EUCARISTIA E UNIDADE ECLESIAL
Juan A. Ruiz de Gopegui, SJ
OS IMPASSES DO ECUMENISMO
As dissensões em torno à maneira de conceber e celebrar a eucaristia tiveram um grande peso nos motivos que levaram comunidades inteiras a se separarem da plena comunhão com a Igreja católica, na época da Reforma. Quando, transcorridos quatro séculos, começam a aparecer, no horizonte das Igrejas, sinais promissores de uma possível restauração da unidade, tão profundamente ferida, as esperanças se concentram em torno à eucaristia.
Em todos os documentos de caráter ecumênico, dos últimos anos, — Declaração comum sobre a doutrina eucarística, da Comissão Anglicano-Católica;1 o Acordo sobre a Eucaristia, do Grupo de Dombes,2 o Relatório de Malta,3 A Ceia do Senhor,4 da Comissão Luterano-Católica, o documento de Lima, Batismo, Eucaristia, Ministério5 — a eucaristia ocupa um lugar central.6 Aliás, não é de admirar, quando se lembra a afirmação tão cara aos Pais7 da Igreja de que na eucaristia se concentra a totalidade do mistério cristão, totum mysterium. Não deve causar admiração que a bandeira da Reforma, sola gratia ou sola fide, alçada evidentemente contra o conjunto da prática católica do cristianismo, pudesse repercutir de forma especial na prática eucarística.
Não se pode ignorar, no entanto, que, se os documentos dos grupos de trabalho dão esperanças fundadas de uma reunificação das Igrejas, na medida em que eles manifestam um consenso doutrinal em pontos básicos, como batismo, eucaristia e ministérios, o panorama da prática comum e de mentalidade do conjunto das Igrejas deverá passar por um longo processo de conversão.
Conversão, em primeiro lugar, do coração, para uma acolhida mais fraterna dos irmãos separados. Conversão da inteligência e das mentalidades, porque, se é verdade que grupos de teólogos, num abnegado esforço de reflexão doutrinal e de diálogo, que se estende já por duas gerações,8 podem chegar a um consenso na compreensão da eucaristia, superando preconceitos e dissensões seculares, a grande maioria do povo cristão ignora esses resultados e sua prática eucarística continua mareada por formas e atitudes que estão longe de facilitar a compreensão mútua. Conversão dos organismos oficiais que controlam e determinam os caminhos da doutrina e da prática das Igrejas e que até hoje não foram capazes de chegar a muitas declarações públicas a respeito dos consensos alcançados e muito menos a gestos litúrgicos, mais amplos, de reconhecimento mútuo. Por outro lado, parece que o entusiasmo ecumênico suscitado pelo Concílio passa atualmente por um momento de arrefecimento.9 Quanto posso observar, na Igreja católica estão ressurgindo, com força, práticas fortemente marcadas pelos aspetos mais ambíguos da expressão católica da fé, aqueles mesmos que obrigaram Lutero a lutar por uma volta ao Evangelho.
Ao mesmo tempo, se nos documentos procedentes dos organismos oficiais da Igreja católica persiste como objetivo o desejo de continuar o movimento ecumênico suscitado pelo Concilio, as práticas concretas do ministério e das celebrações da eucaristia nem sempre apontam para o horizonte aberto por tais documentos.10
Não se trata de acusar de má vontade as pessoas ou os grupos envolvidos em tais atitudes nada ecumênicas. Há um problema de fundo, que não pode ser resolvido facilmente com ideias ou documentos. Trata-se da força das mentalidades, que carregam um lastro cultural e ideológico acumulado durante séculos.
É por isso que este artigo pretende fazer o caminho de volta às origens de certas mentalidades, para encontrar-lhes as causas, tentando descobrir como elas podem permanecer intatas, mesmo sob a aparência de práticas renovadoras. Um caminho longo, que poderá parecer a alguns supérfluo, mas que, talvez, no termo, se revele fecundo.
Não foi esse penoso caminho de volta que fez a geração, tão contestada, a qual preparou o Concílio, através da renovação litúrgica, bíblica e patrística, que confluíram naturalmente para o diálogo ecumênico? Na Bíblia, na prática litúrgica dos primeiros séculos, na concepção da eucaristia dos Pais da Igreja, reformados e católicos renovados podiam encontrar-se e reconhecer-se. Não será por não ter feito esse caminho que muitos da geração mais jovem se perdem em aspetos periféricos da Reforma litúrgica e procuram segurança fácil em formas ancestrais da religiosidade, conduzidos pelos que nunca chegaram a penetrar no espírito profundo da Reforma?
A EUCARISTIA NOS TEMPOS DA DIVISÃO
Quatrocentos e quarenta anos após a divisão, Paulo VI, no discurso de abertura da segunda sessão do Concílio Vaticano II, saudando os observadores de outras Igrejas ou comunidades cristãs, afirmava:
Se, nas causas desta separação, culpa nos pudesse ser imputada, humildemente pedimos perdão a Deus e solicitamos também o perdão dos irmãos que se sentissem ofendidos por nós. E no que nos concerne, estamos prontos a perdoar as ofensas de que a Igreja católica foi objeto e a esquecer as dores que ela experimentou na longa série das dissensões e das separações. Que o Pai celeste acolha nossa declaração e nos conduza a todos a uma paz verdadeiramente fraterna.11
É com esse espírito que este artigo pretende ser escrito e com esse espírito deveria ser lido e interpretado. Não estamos acostumados a olhar os irmãos de outros grupos religiosos com o olhar ecumênico de Paulo VI. Caberia, inclusive, perguntar-se se a atitude ecumênica dos tempos conciliares vigora ainda nos tempos atuais, ou se estamos caminhando na direção de acentuar as diferenças em oposição ao outro. Atitudes ecumênicas não progridem necessariamente com o progredir dos tempos. Não se regem pelo poder arrastador das modas. Exigem sempre trabalho do Espírito no interior de um coração abnegado. Exemplo disso pode ser a atitude do Papa Adriano VI, que, nos tempos tormentosos da Reforma, num brevíssimo pontificado (1522-1523), tentou encaminhar a Igreja católica pelos caminhos de uma reforma que julgava necessária. Eis o texto que fez ler ao Núncio Chieregati, na dieta de Nürnberg, no dia 25 de novembro de 1522:
Reconhecemos livremente que Deus permitiu esta perseguição da Igreja por causa dos pecados dos homens e particularmente dos padres e dos prelados [...]; sabemos que mesmo na Santa Sé, desde faz anos, vêm-se cometendo muitas abominações: abuso das coisas santas, transgressões dos mandamentos de tal sorte que tudo se tomou escândalo. Não há por que admirar-se de que a doença tenha descido da cabeça aos membros, dos papas aos prelados. Todos nós, prelados e eclesiásticos, nos temos desviado do caminho da justiça. Há já muito tempo que ninguém faz o bem, e é por isso que todos nós devemos adorar a Deus e humilhar-nos diante dele; cada um de nós deve examinar-se a si mesmo com mais rigor do que será julgado por Deus no dia de sua cólera. Em consequência, prometerás em nosso nome que nós poremos todo nosso empenho em começar a melhorar a corte de Roma da qual talvez tenha provindo todo o mal; é dela que sairá a cura, como dela veio a enfermidade.12
Centrando-nos no tema da eucaristia, donde nascia o mal-estar dos reformadores perante a prática e a doutrina católicas?
