Diaconia Evangélica - Síntese e Proposta

Um posicionamento do Conselho Diretor da IECLB

07/10/1988

Pois o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. Marcos 10.45

1. DIACONIA - O QUE É?

A Igreja cristã recebe sua identidade de Jesus Cristo. Por isso, se ele veio para servir, a missão da Igreja não pode ser outra. Está comissionada a unir ao seu testemunho o serviço, seguindo o exemplo de seu mestre. Para todo cristão, é válido o principio de Jesus, dizendo: Quem quiser ser o primeiro entre vós, será servo de todos. (Mc 10.44)

O Novo Testamento distingue entre diaconia e liturgia, respectivamente adoração. Esta designa o serviço devido a Deus, e somente a ele (Mt 4.10). É o serviço de culto e da obediência incondicional. Enquanto isso, a diaconia se dirige a pessoas humanas. Deus não necessita de nossa diaconia. A ele, deverá ficar reservada a liturgia, em termos do primeiro mandamento. É fundamental respeitar a diferença entre esses dois tipos de serviço, sem, no entanto, divorciá-los um do outro.

Diaconia se refere, originalmente, ao servir à mesa (conforme Lc 17.8). Mas, muito em breve, tornou-se sinónimo de todo auxilio prestado por uma pessoa a outra (conforme At 6.1). Adquire significado abrangente. No Novo Testamento, pode designar, também, o serviço da pregação (At 6.4; conforme 2 Co 5 18; etc.), sim,todo exercício das funções próprias do corpo de Cristo (l Co 12.5). E, todavia, na Igreja, se impôs o significado restrito: Diaconia é o serviço que socorre as pessoas em suas necessidades concretas. Já no Novo Testamento, o diaconato desenvolve um perfil próprio ao lado de outros ministérios (conforme l Tm 3.8). Embora não se deva perder de vista a abrangência do termo, recomenda-se reservar o uso do mesmo às formas específicas da ajuda mútua das pessoas, ou seja, ao serviço propriamente diaconal.

A característica básica do serviço de Jesus consiste em ter dado sua vida. Todo viver de Jesus foi doação. É o que compromete, também, a diaconia de seus discípulos. Não se resume em atividade beneficente qualquer. Na verdade, só se pode falar de diaconia se algo de sacrifício e doação espontânea lhe for inerente. Isso não proíbe a remuneração dos obreiros. Significa, isto sim, que diaconia autêntica sempre ultrapassa o que dinheiro é capaz de pagar. Diaconia não se prende à equivalência entre serviço e salário. Sabe dar de graça. Baseia-se na autodoação do amor.

Diaconia é serviço de cujo desempenho podem ser encarregadas pessoas especialmente treinadas. Certas atividades exigem preparo e formação. Pode haver necessidade, inclusive, de instituições diaconais, como já podemos observar em At 6 . E, no entanto, diaconia permanece sendo uma tarefa que, no fundo, não é delegável. Cristo dela incumbe todos os seus discípulos. Podem e devem servir no lugar onde estão, com os recursos que têm. O essencial não é a formação, e, sim, a disposição. Comunidade cristã é, por excelência, uma comunhão de serviço.

2. DIACONIA - POR QUÊ?

A necessidade da diaconia decorre, fundamentalmente, de três constatações:

l . Toda pessoa é diferente uma da outra, possuindo, simultaneamente, dons e limitações. Ninguém reúne, em si, iodos os dons, ninguém possui dom nenhum. Somos dependentes uns dos outros, respectivamente de ajuda mútua. Isso se torna especialmente evidente na infância, na velhice, na doença e em outras dificuldades, mas é verdade em todas as situações. Deus quer que as pessoas se complementem mutuamente, aprendam uns com os outros e, caso necessário, entrem na brecha pelo outro. Somente dessa forma, convívio humano há de tornar-se rico e livre de ódio e exploração. Diaconia significa compartilhar, exercer a função de um membro do corpo (l Co 12.12 ss). Ela reparte dons, forças, tempo, conhecimentos, dinheiro, convicções e fé. Por natureza, é reciproca. Consiste em dar e receber. Pois ninguém possui tudo. Consequentemente, diaconia é dever permanente das pessoas. Faz-se indispensável em todas as fases da vida, em todo tipo de convívio e em todas as épocas.

