Juventude Evangélica



ID: 2770

Ensinem o povo a ler! Construam escolas!

10/06/2017

 

Lado PALAVRA

ENSINEM O POVO A LER! CONSTRUAM ESCOLAS!

Pastor Ricardo Rieth1


Estudiosos de diversas áreas do conhecimento reconhecem que o movimento da Reforma do século XVI foi decisivo para a mudança do mundo de então, especialmente no que se refere à educação. Nesta entrevista, o pastor Dr. Ricardo Rieth, fala a respeito da importância da Reforma para formação da cidadania a partir da educação.

Uma das iniciativas mais badaladas da Reforma foi a tradução da Bíblia com a linguagem do povo. O que isso significou em termos educacionais para a época? O povo já sabia ler ou Lutero precisou junto com isso promover a alfabetização?

Ricardo Rieth – Isto teve um impacto muito grande na época. Nós precisamos imaginar que, na Alemanha de então, mais de 95% da população era formada por pessoas analfabetas. De uma hora para outra, tornava-se importante para as pessoas que participavam do culto e das atividades da igreja ter conhecimento e informações a respeito da mensagem cristã, presente na Escritura Sagrada. Porque, para Lutero e os outros reformadores, a Bíblia era a autoridade em termos de igreja e de teologia. Então era muito importante que as pessoas, para poderem participar ativamente na vida da igreja e também da sociedade, tivessem acesso à Bíblia. A Reforma, ao enfatizar esse princípio de autoridade para a vida cristã, para a vida da igreja, para a teologia, para o pensamento cristão... decretou praticamente uma mudança radical em termos da sociedade.

Isto não só afirma quem estuda no âmbito da teologia e da igreja, mas também na área da educação. Há bastante clareza no sentido de dizer que a Reforma teve uma repercussão tremenda na história da educação, justamente por tornar isso acessível para o povo. Se transportamos isso para o Brasil de hoje, onde nas últimas décadas tivemos um crescimento muito grande de igrejas evangélicas, principalmente, as (neo)pentecostais, vai ver o que isso está fazendo em termos de alfabetização da população brasileira. A necessidade de saber ler a Bíblia tem feito o que programas de alfabetização em décadas passadas, como o Mobral, por exemplo, jamais alcançou. As pessoas estão sendo alfabetizadas no Brasil para a leitura da Bíblia e isso lhes abre novos caminhos e novas possibilidades, como foi na época da Reforma.

Em termos mais específicos, quando o povo se apropriou do alfabeto, como é que, na sua avaliação, isso repercutiu na sociedade da época, em termos de participação cidadã, por exemplo? 

Ricardo Rieth – Qual era a ideia fundamental de Lutero em termos de participação na vida da igreja e na vida da sociedade? Ele achava que as pessoas não deveriam se sujeitar a uma autoridade que, supostamente seria colocada por Deus na vida delas. Ele destacava, a partir de diferentes textos do Novo Testamento, o chamado “sacerdócio geral” de todas as pessoas crentes, ou seja, a pessoa que é batizada se torna uma sacerdotisa na igreja, ocupa a função mais elevada, e isso quer dizer que temos uma igreja toda ela de sacerdotes e sacerdotisas.

Como assumir essa parcela de poder que se recebe a partir do batismo? Justamente, estando próximo daquela que é fonte de autoridade para distinguir e decidir coisas dentro da igreja, que é a Escritura Sagrada. Isso teve uma repercussão muito grande para fora das comunidades. Podemos encontrar estudos, por exemplo, no campo da ciência política, que mostram o quanto as organizações mais democráticas de lideranças comunitárias a partir da Reforma (seja da Reforma Luterana, seja da Reforma Calvinista) acabaram sendo transportadas para fora do ambiente eclesial e foram incorporadas na vida política de então. Ali nós tivemos as primeiras experiências democráticas que se consolidaram depois, nos séculos posteriores. Basicamente, o acesso à leitura e à informação fez com que as pessoas tivessem mais condições de decidir, de atuar, de participar, e isto foi o fundamental na Reforma.

No âmbito agora doméstico, aos pais e às mães são dadas tarefas específicas na educação dos filhos e das filhas - Lutero entendia assim também. Quais são algumas dessas atribuições que Lutero ressaltou e que ainda hoje permanecem atuais? E quais foram esquecidas ao longo do tempo e precisam ser resgatadas?