Na época de Lutero, o culto eucarístico tinha alcançado proporções desmesuradas até ao ponto de obscurecer o verdadeiro sentido da celebração da eucaristia. A mesa do Senhor raramente tinha comensais. As controvérsias suscitadas nos fins do século XI pelos ensinamentos do brilhante professor de Tours, Berenger, que pareciam propugnar uma presença do Cristo na eucaristia meramente simbólica, tinham provocado uma reação em sentido contrário até ao ponto de desviar a devoção popular. A celebração do mistério pascal cederá o espaço à crescente devoção à simples13 presença real, embora velada, do Cristo na hóstia. Presença imaginada com um realismo impossível de harmonizar com o caráter sacramental da presença. O Papa Nicolau II tinha feito Berenger assinar, no Concílio de Roma, de 1059, a seguinte declaração:
[...] o pão e o vinho que são postos sobre o altar, depois da consagração, são não somente o sacramento, mas também o verdadeiro Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, e sensivelmente (sensualiter), não só no sacramento, mas em verdade, é manipulado (tractari) e partido pelas mãos do sacerdote e triturado (atteri) pelos dentes dos fiéis'.
O próprio Tomás de Aquino teve que mostrar que esse tipo de linguagem não pode ser admitido para expressar a presença sacramental do Cristo na eucaristia. Essa presença não pode ser pensada como presença física e sensível, passível de ser tocada, partida e mordida. Mas no imaginário popular as controvérsias sobre a presença real deixaram marcas indeléveis.
Mais importante que comungar era ver a hóstia. Ao menos, mais acessível, quando o rigor da prática penitencial, aliado ao realismo sensível, que não podia deixar de inspirar temor reverencial, foi afastando os fieis da comunhão.14 Na maior parte das missas, mesmo estando presente o povo, só o celebrante comungava.15 Incomodavam também aos reformadores as missas que os fiéis encomendavam a um sacerdote, sem a menor intenção de estarem presentes na celebração.
A importância de ver a hóstia, como presença velada do Cristo, deixou marcas na própria celebração da eucaristia. A elevação da hóstia e do cálice se tornaram mais importantes que o rito de comer o pão da vida e beber o cálice da salvação. É também esse desejo de ver que impulsionará o desenvolvimento de procissões cada vez mais espetaculares, que se estendem até aos campos, como ritos exorcísticos, para proteger as lavouras.16
Como dado pitoresco do extremo ao qual chega o valor dado ao ver a presença velada do Cristo, A. Franz conta a pitoresca estória de um condenado, que no inferno tinha o privilégio de ter o rosto e as mãos brancas, porque tinha visto com prazer o corpo de Cristo.17 Esse desejo ver a hóstia levou inclusive a mitigar certas normas rígidas de clausura monástica.
Se tal forma de devoção pode ter ajudado os mais esclarecidos a crescer no amor ao Cristo crucificado, não há dúvida de que tinha o perigo de desfigurar o verdadeiro sentido da celebração da eucaristia. Até quase às vésperas do Concílio Vaticano II, a participação do cristão na eucaristia se exprimia como ouvir a missa e, quando foi restabelecida a prática da comunhão frequente, esta era vista de forma um tanto dissociada da celebração. Quantos debates e sofrimentos não foram necessários, até poder chegar-se à afirmação — sem incorrer na suspeita de heresia — de que é a assembleia litúrgica. que celebra a eucaristia. O Cristo-cabeça com o seu corpo, como se expressará a Sacrosanctum Concilium.18
Reagindo contra esse deslocamento da prática eucarística, Lutero rejeita qualquer forma de culto eucarístico, que não seja a celebração da Ceia, para a comunhão do corpo e do sangue do Senhor. É isso que o leva a limitar a presença do Cristo ao pão que será consumido na comunhão19 e a reivindicar a comunhão no cálice como direito dos leigos, em virtude da instituição do Cristo.
Tivesse Lutero afirmado a conveniência da comunhão no cálice, para a plena manifestação do sinal sacramental da entrega do corpo e do sangue do Cristo imolado na cruz, sem condenar como errôneo e até sacrílego o costume introduzido gradualmente na Igreja, a partir do século XII, de dar a comunhão aos leigos só sob a espécie do pão, a sua reivindicação seria totalmente justa. Alguns dos Padres conciliares viram a pertinência da proposta e a conveniência, pelo bem da paz e da união, de conceder a comunhão do cálice aos leigos de alguns países que o pediam, e remeteram isso à prudência do Papa. Mas tiveram que passar mais de quatro séculos para que isso acontecesse, e com não poucas restrições.
O que se quer ressaltar, ao lembrar esses debates, são os condicionamentos que impossibilitaram, na época, um verdadeiro diálogo. Entre eles está a desmesurada importância teológica de uma determinada explicação da presença real, pensada quase à margem da própria celebração da eucaristia. A resposta do Concílio ao pedido do cálice para os leigos deu-se a partir do princípio da presença real do Cristo, todo inteiro em cada uma das espécies.
Por isso também não foi possível um entendimento quanto ao caráter sacrificial da eucaristia, negado veementemente por Lutero e pelos reformadores, em nome do princípio da salvação pela fé e não pelas obras. O Concílio de Trento deu uma resposta correta, ao afirmar, na sessão XXII, que a missa é memória, presencialização e aplicação do sacrifício pascal do Cristo, assim como a ceia pascal dos judeus era memorial e atualização do acontecimento do Êxodo (cf. DS 1741) e que, enquanto memorial e presencialização do sacrifício da cruz, é sacrifício propiciatório para o perdão dos pecados, porque é o mesmo sacrifício da cruz, cruento no calvário, incruento na eucaristia (DS 1743).
Essa distinção não parece tão feliz como a que fizera Sto. Tomás: sacrifício histórico e sacrifício comemorativo. Ao falar da eucaristia como sacrifício incruento, Trento dá asas a que se pense o sacrifício da eucaristia como sacrifício absoluto, independente, em algum aspeto, do sacrifício da cruz, frente à afirmação explícita de Santo Tomás de que o sacrifício da eucaristia é verdadeiro sacrifício na própria relação ao sacrifício da cruz: Sacrificium autem quod quotidie in ecclesia offertur non est aliud a sacrificio quod ipse Christus obtulit, sed eius commemoratio (S. Th 3,q.22 a.3).
Por outro lado, os reformadores afirmam também claramente que a eucaristia é o memorial do sacrifício da cruz, único e irreiterável. Se Lutero via na afirmação da missa como sacrifício a negação da eficácia do único sacrifício do Cristo, regredindo para uma concepção da salvação pelas obras, é preciso reconhecer que a teologia da época sobre o sacrifício, aliada à ambiguidade da prática das missas encomendadas e dos estipêndios, podia dar ocasião para tanto. Hoje podemos ver claramente que Lutero, na realidade, não negou o que a fé apostólica nos transmite a respeito da eucaristia como sacrifício de Cristo. Alguns dos seus textos sobre a eucaristia expressam, possivelmente melhor que outros de teólogos católicos da época, a fé cristã a esse respeito. Veja-se este belíssimo texto citado por Max Thurian:
Nós não oferecemos a Cristo, senão que é Cristo quem nos oferece (a Deus). Dessa forma é lícito e mesmo útil chamar a cerimônia de sacrifício. Dito de outra forma: apoiamo-nos em Cristo, com uma fé firme na sua aliança e nos apresentamos ante Deus com nossa oração, nosso louvor e nosso sacrifício só em nome de Cristo e por sua intercessão [...] sem duvidar de que ele é nosso sacerdote no céu diante de Deus. Cristo nos acolhe, apresenta-nos (a Deus), a nós, juntamente com nossa oração e nosso louvor, também se oferece por nós no céu e nos oferece com ele (1520, ed. Weimar VI, 369).20
Que bela exposição sobre a eucaristia como sacrifício de louvor! Que teólogo católico deixaria hoje de subscrever esse texto? Mas na época a reflexão sobre esse tema estava pouco desenvolvida. Prova disso é que a teologia pós-tridentina sobre o sacrifício da missa enveredou pelos caminhos mais estranhos para explicar o caráter sacrificial da eucaristia. Partia-se de uma noção de sacrifício tirada da história das religiões e do Antigo Testamento, sem levar em conta a superação dessa noção que se dá já no mesmo Antigo Testamento e muito mais nas afirmações da carta aos Hebreus sobre a abolição dos sacrifícios sangrentos. Pense-se nas teorias de Tanner, de Suárez, de Belarmino, Vázquez, Leys, Juan de Lugo, Franzelin, Billot, cada uma delas corrigindo a anterior, na tentativa de encontrar, na própria celebração da eucaristia, alguma ação que manifestasse destruição de uma vítima. Mesmo um Fanzelin, o qual muito acertadamente afirma que o que constitui a morte de Cristo como sacrifício não é a materialidade da morte, mas a sua voluntária aceitação, ao tentar explicar a eucaristia como sacrifício, aderindo à teoria de Lugo, afirma que pela consagração o corpo de Cristo é posto num estado de abaixamento (status declivior) que o torna inepto para os usos ordinários do corpo humano e apto para servir de alimento.
