A espiritualidade ecumênica no Brasil
Pe. Elias Wolff
1 - Espiritualidade do encontro e da escuta da diferença
Nesta Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos/2011, nós cristãos somos convidados a vivermos “unidos nos ensinamentos dos Apóstolos...” (At 2,42). Isso impele à reflexão sobre os elementos desse ensino que sustenta a comunhão dos discípulos e discípulas de Cristo. Esses elementos encontram-se de formas diferentes nas diversas tradições eclesiais. Eles nos conduzem à busca comunhão pela vivência de uma espiritualidade ecumênica.
A espiritualidade ecumênica caracteriza-se pelo intento de comunhão das diferentes modalidades de experiência da fé cristã, que acontecem no interior das diferentes igrejas. E configura-se pelo encontro, a escuta e a valorização recíproca das experiências de oração e de vida no interior de cada tradição eclesial, buscando individualizar as efetivas possibilidades da unidade cristã através da mística do diálogo.
A sua explicitação é privilegiada na oração que emerge dos encontros de natureza ecumênica promovidos seja pelas igrejas, seja organismos ecumênicos ou pelos cristãos, os quais em suas comunidades formam grupos ecumênicos espontâneos, alimentando o espírito de convivência e diálogo. Mas é, sobretudo, no interior do coração e da consciência de cada fiel que se forma a espiritualidade ecumênica. Ali o Espírito atua e suscita o diálogo com Deus e com os outros. Assim, a espiritualidade ecumênica não é exclusiva das organizações eclesiásticas e/ou ecumênicas, ainda se está legitimamente ancorada nessas instâncias. Ela tem seu lugar na disponibilidade do cristão em deixar-se guiar pelo Espírito que forma o seu modo de ser, de compreender e de conviver com o outro, construindo uma atitude de vida pautada pela capacidade de convivência, de diálogo e de comunhão.
2 - Uma base comum
Constatam-se três principais elementos que formam a base da espiritualidade ecumênica no Brasil:
1) a fé em Jesus Cristo ao qual todos os cristãos se referem como razão e centro da própria existência. Isso possibilita aos cristãos e suas igrejas abertura para o mútuo reconhecimento de suas tradições, compreendendo que as diferenças na forma de expressar a fé cristã nem sempre significam divergências quanto ao seu conteúdo. Assim, as diferentes concepções da fé cristã e a diversidade de formulações e expressões da espiritualidade, não impossibilitam a busca de caminhos que favoreçam a oração comum entre cristãos de diferentes igrejas.
2) A solidariedade no contexto em que se vive. No Brasil, e na América Latina como um todo, a espiritualidade tem um profundo enraizamento no contexto social das comunidades. Esse contexto é marcado por situações de empobrecimento, miserabilidade, exclusão. Essa situação é comum a cristãos de diferentes igrejas, fato esse que faz do contexto social um chão ecumênico. Consequentemente, a espiritualidade ecumênica que alimenta as práticas de convivência e diálogo dos cristãos nesse contexto, assume ares de profecia. A oração que sobe aos céus é proferida junto com o grito de dor e de sofrimento causados pela injustiça social.
3) O crescimento do movimento ecumênico no Brasil no período pós-conciliar, constatado por três principais fatores: a) o incremento dos organismos ecumênicos tanto a nível nacional quanto a nível local e regional. Destacam-se aqui a Coordenadoria Ecumênica de Serviços – CESE (1973), o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC (1982), e os inúmeros grupos ecumênicos que surgem nas diferentes comunidades, paróquias e dioceses. No interior da Igreja Católica Romana, destacam-se a Dimensão V da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e as Comissões Regionais e Diocesanas para o Ecumenismo; b) o fortalecimento das iniciativas em âmbito nacional, como as Semanas de Oração pela Unidade dos Cristãos e a Campanha da Fraternidade Ecumênica no ano 2000 (haverá outra Campanha da Fraternidade Ecumênica em 2005); c) a emergência de ambientes que vão aos poucos se tornando referência na experiência de uma espiritualidade ecumênica: Casa da Reconciliação, em São Paulo; Mosteiro da Anunciação, em Goiás; os Focolarinos, em várias regiões do Brasil; a comunidade de Taizé, na Bahía.
Esses três elementos são fundamentais para se entender o crescimento das iniciativas que promovem a oração comum entre cristãos de diferentes igrejas. Uma oração realizada em diferentes lugares e situações, mas que acontece motivada pelo mesmo Espírito que promove a unidade. A oração que emerge das práticas ecumênicas vai formando nos cristãos um modo de ser, atitudes e comportamentos ecumênicos que estão na base da espiritualidade ecumênica no Brasil.
3 - A natureza da espiritualidade ecumênica
As iniciativas ecumênicas que se concentram na espiritualidade não se propõe tratar das questões técnicas do ecumenismo, nem fazer análises ou discussões ecumênicas. Visam, sobretudo, partilhar uma comum experiência da fé, buscando alargar as possibilidades de comunhão que tenham na oração a sua fonte e o seu alimento. São iniciativas ainda pouco exploradas, mas certamente as mais profundas e mais promissoras das experiências ecumênicas realizadas, por possibilitarem mais do que outras uma real comunhão de sentimentos, de projetos, de vida. Elas criam um «lugar interior» comum, onde cada fiel encontra-se com o outro e com Deus, de modo que as experiências ecumênicas que configuram a espiritualidade dos que delas participam são os principais estímulos à busca da unidade.