2. O ser humano prejudica sua vida pelo seu pecado. Torna-se culpado, cego, fraco. É trágico observar como as soas complicam o seu dia-a-dia. Cometem tolices, tornam-se vítimas de anseios descabidos, de teimosia e ciúmes, não resistem às tentações, são fracas na fé. Na raiz de muito sofrimento, está o, da própria pessoa, sua fraqueza culposa, sua idolatria. Diaconia não fará depender sua ajuda de méritos. O próprio Deus não o fez. Amou os pecadores, veio-lhes em socorro, inclinou-se aos que não mereciam. Diaconia cristã pressupõe a capacidade de perdoar, bem como a consciência da própria fraqueza e culpa. Procurará curar, libertar de egoísmo, ajudar a vencer problemas, sempre na humildade que igualmente necessitam do perdão.

3. O pecado humano faz vítimas , assim como o foi o homem assaltado pelos ladrões na parábola do bom samaritano (Lc 10 30ss). Também leis injustas fazem vítimas, a exemplo da lei do Corbã, que no tempo do Novo Testamento, permitia ao filho esquivar-se maldosamente e todavia de modo absolutamente legal aos compromissos com os pais idosos (conforme Mc 7.9 ss). Diaconia evangélica tem olhos e ouvidos para as vítimas da sociedade, isto é, para os roubado, enganados, explorados, marginalizados. Não só lhes virá em socorro, há de colocar-se a seu lado, defendendo-lhes a vida e a causa justa, questionar leis e estruturas que oportunizam, favorecem ou sancionam o crime. Diaconia tem o mandato de afastar os poderes que ameaçam a vida, que a prejudicam ou a destroem.

O exposto já evidenciou que a premissa fundamental diaconia é o amor. É ele que a promove, exige e possibilita. Percebe sofrimento e com ele se comove. Procurará soluções. Pode-se definir diaconia como sendo, por excelência, a ação do amor. Sua ausência acusa pecado nada menor do que a falta de fé e produz uma sociedade altamente fria, brutal e assassina. Diaconia exige a aprendizagem e a motivação do amor. Nisso, Jesus Cristo ajuda. Seu amor nos constrange (conforme 2 Co 5. 14), impedindo-nos a colocar dons e forças a serviço de nossos semelhantes . No amor de Deus, manifesto na diaconia de Jesus, a diaconia da comunidade tem sua causa última e sua contínua fonte de capacitação.

3. DIACONIA - PARA QUÊ?

O objetivo da diaconia se resume em salvar vida. Foi que o próprio Jesus Cristo quis (conforme Mc 3.4). Isto significa: Diaconia tratará de restabelecer o bem-estar das pessoas e de melhorar a qualidade de vida. Vai empenhar-se na superação e eliminação de sofrimento. Estão aí incluídos a cura de doenças físicas e psíquicas, a reconciliação de pessoas, grupos e povos, bem como o combate à fome, ao desemprego, à angústia, a solidão, ao desespero. Diaconia quer ver as pessoas alegres, em situação de bem-estar e de saúde integral. E porque vai engajar-se na luta contra todo sofrimento inútil e estúpido.

Diaconia tentará impedir que males sejam causados, combatendo-os na raiz. Tratará de libertar as pessoas de dependências que as privam de direitos, chances e recursos. Importa, não somente superar o sofrimento, importa estancar a fonte que o produz. Diaconia quer ver as pessoas livres, protegidas contra a agressão do mal. Sua função não é apenas terapêutica, é, também, preventiva. Por isso, tratará de descobrir as causas dos males e extirpá-las.

Nem sempre, porém, as causas do sofrimento humano são facilmente removíveis. Pensando em doenças incuráveis, em perdas causadas pela morte de pessoas achegadas, em safras frustradas e outros infortúnios, proíbe-se a ilusão de uma vida sem sofrimento nenhum. Aliás, nem todo sofrimento é absurdo. Aquele que nasce do amor não o é. Por isso, quem se dispõe a amar e a servir também se dispõe a sofrer. Por todas essas razões, o objetivo da diaconia não pode consistir em tão somente evitar o sofrimento. Deve consistir, também, em fortalecer as pessoas para carregá-lo. Na verdade, são necessárias ambas as coisas, a inconformidade com o sofrimento de um lado e a capacidade de assu-mi-lo de outro. Vai depender da situação qual das atitudes deve prevalecer. De qualquer forma, diaconia cristã quer ver as pessoas capazes de carregarem seu fardo (conforme Gl 6.5).

Diaconia não pode ver as pessoas como meros indivíduos e receptores de benefícios. Estaria em desacordo com a reciprocidade da diaconia e com a exigência de respeitar as pessoas como criaturas de Deus e como irmãos e irmãs. E porque a diaconia se esforça por integrar as pessoas na comunidade. Não se isola, não as transforma em casos especiais, trata-as como membros. Em outros termos, ela procura colocar em prática a lei de Cristo, dizendo: Levai as cargas uns dos outros (Gl 6.2). Um dos importantes objetivos da diaconia consiste, pois, em criar comunhão, em edificar comunidade E uma condição para salvar vida. Pois, sem comunhão, vida humana sucumbe.