Nessas teorias se concebe o sacrifício da eucaristia (embora relacionado com a cruz) como um sacrifício, de alguma forma, à parte, que deveria ter em si mesmo algo que o constituísse como sacrifício. Certamente isso é consequência da dissociação, na reflexão teológica, da eucaristia enquanto sacramento e enquanto sacrifício.
Por outro lado, a quase quantificação do valor da eucaristia pelo número de celebrações, mais do que pela qualidade e pela significação da celebração para uma comunidade, podia favorecer a objeção de Lutero. Não há dúvida de que a teologia e a prática, que vigoravam na época a respeito da eucaristia, tiveram grande responsabilidade na série de mal-entendidos em torno ao sacramento da unidade cristã, os quais se tornaram fonte de uma divisão que só quatro séculos depois apresenta esperanças de superação.
Mas, se essas esperanças nascem do esforço paciente e abnegado de grupos movidos por um espírito ecumênico, elas só se tornarão realidade, quando as Igrejas por eles representadas estiverem dispostas a uma verdadeira conversão para superar preconceitos e atitudes com raízes multisseculares. Vale a pena tentar compreender melhor as raízes dessas atitudes.
AS ORIGENS DA TEOLOGIA TRIDENTINA SOBRE A EUCARISTIA
A controvérsia suscitada por Berenger de Tours é a linha divisória de duas formas de conceber a teologia da eucaristia, que se estendem, cada uma delas, por cerca de um milênio. Como mostra Giraudo, a teologia eucarística do primeiro milênio, a teologia dos Pais da Igreja, é uma teologia feita a partir da lex orandi. A do segundo milênio, uma teologia a partir da lex credendi. Melhor diríamos da lex theologiae dominantis. Uma explicação teológica particular, redutiva da riqueza bíblica, embora não falsa, domina toda a compreensão da eucaristia e, indiretamente ao menos, deixa marcas na configuração da própria celebração. No momento atual, a teologia da eucaristia tenta voltar ao antigo axioma teológico legem credendi lex statuit supplicandi — a lei da oração estabelece a lei da fé21. Evidentemente isso não teria sido possível sem a renovação litúrgica, consagrada pelo Concílio Vaticano II, que permitiu penetrar mais facilmente nas riquezas da eucologia litúrgica, superada a rigidez do ritual romano anterior.
A teologia que dominou no segundo milênio — as controvérsias da época da Reforma já devem ter mostrado isso de alguma forma — tratava de explicar a eucaristia por noções exteriores ao próprio mistério. A presença eucarística se explicava pela noção filosófica de transubstanciação. Não se nega a verdade das suas afirmações dentro das noções aristotélicas de substância e acidente. Mas, como diz muito pertinentemente X. Durrwell, essa teoria não concerne verdadeiramente à eucaristia, não a afeta. A eucaristia é o sacramento pascal, escatológico, e a teoria da transubstanciação se mostra indiferente ao mistério pascal, ignora-o e se situa em outro lugar.22
O conceito filosófico de transubstanciação não dá a razão teológica da transformação da substância do pão no corpo de Cristo, deixando intatos os acidentes. Certamente a teoria não pretende dizer que Deus pode fazer isso com qualquer substância e em quaisquer circunstâncias, porque isso introduziria a arbitrariedade na criação. E o poder divino é identicamente a sua sabedoria.
Nessa explicação da transformação de uma substância em outra, deixando intatos os acidentes, o corpo escatológico do Cristo é situado no mesmo nível do pão. Nesse plano horizontal é lógico concluir que a eucaristia não é de nenhuma maneira pão e vinho, pois nesse nível uma realidade deixa de existir, logo que foi transformada em outra. Mas a relação do pão e do vinho com Cristo é a relação das realidades terrenas com a plenitude escatológica e não se situa, portanto, em nenhuma das categorias de Aristóteles.23
E mais, dentro do círculo estreito das categorias de Aristóteles, não há lugar para compreender as realidades sacramentais em profundidade.
Tomás de Aquino é consciente disso, quando adverte: Aqueles que usam documentos filosóficos na explicação da Sagrada Escritura para a inteligência da fé, não devem misturar a água ao vinho, mas transformar a água em vinho.24 Lamentavelmente a escolástica posterior converteu o que pretendia ser um caminho para a teologia, numa determinada conjuntura histórica, num sistema, dando ocasião para não poucos equívocos.
O sacramento quer expressar precisamente a incursão das realidades escatológicas nas realidades terrenas. Isso pertence ao Mistério escondido durante séculos e revelado em Cristo. Não sem razão, a palavra sacramentum traduz o termo grego mystêrion.
A teologia dos Pais da Igreja não abandona nunca o plano teológico, escatológico e sacramental. Por isso a sua linguagem conjuga tranquilamente sacramento, símbolo e figura com realidade do corpo e do sangue ou com presença real. A rica eucologia do Missal romano conjuga tranquilamente corpo e sangue com pão da vida e vinho da salvação ou com sacramento do corpo e do sangue de Cristo.
L. Bouyer, já em 1966, chamava a atenção sobre o fato de que as teologias sobre a eucaristia quase nunca são a teologia da eucaristia: uma teologia que procede dela, em lugar de vir se aplicar de fora, bem ou mal, ou se reduzir a sobrevoá-la, sem jamais se dignar tomar contato com ela.25 Deixar-se guiar pela própria celebração, pelos próprios textos e ritos da liturgia eucarística é a única forma de voltar a uma teologia da eucaristia.
L.-M. Chauvet, no seu excelente tratado sobre o sacramento,26 nos alerta sobre o mesmo fato. Só pode ser pensada uma teologia dos sacramentos, partindo do ato da celebração da Igreja, ou seja, da maneira como a Igreja significa ou simboliza aquilo que realiza. O sacramento age significando: no mesmo ato de significar a ação do Cristo é que essa ação se realiza.27
O que está ausente realmente nas teologias sobre a eucaristia, que dominaram durante o segundo milênio, foi algo que esteve ausente, nesse longo período, da teologia em geral: o poder salvífico da ressurreição, ou o que vem a ser o mesmo, a unidade do mistério pascal, do qual a eucaristia é memorial. X. Durrwell chamou vigorosamente a atenção acerca dessa lacuna, num livro28 pioneiro que teve numerosas edições. No tratado, De Christo Redemptore, das faculdades de teologia, a ressurreição era apenas um corolário de uma das teses. A redenção era pensada apenas a partir dos méritos do Jesus terreno na cruz. A eucaristia era concebida como uma ação da Igreja, através da qual os méritos da cruz, como que acumulados num grande reservatório, eram distribuídos e aplicados.