Ricardo Rieth – Bem, a primeira grande tarefa dos pais e das mães era a de enviar os filhos e às filhas à escola. Lutero tem, inclusive, um livrinho que ele escreveu chamado Uma Prédica para que os Pais mandem os Filhos para à Escola. No momento em que a Reforma afirmou que a pessoa não é salva pelas suas obras, por aquilo que ela produz, mas por aquilo que Deus faz, bastando reconhecer sua condição de injustiça e acolher a justiça que Deus oferece em Jesus Cristo, houve muita gente que pensou: “bom, agora eu não preciso fazer mais nada! Agora eu também não preciso me ocupar mais com a manutenção das escolas.” Isto aconteceu tanto da parte de autoridades, quanto da parte de pais e mães. Então Lutero foi muito incisivo no sentido de exigir que os pais e as mães mandassem os filhos e as filhas à escola, que as autoridades mantivessem estas escolas, dessem condições de funcionamento para elas. E por quê? Porque é a única forma de, tanto na igreja, quanto na sociedade, acontecer aquilo que Deus quer para a igreja e para a sociedade. Na igreja, fundamentalmente, que o Evangelho seja pregado. Para isto é preciso que pessoas preparadas estejam ali. Como fazê-lo sem que as pessoas estejam nas escolas, sem que as crianças e jovens tenham formação? A mesma coisa se espera das pessoas preparadas para atuar na sociedade, para dirigir politicamente a sociedade. Isto não poderia acontecer sem que, em um primeiro momento, os pais e as mães não  mandassem seus filhos e suas filhas à escola e não participassem ativamente na sua educação formal. Lutero tem páginas e páginas escritas a respeito disso, muitas delas já à disposição em português.

Na história da Igreja Luterana no Brasil, essa tradição, esse incentivo também estava presente no fato de que muitas das suas comunidades construíram escolas, muitas vezes até antes dos templos. Isto é um traço característico da fé luterana ou é um traço de germanidade, relativo à imigração alemã? 

Ricardo Rieth – Eu diria que são as duas coisas, porque, veja: nós tivemos também imigrantes de origem católica que vieram pra cá e que procederam da mesma forma. Mesmo em precárias condições, criaram e mantiveram escolas, sustentaram professores e professoras. Sem dúvida, isso foi uma decorrência de todas as transformações que isso foi uma decorrência de todas as transformações que aconteceram na Alemanha a partir da Reforma. A Reforma não só transformou aquelas igrejas que assumiram a sua mensagem, mas também transformou as igrejas que repeliram a sua mensagem. Por exemplo, a questão da leitura da Bíblia que nós falamos antes, um culto mais próximo da língua do povo... isto influenciou decisivamente também o catolicismo na Alemanha e fez com que, também, a atenção fosse concentrada para as escolas. Por isso, eu diria que as duas coisas.

A Reforma, a partir do século XVI, colocando ênfase numa educação pública, numa educação popular, acabou influenciando de tal maneira todo o meio que inclusive as comunidades católicas também adotaram isso e isso acabou marcando fundamentalmente a sociedade alemã. Quando as famílias imigrantes chegam ao Brasil, a partir das primeiras décadas do século XIX, a primeira coisa que elas vão fazer é organizar escolas, enfim, se organizar. Quero dizer, esse espírito comunitário, esse espírito associativista que, a partir das iniciativas coletivas busca apoio para as pessoas do grupo, foi decisivo na imigração. Sem dúvida alguma, isso não veio do nada. A Reforma foi um dos momentos importantes que criou essa consciência.

O que Lutero pensava sobre as obrigações dos governos em relação à educação. Qual é a tarefa que o cidadão e a cidadã pode exigir do poder público?

Ricardo Rieth – Fundamentalmente que o poder público crie e mantenha escolas. Lutero não pensava em escolas que não fossem mantidas pelas autoridades. Ele tem diversos escritos em que insiste neste aspecto. As autoridades estão cometendo um crime contra a sociedade e contra o povo se elas não criam as condições para que as escolas estejam à disposição. Lutero insistiu muito nisso e foi muito duro na sua linguagem em relação a príncipes, em relação a prefeitos, em relação a vereadores na época. Ele não media suas palavras neste sentido porque sabia que aqui havia uma questão crucial, da qual dependia não só a vida na igreja, mas da qual dependia a manutenção de toda uma ordem social. Sem escolas, sem uma educação formal, isso seria inviável. Daí a insistência de Lutero.

Eu acho que as pessoas que, de uma forma ou de outra, se identificam com o movimento da Reforma, deveriam levar bastante a sério essa insistência e procurar agir de forma semelhante no contexto em que elas estão. Embora a gente viva hoje em dia numa época complemente diferente, em outro lugar, com novos desafios, isso não só se perdeu. Nós muitas vezes  pecamos por não insistir nesse aspecto. Abrimos mão muito rapidamente de algo que é fundamental para a nossa sociedade e para a vida em comunidade.

1 Entrevista concedida ao jornalista Ricardo Fiegenbaum no Programa Comunidades Em União, da Rádio União FM, de Novo Hamburgo/RS, em outubro de 2001. 


Este estudo teve a linguagem revista e atualizada. A proposta integra o volume 3 da Coleção Palavração denominado “Graça e Fé: temperos para a vida”, publicado em 2003 pelo Departamento Nacional para Assuntos da Juventude da IECLB – DNAJ, sob a coordenação de Cláudio Giovani Becker e impresso por Contexto Gráfica e Editora (ISBN 85-89000-14-1).  


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Martim Lutero
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