O objetivo último da diaconia, porém, é a aprendizagem do culto a Deus. Jesus diz a seus discípulos: Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5.16). A tarefa de salvar vida ainda não está cumprida, enquanto pessoas forem incapazes de louvar a Deus (conforme Lc 17.11 Diaconia é o esforço por remover os obstáculos. Procura dai motivos para a gratidão e abrir os olhos para a realidade div (conforme Jo 9.1 ss). Não glória humana, mas, sim, a glória de Deus é o alvo da diaconia. O que se propõe não é a simples promoção social das pessoas, mas, sim, a renovação de vida em todos os seus sentidos. Não se dá por satisfeita com a mera emancipação de dependências. Pretende libertar para a adoração Deus. Diaconia evangélica conduz à liturgia.

4. DIACONIA - COMO FAZER?

A diversidade de causa e objetivos da diaconia determina suas formas. Não podem ser padronizadas Definem-se concretamente a partir das exigências de situações, contextos, pessoas. Ajuda tem inúmeras modalidades e desafia a criatividade do amor. Podem ser distinguidas, basicamente, duas categorias:

Diaconia é a ação da misericórdia. Tem olhos para miséria e se compadece. Assim o fez o bom samaritano na parábola de Jesus, assim o fez o próprio Deus ao enviar seu Filho para a nossa salvação. Daí porque: Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai (Lc 6.36). Misericórdia não pode permanecer apática frente ao sofrimento. É compaixão que busca o auxílio imediato.

Diaconia é a ação da justiça. Tem olhos para os direitos das pessoas e denuncia sua violação. Vai manifestar-se como solidariedade aos injustiçados e luta contra o crime. O próprio Jesus é o exemplo. Denunciou leis discriminatórias de sua época e assumiu a causa das vítimas. Não se conformou com a maldade que, para sancionar-se, abusa do poder legal (conforme Mc 7. l s). Justiça defende a causa moral e busca o auxílio duradouro.

Seria fatal se misericórdia e justiça fossem colocadas em termos excludentes, alternativos. Devem complementar-se. Misericórdia desinteressada na justiça corre o risco de se reduzir a uma questão puramente sentimental. Será cega para os brutais mecanismos estruturais com que em nossa sociedade se produz sofrimento. Vai prejudicar a eficácia de sua ação. Inversamente, justiça sem misericórdia periga tornar-se desumana. Será altamente fria. Ilude-se ao pressupor que esteja em condições de eliminar globalmente as causas do sofrimento. Vai ficar devendo às pessoas muito auxílio imediato. Na ação diaconal do cristão, a misericórdia e a justiça devem permanecer unidas. Daí resulta:

Diaconia terá a forma da assistência. Caracteriza-se pelo contato pessoal direto que exige. E diaconia próxima. Implica envolver-se em problemas alheios, participar de sofrimento, sujar as mãos. Assistência é amor concreto a pessoas com deficiências, fraquezas ou problemas. É nada fácil de praticar. Aliás, não se deveria confundir assistência e assistencialismo. Deste, só se pode falar se a assistência for absolutizada como única forma legítima e possível da diaconia. O assistencialismo é ruim, mas a assistência é vital. Constitui uma prova da autenticidade do amor.

Diaconia terá a forma da solidariedade. Assume a causa justa do outro, vai em sua defesa, coloca-se a seu lado. Solidariedade é diaconia com. Procura somar forças e dar apoio mediante a identificação com o sofrimento e a luta por sua superação. Pode ter a forma da solidariedade passiva. Isso, por exemplo, em casos de luto, quando não temos com que ajudar senão com a mera presença Não em casos de apoio a movimentos populares, cujos reclamos justos exigem a tomada de medidas Nessa e em outras situações, se requer a solidariedade ativa. Evidentemente, toda solidariedade humana será fragmentaria. Ninguém é capaz de identificar-se exatamente com outra pessoa e colocar-se em seu lugar. Além disso, solidariedade sempre terá que ser crítica a fim de não reverter em dependência. Deve perguntar quando pode dar apoio, quando não. Mas, sem solidariedade, o amor não existe Ela é uma de suas mais nobres manifestações.

Diaconia terá forma da parceria, ou seja, de um convívio caracterizado pela troca espontânea de serviço a partir dos dons específicos de cada qual. Seus pressupostos são o respeito à identidade do outro ou da outra, a renúncia ao desejo de dominar e a resistência ao ser dominado. Parceria é o exercício da fraternidade entre pessoas, grupos e povos e se dá através de comunicação, intercâmbio, complementação e correção mútua. E convívio dinâmico, em busca de síntese, cooperação e comunhão.