Essa ausência de atenção à ação salvífica da ressurreição caracteriza a reflexão da teologia ocidental do segundo milênio sobre a eucaristia. Ela tem como consequência a ausência da reflexão sobre o Espírito. Costuma dizer-se que a teologia ocidental sobre a eucaristia é mais cristológica em relação à teologia oriental. Essa caracterização não vai à raiz do problema, que está no tipo de cristologia da teologia ocidental: uma cristologia que ignora praticamente a ação do Senhor ressuscitado, que se realiza através do seu Espírito. Uma teologia em clave jurídica e não pascal. Por isso mesmo, escassamente pneumatológica.
ORAÇÃO EUCARÍSTICA E PALAVRAS DA CONSAGRAÇÃO
Um caso particular do olvido do Espírito e do mistério pascal, na teologia ocidental do segundo milênio sobre a eucaristia, é a tendência crescente de atribuir o poder da consagração às palavras do celebrante, que seriam pronunciadas in persona Christi, contrariando toda a estrutura literária da oração eucarística, toda ela dirigida ao Pai, numa unidade eucológica, em nome da assembleia. Para os Pais da Igreja, a conversão do pão e do vinho no sacramento do corpo e do sangue de Cristo tem lugar durante a oração eucarística, considerada na sua unidade, que contém geralmente uma invocação explícita do Espírito Santo sobre a assembleia e sobre o pão e o vinho, e o relato da instituição, embora em algumas orações só. de forma indireta se aluda a esta. É o Espírito Santo que, em virtude das palavras de Jesus, realiza a conversão dos dons, para que a assembleia pela comunhão se torne o corpo de Cristo.
Cirilo de Jerusalém, nas Catequeses Mistagógicas, dá a razão dessa súplica e da sua eficácia: Tudo quanto toca o Espírito fica santificado (V, 7). Teodoro de Mopsuéstia mostra que o fundamento da confiança da Igreja na invocação do Espírito está na instituição de Cristo, que não disse: Isto é o símbolo de minha carne, senão: isto é meu corpo [...I, ensinando-nos que não devemos considerar a natureza do que se oferece, senão que, pela intervenção da ação de graças, acontece a conversão no corpo e no sangue.29
Como é sabido, a tendência no Oriente foi acentuar o papel do Espírito, enquanto no Ocidente se deu mais ênfase à eficácia das palavras da instituição. Isso deu lugar, já no século IX, a dissensões: os teólogos orientais, em debate com os latinos, postulavam para a consagração, além das palavras da instituição, a epiclese ou invocação do Espírito.
Atualmente, os teólogos voltam a afirmar com os Pais da Igreja o caráter consecratório de toda a oração eucarística. Uma das redescobertas mais importantes da teologia e da piedade eucarística, na metade do século XX, é a da unidade da oração eucarística. Esta redescoberta se afirma de maneira característica na Institutio generalis do Missale Romanum de Paulo VI, afirma P.-M. Gy. O autor cita os n. 48, 54 e 55, da Institutio.30
Na primeira publicação, a Instrução assume claramente o caráter consecratório de toda a oração eucarística. A forte oposição, em alguns setores, obriga a Paulo VI, pelo bem da paz, a acrescentar-lhe um proêmio e algumas pequenas correções aos n. 7, 48, 55d e 60, que introduzem certa ambiguidade.
O acréscimo, no número 55, item d), do termo consagração31 reforça a opinião comum dos fiéis do caráter quase mágico das palavras pronunciadas pelo sacerdote e obscurece a ação do Espírito.
Mas é preciso chegar ao século XII, para que a tendência a concentrar o poder consecratório da oração eucarística se radicalize, a partir de uma interpretação de Pedro Lombardo de afirmações de Santo Ambrósio, tiradas do seu contexto, como mostra Gy.
Ambrósio, apresentando aos neófitos o Cânon romano, quer mostrar-lhes a origem divina dos sacramentos e fundamentar a fé de que o pão e o vinho, após a consagração, são o corpo e o sangue de Cristo, na eficácia das palavras do Senhor, que o sacerdote pronuncia no relato da instituição. É a Palavra de Cristo que produz o sacramento, afirma.32 A ênfase de Ambrósio está no poder da palavra de Cristo, uma palavra celeste, que criou os céus e a terra e que, portanto, pode transformar o pão no seu corpo. A partir de Pedro Lombardo, a ênfase é deslocada para o poder das palavras do sacerdote que pronunciaria as palavras consecratórias in persona Christi.
No final do século XII, aparece a questão de que, se o sacerdote empregasse as palavras do Cristo, fora do contexto da oração eucarística ou até fora da assembleia litúrgica, teria lugar a consagração. Houve teólogos que responderam afirmativamente, argumentando que Cristo não acrescentou outras orações. Quia nec Dominus sollemnitates apposuit, afirma-se, esquecendo ou ignorando o denso conteúdo da berakhah ou ação de graças do Cristo na ceia. Faz-se a ressalva, contudo, de que tal sacerdote deveria ser punido. Mas, mesmo sem chegar a afirmação tão radical, muitos teólogos afirmam que só as palavras de Cristo pertencem à substância do sacramento, embora não tirem a consequência lógica de não serem necessárias as palavras do Cânon.33
Muito significativa nesse debate é a argumentação de um teólogo de Paris: Há quem diga que, se alguém, cavalgando, tendo pão na mão, dissesse 'isto é meu corpo' dar-se-ia a transubstanciação, como Rogério Cardeal. Penso que não, porque, omitidas as palavras que precedem de perto, não teria lugar, já que nesse caso o sacerdote usaria aquelas palavras de forma significativa (significative) e como próprias, não de forma representativa e como palavras do Senhor [...]. Essa distinção se aproxima da que faz Inocêncio III, com muita pertinência: non enunciative sed recitative. Quer dizer: o sacerdote pronuncia estas palavras no relato da instituição feita por Cristo. Mais explicitamente dirá Alexandre de Hales: Esta oração é recitativa enquanto é daquele que a pronuncia, factiva enquanto é de Cristo.
Tudo isso mostra a dificuldade que os escolásticos tiveram para situar corretamente o contexto narrativo das palavras de Cristo, dentro de uma oração de ação de graças e de invocação do Espírito sobre os dons e sobre a assembleia. Não há dúvida de que suas reflexões foram condicionadas pela necessidade de determinar inequivocamente a matéria e a forma do sacramento, dentro da teoria sacramental vigente.
Graças aos estudos das origens judaicas das orações eucarísticas, hoje podemos, com toda segurança, afirmar que o relato da instituição, no interior de uma súplica, citando a Escritura, é um procedimento comum na berakhah e no seu antecedente, a todah, a modo de embolismo, como locus theologicus escriturístico, do mistério de que se faz memória.34
Como exemplo simples de embolismo, no interior de uma súplica, veja-se este na oração de Jacó em Gn 32, 10-13:
“10 Deus de meu pai Abraão, Deus de meu pai Isaac, Senhor, tu que me disseste: 'Regressa para tua terra e tua parentela e eu te farei bem',
11 sou pequeno demais para todos os favores e toda a fidelidade que dispensaste a teu servo! Pois eu havia passado o Jordão só com o meu bastão e agora formo dois acampamentos.
12 Eu te peço, salva-me da mão de meu irmão, da mão de Esaú, pois tenho medo dele. Tenho medo de que ele venha matar a mim e os meus, a mãe com os filhos.
13 Mas tu, tu me disseste: 'Quero fazer-te bem, e multiplicarei a tua descendência como a areia do mar, que não se consegue contar, tamanha é sua quantidade!'
Na primeira parte da oração, da confissão dos dons de Deus, se cita Gn 31, 3 (Regressa...), a modo de embolismo, na segunda parte, de súplica, cita-se Gn 28, 13-15 (Quero fazer...).35
No caso da eucaristia, podemos dizer que a citação do relato da instituição é a fundamentação cristológica da súplica feita ao Pai, para que envie o seu Espírito sobre a assembleia e sobre os dons. É a própria tradição da ação litúrgica que deve prevalecer sobre as teorias teológicas. Uma teologia da eucaristia deve poder dar razão de todas as orações litúrgicas transmitidas por venerável tradição, tanto no Oriente como no Ocidente cristão.
