A confissão luterana na concorrência religiosa - 1993

Posicionamento da Presidência e dos Pastores Regionais da IECLB

12/05/1993

1. A cada dia cresce no Brasil o número de grupos religiosos e se diversificam os credos. Igrejas, em particular as históricas, vêem-se acuadas por um fervor religioso que atrai seus membros e os conquista para outras filiações. Seitas, novos movimentos religiosos, carismáticos, espiritualistas, além das tradicionais denominações cristãs, disputam a fé das pessoas. Poder-se-ia dizer que exploram um “mercado em busca de freguesia”, transformando o País em gigantesco shopping center” religioso, com oferta para todo tipo de gosto. O pluralismo religioso explode, fazendo desmoronar a relativa uniformidade confessional do povo no passado e minando a vinculação a uma das Igrejas tradicionais.

2. Também na IECLB sentimos o impacto. A penetração de seitas e outros grupos religiosos perfaz motivo de crescente preocupação em muitas comunidades. O clima de concorrência em que vivemos periga acirrar conflitos supostamente ultrapassados e reavivar o espírito proselitista entre as próprias denominações cristãs, em prejuízo da fraternidade eclesial e da credibilidade do testemunho. A IECLB, em passado e presente, sofreu erosão do quadro de seus membros, não por último devido à agressividade missionária por parte de outros que operavam com métodos às vezes extremamente desleais. Não só a permanência e a vida da comunidade estão em jogo. A diversidade religiosa favorece também o relativismo confessional, podendo acabar no mais completo indiferentismo. Em termos de fé - o que é válido? Como distinguir a fé, a superstição, a idolatria, a perversão da devoção? É compreensível, pois, que a situação religiosa aflija a IECLB e levante a pergunta pela reação adequada.

3. O assunto está sendo trabalhado. Chamamos atenção às atividades do Instituto de Capacitação Teológica Especial/lCTE, da Escola Superior de Teologia/EST, e particularmente aos cadernos por ele editados sob o título Série Novos Movimentos Religiosos. Oferecem informações extremamente valiosas. A fim de incrementar a reflexão nas comunidades, o Conselho Diretor, além disto, liberou o pastor Dr. Ingo Wulfhorst para dedicar-se, em tempo integral, à assessoria das comunidades mediante cursos e seminários respectivos e a elaboração de subsídios. (Está fazendo estudo do islamismo nos EE. UU.) Ainda outras iniciativas poderiam ser mencionadas. Também os pastores regionais, no exercício de suas atribuições pastorais, por diversas vezes se ocuparam com a matéria com base em pareceres da Comissão Teológica e do pastor Wulfhorst. Resolveram dirigir-se às comunidades numa manifestação destinada a complementar e reforçar a reflexão em andamento. Apresentamos, pois, os pensamentos a seguir como documento de estudo, contribuição ao debate e orientação pastoral.

4. Importa reafirmar, em primeiro lugar, a necessidade de ampla discussão da problemática religiosa. A fé quer ser vivida conscientemente. Passaram-se os tempos em que a Igreja podia confiar na força de sua tradição. Comunidade precisa ser constantemente reconstituída. É este um dos bons serviços que o pluralismo religioso presta: força a Igreja, incluindo a IECLB, à permanente prestação de contas de seu credo, exigindo o membro motivado. Devemos ocupar-nos com nossa fé, reafirmá-la em confissão realmente assumida, vivê-la conscientemente em nosso dia-a-dia. Isto tem por premissa também a informação sobre a fé divergente e a avaliação de outros credos. Evidentemente não podemos ser todos especialistas em assuntos religiosos. Ainda assim, a instrução na fé deve ser a mais ampla e intensiva possível, com o que seguimos um dos princípios básicos da Reforma do século XVI. Os catecismos de M. Lutero tinham em vista a maturação da comunidade e a responsabilização de cada cristão pela sua fé. A concorrência religiosa a que nos vemos expostos requer a comunidade consciente e, por isso, capaz de distinguir o joio do trigo e de resistir às pechinchas sedutoras do supermercado da religião.