Diaconia terá a forma de ação política. Isto em sentido mais amplo da palavra, ou seja, como interesse pelos assuntos da sociedade e esforço por melhorar sua condição e situação. Se a política vai mal, é porque faltam diáconos e diáconas dispostos a se empenhar pelo bem comum e a batalhar por mais justiça. Especialmente em nossos dias, o amor, quando sincero, não pode desprezar o instrumento da ação política na perseguição de objetivos. É de decisões políticas, de estruturas sociais justas que resulta incalculável sofrimento humano. E é somente com decisões políticas que esta situação pode ser revertida justiça e integridade da criação, pré-requisitos indispensáveis para a sobrevivência humana, são assuntos altamente política religiosos .

Ainda outras formas de diaconia são imagináveis, n elas, sem dúvida, os projetos de desenvolvimento. Não há necessidade de entrar em detalhes. Importante é que nenhuma forma exclui a outra. Pelo contrário, elas se mesclam e devem cooperar ainda que esta ou aquela possa merecer prioridade em determinada da situação. Em nosso país, a ação da justiça, a solidariedade com os empobrecidos e o esforço político por transformações estruturais adquiriram especial relevância e urgência A ação da misericórdia não deve ser esquecida, todavia. O que importa é salvar vida. Tal objetivo não permite a restrição a um só tipo de atividade diaconal. Exige a mobilização de todos os recursos e a interação de todas as suas formas.

5. CONCLUSÕES

O especifico da diaconia evangélica reside, sobretudo em sua motivação e seus objetivos. Está embasada no Evangelho e tem, no culto, sua meta, o que, naturalmente, mostrará reflexos na sua práxis. E porque não podem ser separadas a ação diaconal e o testemunho evangélico. Embora não idênticas, deverão permanecer correlacionadas. Nem sempre a correlação precisa ser explícita. Diaconia se corrompe ao transformar-se em evangelização forçada. Deve permanecer gratuita, abster-se de fazer imposições e cuidar para não criar novas dependências. E, todavia, ficará em débito com as pessoas, se sua obra que é limitada não apontar para o amor ilimitado de Deus e deixar de ser para ele transparente.

A razão de tal afirmação está numa concepção abrangente do que seja saúde humana. Inclui, necessariamente, elementos do que a Bíblica chama de salvação. Toda riqueza, todo bem-estar físico e social não bastam para assegurar às pessoas vida plena e integral. Sem a capacidade de crer e de amar, tudo isso se reduz a nada. Não o sujeito que se auto-realiza, mas, sim, a pessoa que agradece, sendo, por isso, capaz de servir, é a que a diaconia tem em vista. Salvação e bem-estar estão mais próximos um do outro do que normalmente se supõe. Somente em conjunto constituem a saúde humana.

Diaconia é exigida de toda pessoa. Mas a tarefa ultrapassa as potencialidades individuais. Há desafios que podem ser atendidos somente pela comunidade. É importante resistir tanto à privatização da diaconia, que vai transformá-la em assunto particular, quanto à coletivização da mesma, que vai transferir a responsabilidade à organização eclesial e desincumbir o indivíduo de sua tarefa. Diaconia é sempre atribuição individual e comunitária. Cabe refletir sobre as incumbências específicas das partes e buscar definições.

É claro que a diaconia evangélica se destina a todas as pessoas, independentemente de raça, credo ou cultura. Ainda que os membros da própria comunidade sejam os mais próximos e os primeiros destinatários, o bem deve ser feito a todos os homens e a todas as mulheres (conforme Gl 6.10). Diaconia não faz acepção de pessoas. Usa, por parâmetro, a necessidade, não a dignidade. Ela é testemunho prático, inserindo-se, por isso, na tarefa missionária da Igreja.

Considerando a magnitude do campo diaconal e a missão comum de todos os cristãos, a ação diaconal procurará a cooperação ecumênica, sim, em sentido amplo, a cooperação de todas as pessoas de boa vontade. O fraccionamento das forças no combate ao mal e na libertação das pessoas daquilo que as oprime representa procedimento culposo e prejuízo à missão de Igreja. Além disso, é justamente a comunhão no serviço que promove a unidade das Igrejas, proporcionando-lhes valiosas experiências de fraternidade eclesial Diaconia e ecumenismo se exigem e deveriam estimular-se mutuamente. Isso, com o objetivo de aumentar a eficácia da ação e de cumprir o mandato comum da una santa Igreja cristã, para a glória de Deus e o bem de sua criatura.
 


Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Diaconia / Instância Nacional: Conselho da Igreja
Natureza do Texto: Manifestação
Perfil do Texto: Manifestação oficial
ID: 13653
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