Após essas reflexões, certamente incompletas, que possibilitam relativizar condicionamentos teológicos profundamente arraigados na liturgia do rito romano e dialogar com outras tradições litúrgicas e, sobretudo, com o testemunho mais antigo dos Pais da Igreja, podemos tentar agora uma teologia da eucaristia ou, ao menos, elementos para essa teologia, partindo da própria ação litúrgica.
Nova teologia da eucaristia: a significação do gesto do Cristo na ceia, visto a partir da celebração eclesial.
É preciso partir decididamente da própria celebração, no contexto global da tradição litúrgica, tanto do Oriente como do Ocidente. Como a celebração não quer ser outra coisa senão a resposta eclesial ao mandado de fazer o memorial do gesto do Cristo na ceia, haverá que compreender-se, num primeiro momento, o significado desse gesto, perpetuado na Igreja, dentro da circularidade hermenêutica que se dá entre a compreensão do gesto do Cristo na ceia e a sua rememoração eclesial.
Qual é o sentido da ação do Cristo na ceia? A partir dos dados do Novo Testamento, podemos dizer o seguinte: o gesto da ceia é o ato pelo qual Jesus dá um sentido à morte violenta que lhe é imposta, acolhendo-a livremente como último gesto da sua vida totalmente dedicada ao projeto paterno do Reino, e entregando livremente aos discípulos a sua vida como ato supremo do amor. É por isso que João, no relato da ceia, em lugar de narrar a instituição da eucaristia, conta o gesto de lavar os pés dos discípulos.
Num ato de fé incomparável, Jesus aceita a morte e a oferece ao Pai e aos seus, como consumação da oblação de toda a sua vida (cf. Hb 10) em favor da missão messiânica, recebida do Pai. Sem esse gesto do Cristo, a morte não seria mais do que um ato de violência — absurdo como tantos outros na história pecadora da humanidade — com a pretensão de interromper brutalmente e frustrar a proclamação e o serviço do Reino. O gesto da ceia a torna um ato de amor, de entrega e de oblação ao Pai para a salvação da humanidade. Fonte da verdadeira vida, da vida nova do Reino de Deus.
O gesto de Cristo é realizado e inserido na berakhah pascal. Somente dentro dela, de acordo com os relatos evangélicos, pode manifestar o seu sentido. Só na continuidade da espiritualidade judaica da bênção, pode revelar-se a sua novidade. Sem a Antiga Aliança, não se poderia falar da Nova.
Os textos do Novo Testamento não nos mostram o conteúdo da bênção de Cristo. Mas o contexto da tradição judaica, iluminada pelas palavras de Cristo sobre o pão e sobre o vinho e pela tradição das orações eucarísticas da Igreja, desde as mais antigas até às atuais, pode abrir caminhos para imaginar alguma coisa do que deve ter sido. Que isso seja lícito nos é mostrado pela chamada oração sacerdotal que João põe nos lábios de Jesus na ceia. Se Jo 17, 1-26 não pretende reproduzir literalmente a ação de graças de Jesus, certamente a interpreta de forma inspirada.
Não é, contudo, a reconstrução da ação de graças do Cristo, a qual não poderia ser senão hipotética, que interessa como ponto de partida para a teologia da eucaristia. O fato verdadeiramente relevante é o enraizamento da oração eucarística da Igreja na ação de graças do Cristo na ceia, unida ao gesto da entrega do sacramento do seu corpo e do seu sangue,36 de tal forma que, para cumprir o mandado de fazer em sua memória o que ele fez, a Igreja dá graças, eukharistei, partindo o pão e bebendo o cálice da Aliança.
Analisando a forma como a Igreja dá graças, ou seja, analisando as orações eucarísticas, à luz dos textos do Novo Testamento sobre a eucaristia e sobre o mistério pascal, do qual a eucaristia é memorial, poderemos compreender simultaneamente o sentido do gesto de Cristo na ceia e o sentido da celebração da Igreja, que não são idênticos, porque entre eles se situa a realidade a que o gesto sacramental se refere, o mistério pascal de Cristo: a sua morte e a sua ressurreição. Não se pode dizer sem mais que a ceia seja a primeira missa. A ceia é o fundamento da eucaristia da Igreja, que tem seu nascimento, como a própria Igreja, no mistério pascal, embora em virtude do gesto profético e, de certa forma,37 instituinte da ceia.
O sentido da expressão dar graças, que os evangelhos põem na boca de Cristo e que a Igreja assume para caracterizar o sacramento central da sua vida, não pode ser deduzido apenas a partir da etimologia da palavra, ou do seu sentido na linguagem comum. Só a compreensão da tradição secular do povo judeu, que se perpetua e se plenifica — cristificando-se — na comunidade eclesial, pode revelar o rico e complexo conteúdo da bênção judaica. Lembre-se o conteúdo da todah38 veterotestamentária, que passa à berakhah judaica e à eucaristia cristã: a confissão e o memorial das maravilhas realizadas por Deus, no contexto da Aliança, a confissão da infidelidade do povo na esperança da renovação da Aliança, a ação de graças, o louvor, a confissão da infinita misericórdia de Deus que faz brilhar a gratuidade da Aliança...
Só na continuidade dessa tradição do povo judeu pode-se entender o gesto de Cristo na ceia. E só na espiritualidade aí manifestada, iluminada pelo gesto da ceia, pode entender-se a eucaristia que a Igreja realiza, para cumprir o mandado do Senhor, que não é certamente repetir o gesto de Cristo, irreiterável na sua singularidade, nem apenas imitar o gesto ritual da ceia. Esse gesto é totalmente relativo ao mistério pascal: à exaltação39 do Cristo na cruz.
Com o simbolismo do pão partilhado, num ato de perfeita liberdade, Jesus entrega aos discípulos a vida que lhe será arrancada violentamente.
O pão é uma realidade de uma densidade simbólica incomparável. Fruto da terra e do trabalho humano, dom de Deus por excelência, simboliza todo alimento necessário para o sustento da vida e todo dom que desce do alto. Com a súplica o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, Jesus ensinou aos discípulos a pedir ao Pai o conjunto dos dons necessários para cada dia. O pão é um alimento a ser partilhado na mesa, que propicia o sustento corporal e a convivência necessária para o crescimento de uma vida verdadeiramente humana. O próprio Cristo se designa a si mesmo como o pão verdadeiro descido do céu (Jo 6). Na ceia pascal partilhar o pão ázimo, sobre o qual foi pronunciada a bênção, depois de lido o relato da libertação pascal, significa partilhar a bênção do Deus libertador, invocando sobre os comensais a continuação da ação divina libertadora, ao mesmo tempo que acolher essa ação, comprometendo-se a viver a Aliança.
O gesto de Jesus na ceia só tem sentido no contexto dessa densidade simbólica do gesto de partir o pão.40 Densidade simbólica que não desaparece, antes é enriquecida, quando o Cristo faz do pão sacramento do seu corpo entregue para a vida do mundo, no horizonte escatológico da ceia e no horizonte das palavras transmitidas em Jo 6 sobre o pão da vida eterna.
Mas comer o corpo ou a carne41 que será entregue na cruz, numa ceia em que se come o cordeiro sacrificado, memorial da libertação — ou mais ainda, comer a carne do Cristo, em lugar do cordeiro — subverte o sentido da ceia pascal e, como explicitará a carta aos Hebreus, suprime os sacrifícios de animais.
