A Bíblia foi escrita em época pré-científica, muito antes do advento da renascença e do iluminismo. Não se via antagonismo entre religião e ciência. Podiam tranquilamente andar lado a lado, em perfeita harmonia. Isto muda quando a razão humana parte em busca da conquista do mundo. Em longo processo histórico, ela se emancipa da tutela religiosa e questiona as verdades da fé. Certo auge foi alcançado com a obra do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), intitulada “A crítica da razão pura”. Doravante não haveria verdade que não devesse ser aprovada pelas ciências ditas exatas. Instalou-se no mundo chamado ocidental uma visão de realidade baseada no experimento, na lógica racional, na pesquisa metódica.
Fé e ciência entraram em choque, com profundas consequências para a leitura bíblica. Começa-se a suspeitar dos fenômenos sobrenaturais que ela transmite. A criação do mundo em seis dias, a miraculosa passagem do povo de Israel pelo mar por ocasião do êxodo, o nascimento virginal de Jesus, sua ressurreição dos mortos, o mundo dos milagres, dos demônios, tudo isto passa a ser questionado. A própria existência de Deus se torna duvidosa. No mundo científico não há espaço para coisas “im-prováveis” ou supostas especulações metafísicas. Religião é vista como algo “irracional”, coisa de épocas passadas, no fundo um supérfluo. Assim, pensa muita gente em nossos dias, especialmente entre intelectuais. A Bíblia perdeu crédito. Como reagir?
Ora, haveria muita coisa a dizer. Em primeiro lugar, é de se lamentar a ignorância de muitos cientistas em assuntos de religião. Ela tem sua própria “racionalidade”, melhor, a sua razão de ser. A ciência não é capaz de substituir a religião. Existem perguntas que somente a fé responde, ou seja, há realidades a que a ciência não tem acesso. Ela não tem instrumental para detectar um sentido na vida, ela não sane definir o real valor das coisas, ela não tem antenas para captar a realidade de Deus. Também a ciência é limitada. Dá acesso a determinadas dimensões, não à realidade toda. É bom não superestimar o alcance do saber. Ele não é todo-poderoso.
Ademais, convém perguntar pelos propósitos dos textos bíblicos. Querem realmente informar sobre fenômenos científicos? Não querem antes interpretar realidades? Se a ciência fala em evolução, será proibido ver nela criação? O que muda não são os fatos, mas a maneira como devem ser vistos. O mundo é criação de Deus. Portanto, ele não é nosso, nem estamos abandonados no cormo. Não será verdade isto? O mundo frio da ciência precisa da sabedoria da fé para nele podermos nos sentir em casa.
É isso o que aprendemos na Bíblia. Não precisamos acreditar numa cosmovisão passada. Se o céu é “lá em cima” ou não e se o inferno é “lá embaixo”, disto não depende a salvação. Não devemos perder tempo em discutir o que julgamos cientificamente possível. Mas a perspectiva “teocêntrica” que a Bíblia faz valer, as dimensões da realidade que ela aponta e que a ciência não enxerga, enfim a sabedoria que ela comunida, isto é vital para a nossa existência. Ela é de outra natureza. Consiste naquilo em que podemos depositar a confiança e a partir disto construir um projeto de vida. Qual é o esteio que segura na vida e na morte? É disso que a Bíblia trata.
Pastor Dr. Gottfried Brakemeier, em “Por que ser cristão?”, Editora Sinodal
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