Isso faz com que seja a espiritualidade ecumênica o elemento que permite compreender que as divisões atingem mais os aspectos acidentais e estruturais na Igreja, no que se refere à sua manifestação visível, estruturas de organização e estruturas doutrinárias. Mas em sua essência a Igreja continua una. Por isso o movimento ecumênico é um processo espiritual que possibilita ver que a Igreja em sua realidade mais profunda mantém a unidade e unicidade que Cristo lhe deu. O ecumenismo é um processo espiritual no sentido de estar aberto à inspiração do Espírito Santo que reconcilia e reúne todos os cristãos no Corpo de Cristo. Nesse processo, a espiritualidade é um elemento essencial, mais do que um horizonte ou dimensão.
Enfim, dentre as características principais da espiritualidade ecumenica temos: trinitária – a fonte da espiritualidade é a Trindade, cujo amor do Pai permite ao Filho que nos dê o seu Espírito da unidade. É Cristo quem atua, pelo seu Espírito, no seio da Igreja para levá-la à comunhão com o Pai; ato de fé – a espiritualidade é uma atitude de confiança no projeto unificador que Deus tem para a Igreja e para a humanidade como um todo. O fiel crê que Deus possibilitará a unidade; ato de conversão – não há unidade sem conversão interior, arrependimento comum e mudança do comportamento que dificultam a comunhão. A espiritualidade ecumênica exige a kênonis, a capacidade de esvaziar-se da discórdia, dos rancores e demais motivos de divisão; ato de sacrifício – o desejo de unidade é um projeto, um dom mas também uma tarefa, que exige dedicação, compromisso, sacrifício; ato de profecia – a espiritualidade ecumênica possibilita discernir entre os sinais que conduzem à comunhão e aqueles que a obstaculizam. Ela apresenta o agir ecumênico como um agir profético, proclamando com convicção que a comunhão é o plano de Deus para a sua Igreja.
4 - Interrogações
Muitas interrogações aparecem quando se trata de refletir sobre a espiritualidade ecumênica. Primeiramente, as experiências ecumênicas e as práticas de oração existentes parecem insuficientes para expressar uma verdadeira espiritualidade ecumênica. À oração realizada em conjunto parece faltar uma espiritualidade vivida, e as demais práticas ecumênicas também tendem a permanecer num nível superficial e formal. Há que se agregar valores vitais, um modo de ser ecumênico para se construir uma espiritualidade ecumênica. Segundo, nos últimos tempos, as igrejas parecem estar se distanciando mutuamente, e a fragilidade das relações entre elas incide diretamente na espiritualidade ecumênica. Terceiro, em muitos meios, sobretudo eclesiásticos, não há encorajamento na busca de uma espiritualidade ecumênica. Poucos são os líderes eclesiáticos que se integram nas iniciativas de diálogo e cooperação entre as igrejas.
Essas iterrogações serão respondidas na medida em que as iniciativas que indicam a identidade de uma espiritualidade ecumênica for acompanhada de uma reflexão capaz de individuar equívocos e obstáculos, junto aos resultados consoladores que surgem pela ação do Espírito que atua no interior de cada cristão e de cada Igreja. A todos Ele permite que a voz do Evangelho seja ouvida «na própria língua» (At 2,6). Por isso mesmo, as dificuldades encontradas são em si mesmas um forte convite à oração. Há que se valorizar as iniciativas ecumênicas que acontecem seja motivadas pelas igrejas, seja motivadas pelos organismos ecumênicos ou pelas comunidades dos fiéis. Todos buscam, de algum modo e ao seu modo, experienciar a autenticidade, o significado, as características peculiares da espiritualidade ecumênica. Se Cristo é um, se a Igreja é uma – apesar das diferentes e, inclusive, divergentes concepções – se a oração vai pelo mesmo caminho, se nasce do coração do fiel e se aos poucos vai assumindo uma identidade de expressão, se é possível invocar juntos a Deus em determinadas situações, então comprovada está a possibilidade de uma espiritualidade ecumênica que dê ao mesmo tempo sustento e significado às iniciativas ecumênicas realizadas pelos cristãos comprometidos com a busca da unidade da Igreja.
5 - Conclusão
A regularidade da oração entre cristãos de diferentes igrejas esternaliza uma espiritualidade que vai se configurando sempre mais como ecumênica. Essa espiritualidade assume um significado fundamental não apenas para o movimento ecumênico, mas, e sobretudo, para as igrejas nele integradas. Sob o impulso dessa espiritualidade é que se desenvolve o ecumenismo, oferecendo aos cristãos e suas igrejas a possibilidade de diálogo e comunhão. Não pode haver diálogo verdadeiro onde não existe uma consciente experiência da fé e uma viva espiritualidade que toca essa própria fé. Unindo-se em oração, os cristãos realizam ao mesmo tempo um profundo ato de fé e uma significativa e transcendente comunhão entre suas igrejas. Todos, sem perderem a identidade da sua tradição, condividem um raro momento de fraternidade que supera as barreiras impostas pelos fatores de divisão. Desse modo, a espiritualidade, enquanto emanação da transcendência divina, permanece, junto com a oração, um recurso inesgotável de esperança ecumênica.
Pode-se concluir que tanto para a Igreja Católica Romana quanto para as demais igrejas que se propõe a percorrer os caminhos do ecumenismo no Brasil, é extremamente positiva e frutuosa a espiritualidade ecumênica que vem sendo configurada pelas práticas de diálogo e cooperação entre cristãos de diferentes tradições eclesiais. Ao menos em linha de princípio, existe em todos uma considerável abertura para a espiritualidade ecumênica. Particularmente nas igrejas membros do CONIC, há um notório esforço para que a espiritualidade cultivada não se afirme em oposição às outras igrejas, o que agravaria a situação de divisão entre os cristãos. Assim, no campo da espiritualidade o ecumenismo no Brasil encontra favoráveis condições de crescimento. E isso só pode ser considerado «fruto do Espírito Santo» (UR 4), pois somente Ele possibilita a oração como «a alma do movimento ecumênico» (UR 8).