A coincidência simbólica da morte do Cristo, no evangelho de João, do dia e da hora da morte do Cristo com o sacrifício dos cordeiros no templo, aponta para essa mesma substituição da antiga páscoa pelo Cordeiro que tira o pecado do mundo.
Ao dizer sobre o pão Isto é o meu corpo (Mc 14), distribuindo-o aos discípulos, Jesus faz do pão sacramento da sua entrega na cruz. Faz da livre aceitação da morte, na esperança escatológica da vinda do Reino, o sustento da vida dos discípulos na sua missão. Nesse gesto, de forma simbólica ou sacramental (porque todo o discurso se move nesse terreno da linguagem simbólica42), o Cristo se entrega de forma real aos discípulos maravilhados, mostrando-lhes que a salvação não vem da memória do passado, através de ritos sacrificiais, mas da entrega real da sua vida, do amor levado até às últimas conseqüências. Com o gesto, Cristo interpreta sua morte como a consumação do seu messianismo e convida os discípulos à comunhão com ele na ação libertadora de Deus que leva à plenitude a libertação da páscoa judia. O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?(1 Cor 10, 16).
O gesto e as palavras sobre o cálice esclarecem ainda mais o sentido que Jesus quer dar à sua morte e à comunhão dos discípulos na sua entrega. Beber do cálice é entrar em comunhão com a nova Aliança, selada com o sangue do Cristo, derramado para a expiação dos pecados de todo o povo.
O vinho, diferentemente do pão, não é necessário para a vida. Simboliza a gratuidade, a plenitude dos bens da criação, as bênçãos de Deus, a festa. Aponta, em última instância, para a festa messiânica e para a plenitude da felicidade escatológica. A entrega do Cristo na morte não acaba no sepulcro, ela é a exaltação à direita do Pai.
Beber do cálice da Aliança é entrar em comunhão com o amor, através do qual o Cristo, movido pelo Espírito de Deus, faz do derramamento iníquo do seu sangue o ato supremo de fidelidade e de entrega da sua vida à missão confiada pelo Pai para o advento do Reino. Ou em outras palavras: beber do cálice é entrar em comunhão com a entrega da vida do Filho de Deus, que, pela encarnação, é uma vida exposta à morte, num mundo que mata os profetas, pelo mesmo fato de ser uma vida totalmente consagrada a fazer a vontade de Deus(cf. Hb 10, 7).
Por isso mesmo, o derramamento injusto do sangue inocente se torna, pela oblação interior do Cristo, a superação definitiva dos sacrifícios e holocaustos, que não foram do agrado de Deus (cf. Hb 10, 8), e estabelece o novo culto no sangue do Cristo, fonte de vida para todos os que crêem nele. O cálice da bênção que nós abençoamos não é porventura uma comunhão com o sangue de Cristo? (1Cor 10, 16).43
O gesto de Cristo já vinha sendo preparado pela espiritualidade do justo perseguido. Muitos textos do AT poderiam ser citados. Baste um para amostra: Pobre de mim, sou infeliz e sofredor! Que vosso auxílio me levante, Senhor Deus! Cantando eu louvarei o vosso nome e agradecido exultarei de alegria! Isto será mais agradável ao Senhor que o sacrifício de novilhos e de touros (Sl 69(68), 30-32). Hebreus 10, 5ss tira as últimas consequências dessa espiritualidade, parafraseando o Salmo 40(39), à luz da morte do Cristo e do gesto da ceia: Não quiseste sacrifício e oblação, mas plasmaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradaram. Então eu disse: Eis-me aqui, pois é de mim que está escrito no rolo do livro: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade. E conclui: Ele suprime o primeiro culto para estabelecer o segundo (v. 9).
Para substituir o rito antigo, Jesus realiza o gesto simbólico do pão e do vinho. Mas o novo rito não se refere a algo exterior ao rito: é expressão da atitude mais profunda da própria vida, a livre entrega da vida ameaçada, o sacrifício espiritual de si mesmo, único sacrifício agradável a Deus. A consumação sangrenta do sacrifício espiritual acontecerá fora do rito da ceia, no Calvário. É preciso, no entanto, afirmar, com força, que o fato de a consumação ser sangrenta não carateriza o sacrifício enquanto tal. É consequência da violência absurda e condenável de um mundo que mata os profetas. O sacrifício da cruz, agradável a Deus, é o sacrifício espiritual do Filho, que leva às últimas consequências a fidelidade ao plano do Pai para a instauração do Reino e obedece até à morte. É por isso que essa morte se torna exaltação gloriosa, na pena de João. Paulo resume maravilhosamente a totalidade do mistério pascal: Foi entregue por nossos pecados, ressuscitado para nossa salvação (Rm 4.25).
A CELEBRAÇÃO DO MEMORIAL DA CEIA DO SENHOR
A eucaristia da Igreja é memorial da entrega do Cristo na cruz, celebração do mistério pascal. Celebra a eucaristia o Cristo pascal, com o seu Corpo, a Igreja. Como diz muito bem a Sacrosanctum Concilium: a Eucaristia, como toda ação litúrgica, é realizada pelo Corpo místico de Cristo, Cabeça e membros, sendo, assim, obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja.
A eucaristia não é repetição da ceia, nem sua ritualização. Não se faz rito de outro rito. O rito da eucaristia se refere à cruz. A eucaristia é o sacramento do mistério pascal do Cristo, não da ceia, embora ela só possa ser o sacramento do Calvário, através da mediação do cenáculo, para usar uma expressão de Giraudo.44
Celebrar a eucaristia é, em primeiro lugar, acolher com gratidão e louvor a gratuidade da salvação que jorra do mistério pascal e, consequentemente, entrar em comunhão com o gesto de Cristo que se entrega na cruz. Celebrar a eucaristia é, pela graça divina, beber o cálice da paixão do Cristo. A eucaristia, se for verdadeira, como a ceia do Cristo, pela própria ritualidade, submerge a comunidade que a celebra no mais profundo da vida.
Fazer o que Cristo fez na ceia, em sua memória, é oferecer-se, ou melhor, ser oferecido com ele, para o advento do Reino. A presença do corpo entregue e do sangue derramado do Cristo, nos sinais sacramentais, tem como termo a transformação da comunidade celebrante no corpo eclesial do Cristo, para tornar-se por ele, com ele e nele uma oferenda agradável ao Pai. É dessa forma que a eucaristia é sacrifício. É a oferenda de Cristo na cruz, no hoje eterno e escatológico da ressurreição, transformando o ser humano pela incorporação ao mistério pascal.
Isso tem lugar na totalidade da ação eucarística, cujo clímax é a oração eucarística com a comunhão. Desde os tempos apostólicos, a celebração da eucaristia se configura essencialmente em dois tempos: uma liturgia da palavra, parte integrante da ação eucarística, seguida da oração de ação de graças e de louvor ou anáfora, e da comunhão do corpo e do sangue do Senhor.
A liturgia da palavra
Fazer o memorial do gesto de Jesus e dos discípulos na ceia significa, como foi dito, ser associado ao gesto de Cristo na cruz, para, como corpo do Senhor ressuscitado, oferecer-se com ele para o serviço do Reino. A comunhão no corpo e no sangue do Cristo significa, para os discípulos, acolher, de forma sacramental, o dom da oblação na cruz gratuitamente oferecido por Jesus. Comungar é morrer ao pecado, com Cristo, para viver a vida nova do ressuscitado, e com ele continuar o serviço do Reino.
É profundamente simbólico que João, em lugar do relato da instituição da eucaristia, narre o gesto de Jesus lavando os pés dos discípulos. O que se pede ao discípulo, para ter parte na ação messiânica de Jesus, é deixar-se lavar os pés, aceitar o serviço messiânico de Jesus, que será consumado na cruz. Deixar-se lavar os pés e comungar o corpo e o sangue do Cristo são duas formas rituais de significar a mesma realidade: acolher o dom gratuito da morte redentora do Cristo. E ter parte na ação messiânica de Jesus é partilhar com o Mestre o serviço de lavar os pés dos irmãos.