5. O acentuado pluralismo religioso de nossos dias naturalmente tem causas. É uma característica da modernidade e do individualismo em que implica. As grandes instituições do passado são vistas com suspeitas. São sentidas como cerceadoras das liberdades individuais. Contribuem, além disso, a mobilidade da sociedade, as facilidades de comunicação, o intercâmbio cultural, trazendo as pessoas para mais próximas umas das outras. No Brasil, a efervescência religiosa se deve ainda a outros fatores. Estão despertando culturas reprimidas no passado, a exemplo da afro-brasileira. Particularmente, porém, a miséria, o desarraigamento em razão do processo migratório, a quebra dos valores tradicionais são causas que merecem destaque. A proliferação dos credos não deixa de ser sintoma de uma profunda crise humana e social. Articula um grito de socorro. Na situação crítica da sociedade brasileira, qualquer oferta de salvação, por mais problemática que seja, achará sua clientela. Resulta daí o que se pode chamar de migração religiosa”, ou seja, a freqüente “troca de religião. É comum encontrar pessoas que já eram católicas, espíritas, pentecostais, luteranas - em desesperada busca de real auxílio. Portanto, para entender o fenômeno religioso no País, necessário se faz perceber o grito nele inerente. Propõe à IECLB a pergunta até que ponto ficou e fica devendo às pessoas o cumprimento de justos anseios. O estudo das causas do pluralismo religioso é fundamental para a reação adequada, sendo que inevitavelmente inclui a avaliação crítica do discurso e da prática da própria IECLB.

6. Convém lembrar que, para a fé cristã, a situação de concorrência de modo algum é estranha. A Igreja nasceu em época e ambiente marcados por profunda conturbação e extraordinária variedade de crenças. O Novo Testamento, em muitas de suas porções, nitidamente o espelha. Situações análogas se repetiram no decurso da história eclesiástica. Em verdade, a uniformidade da fé pode ser assegurada somente por rígido controle institucional e o recurso a meios de coação. Isto, porém, conflita com o próprio Evangelho, que jamais violenta as pessoas. Fé imposta não é fé autêntica. Por essas razões, a Igreja cristã está comprometida com a defesa do princípio da liberdade religiosa. Missão deve repudiar o uso da violência, da pressão, da ameaça, e tão-somente apostar na força da palavra. Sob essa perspectiva, o pluralismo religioso de nossos dias de modo algum é motivo de pavor. Assinala, entre outros, uma liberdade pela qual outras épocas possivelmente nos teriam invejado. O recurso ao braço estatal para disciplinar” o caos religioso, graças a Deus, não nos é possível nem permitido. O desafio exige outra resposta. Exige o que o apóstolo Paulo chama de “demonstração do Espírito e do poder”, respectivamente exige a resposta do Evangelho, ele mesmo.

7. A IECLB é uma Igreja fortemente engajada na busca da unidade dos cristãos. Entende-se a si mesma como um membro do corpo maior de Jesus Cristo, da “comunhão dos santos”, da Igreja universal. Não reivindica, por essa razão, nenhum monopólio da verdade, nem exclusividade. Sabe-se irmanada com outras igrejas cristãs na busca do Reino de Deus e de sua justiça. O que a compromete é o Evangelho testemunhado na Sagrada Escritura. Comprometem-na também os credos da Igreja Antiga e a confissão da Reforma luterana, em que reconhece legítima articulação da fé apostólica. A IECLB procura ser autenticamente evangélica. Tem um dom a compartilhar e valores a defender. Mas não nega a ação do Espírito Santo em outras Igrejas e denominações cristãs, estando com elas em permanente aprendizagem do discipulado. Ecumenismo é a caminhada conjunta do povo de Deus em que os grupos se respeitam e se avaliam mutuamente com o objetivo de crescerem no conhecimento das maravilhas de Deus e na conjugação do testemunho e do serviço. Deus age também fora dos muros da própria instituição eclesiástica. Ele age inclusive em outras religiões e credos. Seria arrogância querer limitar a ação divina e prescrever-lhe os horizontes. Tal constatação, porém, não permite o relativismo da fé. Há verdades a que, a partir de Jesus, não podemos renunciar e que são constitutivas do Evangelho e da salvação humana. Ecumenismo significa disposição para autêntica parceria, sem nivelação precipitada das diferenças que nos são peculiares. É a coragem para uma aprendizagem que, se for sincera, há de nos enriquecer, superar barreiras e promover a unidade.

