dinâmica administrativa e organizacional.
Às diretorias sinodais que tiveram paciência e perseverança na condução das atividades administrativas, institucionais, organizacionais e pastorais do Sínodo Sudeste. Agradecer pela retaguarda e apoio em vários níveis. Gostaria de lembrar que as inúmeras atividades do Sínodo Sudeste foram facilitadas enormemente graças à aquisição do apartamento funcional e da sede sinodal muito bem localizados no centro de São Paulo. Esta bela infra-estrutura deu tranqüilidade para o desempenho da atividade sinodal.
Ao administrador do Sínodo Sudeste, Sr. Manfredo Leffler, colaborador extraordinário que, com sua prestimosidade, deu segurança e tranqüilidade não só na área financeira, mas também na gestão conscienciosa dos mais diversos assuntos relativos às atividades do Sínodo Sudeste.
A minha família que compreendeu, em alguns casos, e não gostou, em outros, com razão , da minha ausência.
Esta é a minha última Assembléia Sinodal Ordinária na função de Pastor Sinodal. Em várias fases de minha vida tive a presença de pessoas que desempenharam um papel importante. Elas o fizeram, quem sabe, sem a consciência da importância da sua ação ou de seu gesto.
Há mais de trinta anos atrás duas pessoas passaram para mim dois molhos de chaves. Transferir molho de chaves, simbolicamente, significa transferir responsabilidades. Estas duas pessoas estão presentes nesta assembléia – Almiro Wilbert e Zulmir Ernesto Penno. Quis a providência divina, que nossos caminhos se cruzassem mais de trinta e cinco anos depois do seu gesto. Elas me passaram, respectivamente, as chaves da Cooperativa Escolar do Colégio Evangélico Augusto Pestana e do Salão Comunitário(Centro Evangélico) da Comunidade Evangélica de Ijuí/RJ. A confiança em mim depositada por pessoas ligadas ao Colégio e à Comunidade, da qual vocês foram portadores, foi decisiva para o meu processo pessoal de formação e encaminhamento na vida.
[homenagem pessoal]
Fecha-se um ciclo. Tenho a absoluta certeza de que o Sínodo Sudeste passará por profundas mudanças na próxima gestão. Acontecerão inovações, renovações e transformações. Para tanto contribuirão o distensionamento dos ânimos decorrente da superação dos conflitos teológico-confesssionais e a perspectiva de que as novas pessoas que integrarem a sua direção procurarão evitar as falhas cometidas nas gestões anteriores.
Quero reafirmar o que disse anteriormente:
“No Sínodo Sudeste nos esforçamos para falar a mesma língua. Comunicamos a boa notícia do Evangelho em palavras e ações. Temos alguns sotaques diferentes, mas nos esforçamos para não tropeçar na concordância verbal. A auto-estima cresceu com a visibilização pela mídia do substantivo e adjetivo luteranos. Frisamos alguns acentos e procuramos acertar os verbos irregulares. Fizemos uma conjugação de esforços para viabilizar eventos e empreendimentos.”(Relatório de 2005)
“Um olhar retrospectivo permite concluir que não há caminhos fechados. A partir da confiança em Deus pode-se ter a esperança de que ele reverte os infortúnios e transforma as desgraças. Importa estar atento a seus sinais enquanto vivemos os nossos papéis sociais, comunitários, eclesiásticos e públicos. Quem sabe a resposta esteja no hino:
“Se bem que meu caminho eu ignorar, confio em ti.
Porque teus planos vais concretizar, confio em ti.
Por me guiares, não preciso ver, nem mesmo sempre tudo entender!”
Que Deus transforme os nossos males, as nossas crises, os nossos conflitos no bem maior que está acima de nossa compreensão e fortaleça a nossa confiança nos caminhos da esperança! “(Relatório de 2004)
Para concluir transmito o sentimento bem presente no meu íntimo com alguns versos de um poema de Thiago de Mello:
“O que em mim faz falta
- para inteiro me ser –
ficou onde não estive,
dentro do que não tive
antes já de nascer.
Estou sempre aquém
do que não sou. Cheguei
escasso de mim, vasilha
de argila inacabada.
Onde estiver, por mais
que todo eu me dê,
sempre incompleto estarei.
No que fizer, deixo
na mesma face do feito
a marca da mão que fez
e a da mão que não fez.
Levo comigo uma fome
que, sem boca, me come.(...).”
Notas:
1De um total de 2.328 pessoas que se desligaram, apenas 983 seguiram para outras igrejas (Entre elas estão as 47 de 2004 cuja causa de saída é desconhecida). Existe ainda um enorme fosso entre os 25.931 membros de 1999 e os 19.661 de 2005. A conta não fecha.
2Dos 2.753 novos membros, 976 ingressaram por profissão de fé nos últimos 9 anos (35%). Deste total 265 são de Monte Mor, ou seja, 27%.
3Destes 89 obreiros/as, 6 obreiros/as mudaram de Campo de Serviço Ministerial no próprio Sínodo Sudeste.
4Desde o início do Período Prático de Habilitação ao Ministério a área abrangida pelo atual Sínodo Sudeste recebeu 51 candidatos/as.
Rolf Schünemann
Pastor Sinodal