Esse relato não pode ser lido apenas em clave ética. Lavar os pés dos irmãos, oferecer com Cristo a própria vida, para o serviço do Reino, antes de ser imperativo moral, é a graça de ser associado à ação do Senhor, a graça de poder viver em Cristo. Mais ainda: poder experimentar que o Cristo vive e age em nós. Com Cristo eu estou crucificado; vivo, mas não sou eu, é Cristo que vive em mim (Gl 2, 20; cf. Jo 6, 57; 14, 19).
A gratuidade da salvação oferecida pela morte do Cristo é algo tão inaudito que não resulta fácil ao homem, num mundo em que tudo deve ser conquistado ou arrebatado à cobiça dos outros. Pedro deve ser convencido por Jesus a deixar-se lavar os pés. Por isso, o primeiro momento da celebração da eucaristia, desde a mais remota antigüidade, consiste na proclamação da salvação, através do ato supremo do amor de Deus na cruz do Cristo e a acolhida agradecida dessa palavra salvadora.
Na própria oração eucarística já está presente a proclamação da salvação em Cristo. Mas essa proclamação é a resposta do homem à ação de Deus. Anteriormente, essa ação deve ser proclamada como palavra de Deus e acolhida na fé. No desenrolar do ano litúrgico, o mistério da salvação, proclamado na liturgia da palavra, se desenvolve na multiforme variedade dos seus aspetos em relação com a vida humana.
Depois de constituídos os escritos do Novo Testamento, a proclamação do evangelho de Jesus Cristo, preparada pela leitura e meditação dos escritos do Antigo Testamento e dos outros escritos apostólicos, se toma o centro da liturgia da palavra, na eucaristia. Todo o ritual da celebração mostra a consciência da assembleia de acolher, na proclamação do evangelho, o próprio Filho, entregue pela vida do mundo.45 A recitação do símbolo da fé46 e a oração dos fiéis47 são, na liturgia atual, a expressão da aceitação da comunidade da palavra da salvação proclamada. A assembléia pode, após isso, levar a termo a acolhida da palavra, partindo o pão, dando graças.48
A oração eucarística e a comunhão
A oração eucarística ou anáfora é inseparável da comunhão e está para ela orientada. É por isso que deve ser estudada junto com ela.
As orações eucarísticas contêm os elementos essenciais de uma teologia da eucaristia. Muitas delas são documentos antiquíssimos da tradição eucológica da Igreja, e mesmo as mais recentes recolhem as mais antigas tradições. Se a teologia tivesse prestado mais atenção a essas fórmulas da oração da Igreja, ter-se-iam evitado certos estreitamentos e reducionismos que a centraram em alguns problemas teológicos, deixando no esquecimento outros aspetos fundamentais da celebração eucarística.
Deve-se começar afirmando a unidade da oração eucarística e o caráter epiclético ou consecratório de toda ela. Ao longo da oração, vão-se explicitando diversos aspetos da sua riqueza eucológica: memorial ou confissão dos eventos salvíficos, confissão da própria infidelidade, ação de graças e louvor, oblação, invocação do Espírito para a transformação ou santificação dos dons e da comunidade.
Isso é necessário pela própria estrutura da linguagem ou da palavra humana, pela sua necessária distensão verbal e temporal (não se pode dizer tudo ao mesmo tempo, nem com uma só palavra). Mas a condição da linguagem não deve escurecer o fato fundamental, do ponto de vista teológico, de que toda a oração eucarística é epiclese ou invocação do Espírito, toda ela é memorial e ação de graças e toda ela é oblação. A assembléia eucarística agradece e louva a Deus, fazendo o memorial dos eventos salvíficos e invocando a presencialização e atualização desses eventos pela ação do Espírito, ao mesmo tempo que, em comunhão com Cristo, por Cristo e em Cristo, oferece ao Pai a oblação que ela recebe como um dom.
A estrutura literária da oração eucarística permite distinguir ne-la duas grandes seções: uma de ação de graças, e outra de invocação do Espírito. A própria Instrução Geral sobre o Missal Romano (n. 54) define a oração eucarística como prece de ação de graças e santificação, indicando, assim, seus dois aspetos fundamentais — anamnético e epiclético — que incluem os outros. O aspecto de - oblação está incluído tanto na memória das ações salvíficas de Deus, que culminam na oblação de Cristo, como no pedido de que o Espírito santifique a oblação da Igreja, para que seja aceita pelo Pai.
Giraudo, após minuciosa análise das principais orações eucarísticas legadas pela tradição, com o intuito de construir uma teologia da eucaristia, a partir da lex orandi, classifica-as em anáforas anamnéticas, as que apresentam o embolismo institucional na seção anamnética, e anáforas epicléticas, as que apresentam o embolismo institucional na seção epiclética.49
O relato da instituição, como foi dito, se constitui como a formal proclamação do locus theologicus escriturístico relativo ao evento que se celebra. Dentro da estrutura literária da oração eucarística, de ação de graças e de súplica, aparece claro que o relato é o fundamento cristológico ou a motivação apresentada ao Pai da súplica da Igreja, para que o Espírito seja enviado sobre a oferenda da Igreja. A Igreja só pode ter a ousadia de invocar o Espirito sobre o pão e o vinho, para que se tornem pão da vida e vinho da salvação, corpo e sangue do Senhor, porque Cristo na ceia deu aos discípulos o seu corpo e o seu sangue que seria derramado na cruz e mandou que eles fizessem a mesma coisa em sua memória.
Nas anáforas anamnéticas, o relato de instituição encerra a memória da série de ações salvíficas de Deus, pelas quais seu nome é louvado e glorificado com ação de graças. Veja-se, por exemplo, a sequência dos motivos da ação de graças na oração alexandrina de São Basilio.
Começa-se lembrando a existência de Deus antes dos séculos, a sua glória, a criação dos seres visíveis e invisíveis. Depois do Santo, lembra-se a misericórdia de Deus após o pecado, o pastoreio divino do povo, através dos profetas, o envio do Filho, que abre os caminhos da salvação, através da regeneração pela água e pelo Espírito, a sua entrega voluntária por amor dos seus, a sua morte, ressurreição e exaltação à direita do Pai como juiz dos vivos e dos mortos. Nesse momento, se introduz o embolismo institucional como lugar teológico do mistério, que se celebra por mandado do Senhor, ao qual já se tinha aludido com as palavras: Aquele que tinha amado os seus que estavam no mundo entregou-se a si mesmo como redenção. O embolismo está sempre ligado com a partícula grega gár (porque) à seção anamnético-celebrativa, que, na anáfora de São Basílio, conclui com a frase: Deixou-nos este grande mistério da piedade. Por que, quando estava para entregar-se a si mesmo à morte para a vida do mundo, tomou o pão[...]”.
Após o embolismo institucional, com o qual se conclui a seção anamnético-celebrativa, se passa para a seção epiclético-oblativa, com a expressão memnéménoi toínyn, fazendo, pois, o memorial (Memores igitur) da morte e ressurreição [...] oferecemos [...]. Este trecho é chamado geralmente de anamnese,50 devido a essa frase, mas é preciso advertir que ela é uma oração subordinada à oração principal oferecemos-te e que a memória da morte e ressurreição já vinha sendo feita anteriormente. A partícula oún ou sua variante toínyn mostra bem a sua função de vincular o memorial da ação salvífica de Deus, que culmina com a morte e ressurreição do Cristo, com o gesto de Jesus na ceia e com o mandado de fazer a memória desse gesto.