8. Na comunicação da fé é fundamental o testemunho. Foi para tanto que Jesus chamou seus seguidores. Quis que fossem suas testemunhas até aos confins da terra. Verdades religiosas não se resumem em teorias abstratas ou opiniões particulares, nem se comparam a propostas partidárias. A fé cristã fala de uma história acontecida, fala das maravilhosas obras de Deus, fala das experiências da comunidade com o Evangelho. Precisa ser anunciada, portanto. Testemunho da fé, desde que autêntico, requer o coração ardente, tocado pela palavra de Deus, pronto para inclusive sofrer prejuízos por causa da mesma. Inclui a palavra e a ação, a mensagem e o exemplo, o discurso e a vivência. Sabe não ser indiferente o tipo de fé que abraçamos. Pois não há o que determine o ser das pessoas de modo mais incisivo do que a fé que professam. Com ela estão em jogo o comportamento humano, o modo de viver e falar, os valores propugnados. Reduzir a “religião” a uma questão puramente particular é desconhecer-lhe a imporlância. Embora a fé deva ser assumida sem coação externa, é imprescindível conscientizar-se do papel fundamental que desempenha na vida das pessoas e da sociedade. Da mesma forma não é irrelevante a que Igreja ou grupo religioso pertencermos. Toda instituição eclesiástica representa uma determinada concepção da fé, um modo de viver e de adorar a Deus, uma proposta religiosa. Até que ponto corresponde ao Evangelho, há que ser examinado. Mas em toda filiação a uma comunidade e Igreja está implícita uma confissão. O testemunho cristão articula o compromisso com o Evangelho pondo à prova todas as manifestações religiosas e medindo-as no critério da misericórdia de Deus, que quer a vida de sua criatura.

9. Ao lado do testemunho e nele embutido, o diálogo é imprescindível no confronto com outros credos e outras religiões. Devemos falar, argumentar, interpelar, buscando o exemplo no próprio Jesus. Diálogo não é nada fácil. Precisa ser aprendido e pressupõe haver posições de que se examina a solidez. Ademais, o diálogo se caracteriza pelo fato de levar o parceiro a sério. Quer compreender e convencer; jamais impor. Distingue-se radicalmente do fanatismo e do autoritarismo, que não deixam de ser atitudes violentas. Não se trata de um método apenas. Diálogo é expressão de fraternidade a prevalecer entre as criaturas de Deus. Faz jus ao fato de sermos parceiros de jornada cujo relacionamento exige o respeito e a humildade. Logo, está excluído todo e qualquer tipo de proselitismo. A IECLB, com boas razões, o rejeita como sendo incompatível com o Evangelho e a dignidade das pessoas. Missão não pode consistir na pesca do membro fiel de outras denominações. Desistindo do proselitismo, porém, a IECLB simultaneamente se vê coagida a reagir quando praticado por outros. Temos o direito à autodefesa bem como o dever de denunciar práticas, anti-evangélicas. Preconizando o diálogo, nós o esperamos também de nossos parceiros.

10. Ao diálogo e ao testemunho deve associar-se finalmente o serviço. Sob o ponto de vista cristão, o amor faz parte da ortodoxia da fé. Não há missão verdadeira sem a diaconia. É ela que normalmente abre os espaços para o anúncio e o diálogo, comprovando-lhes a autenticidade. Como membros da IECLB convivemos com outras denominações e confissões. Convivemos com pessoas que têm necessidade, perguntas, angústias. Nossa maneira de conviver é fundamental para a credibilidade de nosso discurso. Missão não se faz apenas pela boca. Requer mãos e pés engajados, sensibilidade para o sofrimento, a demonstração de misericórdia. Jesus veio para servir. Misturou-se com as pessoas necessitadas de seu tempo e comprometeu seus discípulos a fazerem o mesmo. “Religião” pode ser abusada, pervertida em negócio, servir à opressão. O amor a isto vai opor-se e preconizar a maravilhosa liberdade dos filhos e das filhas de Deus, sendo que não permitem ser ignoradas as necessidades humanas de qualquer espécie, sejam elas de ordem material, espiritual, social ou outras. No diálogo e no testemunho evangélico o amor costuma ser o mais forte dos argumentos. O pluralismo de nossos dias de modo algum anulou esta verdade elementar.

