A origem histórica da Bíblia

Apesar de ser sagrada, a Bíblia teve uma gênese muito humana. Não é um livro “caído do céu”. Formou-se ao longo dos séculos. O cânon hebraico do Antigo Testamento (AT) reúne 39 livros, originais de diversas épocas. E muitos deles contém tradição bem mais antiga do que o próprio registro literário. Algo semelhante vale para os 27 livros do Novo Testamento (NT). Também ele se formou em longo processo, embora não tão demorado como o AT. Em ambos os casos, a Escritura é o resultado de uma coleção de escritos a que foi atribuída normatividade religiosa.

Tal coleção se tornara uma necessidade. Por mais importante que fosse a tradição oral dos conteúdos da fé, estes corriam o risco de ser esquecidos ou então distorcidos. É claro que a prédica dos profetas foi oral. Somente em casos excepcionais redigiram cartas, como a que Jeremias escreveu aos exilados (Jeremias 29), ou tiveram protocolados seus pronunciamentos. Mas a palavra oral necessitava de registro para ser conservada às futuras gerações. O mesmo valia para leis, credos, orações e, não por último, para a própria prédica de Jesus. Quanto mais o tempo avançava, tanto mais se sentia a urgência de anotar a história e de transformar a tradição em literatura. Exemplifica-o o evangelista Lucas, que, depois de acurada investigação, redige sua obra e a dedica a um certo Teófilo, para que este tenha plena certeza das verdades em que foi instruído (Lucas 1.1-4).

Assunto polêmico foi a delimitação da Escritura. Quais livros seriam incorporados no cânon? No caso do AT, o assunto foi resolvido somente depois da queda de Jerusalém em 70 d. C. jesus e as primeiras comunidades cristãs tinham uma Escritura, mas ainda não um cânon. Era duvidoso quais seriam os livros que a ela pertencessem. A tradução grega, chamada Septuaginta, do século 3 antes de Cristo e muito usada pelas comunidades cristãs helenísticas, conta com 53 livros ao todo. Mas também a Escritura hebraica ainda não estava fechada. Somente por volta do ano 100 d. C. a comunidade judaica estabelece o cânon em suas atuais proporções. Enquanto isso, a tradução latina, chamada Vulgata, incorporou mais sete livros, constantes na Septuaginta, no cânon do AT. Visto que o Concílio de Trento, realizado em 1545 a 1563, acolheu oficialmente essa versão, o AT “católico” e o “protestante” divergem em tamanho; aquele tem 46 e este, apenas 39 livros. A diferença não possui força para dividir a igreja. Jesus usou a Bíblia hebraica, as comunidades de Paulo liam a Bíblia grega e mais tarde a latina, sem nisto se visse um problema.

Também a canonização do NT foi complicada. As principais partes, a exemplo dos evangelhos e das cartas do apóstolo Paulo, estavam sendo reconhecidas como canônicas já no século 2. Mas o Apocalipse, a Segunda Carta de Pedro e outros escritos continuavam controvertidos. Em 367 d. C., o bispo Atanásio da Alexandria listou pela primeira vez os atuais 27 livros componentes do NT. Ainda assim, demorou até que essa lista recebesse o aval em toda a igreja.

O NT deveria compilar a tradição apostólica. Era este o critério da canonização. Isso não significava que o escrito devesse ser redigido, ele mesmo, por um apóstolo. Mas ele deveria ter conteúdo apostólico. Lucas não era apóstolo, mesmo assim seu evangelho foi incluído no cânon. De fato, o NT contém a tradição cristã mais antiga. Oferece o “discurso fundante da fé cristã”, a prédica original da igreja. Não foi decidido em concílio geral. A Escritura se impôs na igreja por força inerente, por ação do Espírito Santo. Está aí a norma a que discurso e prática da igreja estão comprometidos a se sujeitar.

Pastor Dr. Gottfried Brakemeier, em “Por que ser cristão?”, Editora Sinodal

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