11. No relacionamento com outras denominações cristãs e outras religiões, portanto, o testemunho, o diálogo e o serviço devem andar de mãos dadas. Não permitem ser separados. São complementares. Um não pode existir sem o outro, desde que procuremos cumprir com fidelidade nosso mandato de Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. É claro que a ênfase pode recair ora neste ora naquele aspecto. Da mesma forma é óbvio haver confissões que nos são mais próximas e outras mais distantes. Temos que diferenciar, e não jogar tudo na mesma panela.

A cooperação é mais fácil com as denominações cristãs e, entre elas, com aquelas Igrejas que se instalaram há mais tempo no País. Jesus Cristo é nosso fundamento comum. À Igreja deste nosso Senhor nos juntamos como mais uma expressão de fé cristã em busca da intensificação da comunhão, embora permaneçam diferenças a discutir. Construímos nossa unidade sobre o imperativo comum da aprendizagem do discipulado permanente. Mas também com relação a outras religiões, não-cristãs, o testemunho, o diálogo e o serviço se nos colocam como princípios de ação em termos acima descritos. Também delas temos algo a aprender, e permanece, da mesma forma, o dever de comunicar o amor de Deus que salva o mundo de ódio, cegueira e angústia, ou seja, de todos os males que mantêm a humanidade em cativeiro. O ecumenismo inicia com os irmãos e as irmãs da fé cristã. Mas não permite permanecer limitado a eles. Quer abranger também outros, mais distantes de nosso modo de crer. Isto, na consciência de que toda a humanidade é chamada a ser povo de Deus na Terra.

12. A IECLB não pode deixar de divulgar sua confissão. Se o fizesse, enterraria o talento que recebeu, tornando-se culpada diante de seu Senhor. Importa, porém, que no relacionamento com pessoas de outros credos prevaleça uma atitude sóbria, igualmente distante de timidez, apatia ou soberbia. Há falhas e deficiências em nós a lamentar e a corrigir. Entretanto, é preciso reconhecer que nem toda religião é boa e que nem tudo que se oferece como verdade de fato o é. Cabe-nos distinguir os espíritos, como o apóstolo Paulo o exigiu da comunidade de Corinto. Isto significa que devemos proceder ao exame crítico do que é evangélico e do que não o é. Não podemos deixar de ser Igreja missionária. No entanto, desde os primeiros tempos, missão autêntica sempre tem sido missão ecumênica. Buscava companheiros de luta. Era uma missão não contra os irmãos e as irmãs, mas com elas na busca do Reino de Deus. Parece-nos urgente rediscutir missão sob esta perspectiva. Ela certamente não vai acabar com a competição religiosa no País. O fenômeno religioso, como já exposto, é profundamente ambíguo, exige o exame criterioso, e a grande comissão de Jesus continua sendo o mandato da Igreja, comprometendo-nos com a divulgação do Evangelho e a construção de comunidades. Entretanto, a missão cristã levada a efeito em espírito ecumênico - sob testemunho, diálogo e serviço - há de desagravar a concorrência e substituí-la por uma fraternidade que, nas diferenças, exercita o respeito mútuo e o compromisso conjunto com a verdade e a vida. É este o relacionamento que a IECLB deseja.

Rodeio 12 (SC), maio de 1993

Presidência e dos Pastores Regionais da IECLB
 


Âmbito: IECLB / Instância Nacional: Presidência
Natureza do Texto: Manifestação
Perfil do Texto: Manifestação oficial
ID: 12612
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