Não poderia expressar-se de maneira mais clara que a oblação da Igreja é precisamente a realização do memorial do sacrifício espiritual do Cristo: a livre entrega da sua vida na cruz, que é, por isso mesmo, a exaltação gloriosa. A oblação da Igreja é o memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus, mediante ou em virtude do gesto da ceia.
É esse mandado que faz da ação de graças anamnética oblação ou sacrifício espiritual da Igreja. É por isso que da memória-oblação se passa muito naturalmente à súplica, para que essa oferenda seja aceita e, por isso, se invoca o Espírito sobre a oferenda. Ela será aceita, na medida em que seja a oferenda de Cristo, conforme o seu mandado. E por isso a súplica tem um duplo aspecto: a santificação do pão e do vinho, para que se tornem sacramento do corpo e do sangue do Senhor, e a santificação da assembléia que oferece, para que seja transformada pela comunhão dos santos mistérios e se torne um só corpo com Cristo, digna de participar da herança eterna com os santos. A epiclese se prolonga nas intercessões, de maneira muito natural, através dessa dimensão escatológica da própria súplica.
Apesar da variedade dos desenvolvimentos e do estilo das diversas orações, impressiona a constância da estruturação dos elementos que compõem a anáfora.
As anáforas epicléticas introduzem o embolismo institucional na seção epiclética. Exemplo dessas orações são a anáfora dos apóstolos de Addai e Mari, conhecida por carecer do relato explícito da instituição,51 a de Serapião, a de São Marcos e o Cânon romano. A estrutura desse tipo de anáfora é bem mais complexa e não podemos estudá-la aqui em detalhe. Apenas queremos notar um ponto fundamental para a compreensão da função e do sentido do embolismo institucional. Este é sempre introduzido, após a chamada primeira epiclese, com a partícula causal hóti (porque), que, ao passar para o latim, pode ser um pronome relativo ao Cristo, com o qual se mostra que o relato da instituição está inserido na invocação do Espírito, como sua motivação cristológica, e não como palavras consecratórias do celebrante que falasse nesse momento à assembleia em nome de Cristo. O celebrante não fala nesse momento propriamente in persona Christi. Continua falando como presidente da assembleia e, portanto, como sinal sacramental da presidência de Cristo, em nome da assembleia, mas com as palavras de Cristo.
Nas orações do tipo alexandrino, pode preceder uma breve epiclese. A primeira epiclese é originariamente genérica, pedindo o envio do Espírito sobre a oferenda ou o sacrifício. Giraudo, argumentando a partir da análise estrutural da anáfora de Serapião, prefere chamá-la de post-Sanctus epiclético ou epiclese de transição,52 porque faz passar do discurso racional do Santo ao relato da instituição. Trata-se, como mostra Giraudo, de uma transição entre a parte anamnética e a parte epiclética da anáfora. Após proclamar a plenitude da glória divina, se pede que essa plenitude plenifique o sacrifício que está sendo celebrado. Cheio está o céu [...] da tua glória [...] Senhor dos poderes celestes: enche também este sacrifício do teu poder e da tua comunicação; porque te oferecemos este sacrifício vivo, esta oferenda incruenta.53 Na anáfora de S. Marcos, menciona-se já o Espírito: Verdadeiramente o céu e a terra estão cheios da tua santa glória [...]. Enche, também, ó Deus, este sacrifício com a bênção que procede de ti por teu santo Espírito [...]. Trata-se de uma invocação genérica sobre o sacrifício, a partir do plêrês, ou seja, da plenitude da santa glória do Santo se passa ao plêrôson (enche) com a bênção [...], mediante o Espírito da santidade.
Não se trata, portanto, de uma epiclese de transformação dos dons. Isso se pede na segunda epiclese, juntamente com a santificação daqueles que receberão o corpo e o sangue do Cristo. O Cânon romano é a única, entre as orações antigas, que pede explicitamente, numa primeira epiclese, a transformação dos dons. Essa estrutura será imitada nas orações pós-conciliares. Isso carece de uma explicação à parte.
O CASO SINGULAR DO CÂNON ROMANO
O Cânon romano, na sua configuração atual, parece distanciar-se bastante da estrutura das orações anteriores. Na tentativa de encontrar nele uma epiclese, já que não aparece diretamente a invocação do Espírito, foi apontado como tal o trecho: Quam oblationem tu, Deus, in omnibus, quaesumus, benedictam, adscriptam, ratam, rationabilem, acceptabilem que facere digneris ut nobis fiat dilectissimi Filii tui Domini nostri lesu Christi... A tradução portuguesa do Brasil simplifica desta forma: Dignai-vos, ó Pai, aceitar e santificar estas oferendas, a fim de que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso. Não ha dúvida de que se pede a bênção de Deus sobre os dons, para que se tornem o corpo e o sangue [...] e também para que sejam aceitos como sacrifício espiritual (este é o sentido original do termo rationabilem, que traduz o termo logikên de Rm 12, 1). Embora o Espírito não se mencione explicitamente, a santificação dos dons que se pede ao Pai é realizada pelo seu Espírito.
Mas essa solução não pode satisfazer completamente. Resulta bastante estranho que, antes dessa epiclese, a oferenda sobre a qual se tinha pedido a bênção e a aceitação seja qualificada de santo sacrifício sem mancha. Rogamus ac petimus uti accepta habeas et benedicas haec dona, haec munera, haec sancta sacrificia illibata [...]. Também parecem estar fora de lugar as intercessões, o memento dos vivos e o communicantes [...], embora se encontre também uma antecipação das intercessões em outras anáforas de estrutura alexandrina.
Por outro lado, segundo o testemunho de Ambrósia, corroborado por um texto litúrgico antigo do rito mozárabe, pode-se afirmar que o pedido explícito da transformação explícita dos dons foi uma interpolação que não estava no texto mais antigo.
Eis o teor do texto, segundo Santo Ambrósia:
Fac nobis [...] hanc oblationem scriptam, rationabilem, acceptabi-lem, quod est figura corporis et sanguinis Domini nostri Iesu Christi54 (`Concedei-nos [...] que esta oferenda seja aprovada, espiritual, acei-ta, porque ela é a figura do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo').
Segundo um Post pridie da liturgia mozárabe:
Quorum oblationem benedictam, ratam, rationabilemque facere dig-neris quae est imago et similitudo corporis et sanguinis Jesu Christi Filii tui ac Redemptoris nostri (`Dignai-vos fazer que a sua oferenda, que é a imagem e a semelhança do corpo e do sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e nosso Redentor seja bendita, válida, espiritual').
As duas fórmulas têm em comum somente o termo rationabile, que tem o sentido bíblico de espiritual. É possível que, na primitiva forma do Cânon romano, estivesse somente ele, sendo depois amplificado de diversa forma. O cânon atual junta todos os adjetivos (os testemunhados por Ambrósia e pela anáfora mozárabe), para não perder nenhum deles.
Segundo essas formas, o acento da súplica está na aceitação da oferenda por Deus, e se dá o motivo: porque ela é o sacramento (este é o sentido dos termos figura, imagem e semelhança) do corpo e do sangue do Cristo. Essa insistência na aceitação da oblação é típica do Cânon romano, na sua parte epiclética que é dominante. A seção anamnético-celebrativa está praticamente limitada ao Prefácio e ao Santo. Logo depois, sem a transição do Verdadeiramente Santo, que é comum nas anáforas, se introduz a seção epiclética com Te igitur.
A partir do testemunho de antigos fragmentos hispânicos, Gi-raudo mostra que as intercessões estão sempre subordinadas ao pedido da aceitação da oferenda. Nesses fragmentos também não há rastro nenhum do Communicantes e do Hanc oblationem. O Cânon poderia ter mais ou menos esta estrutura:
A ti, pois, clementíssimo Pai, nós te suplicamos que te dignes aceitar e abençoar estes dons, estas oferendas, estes santos sacrifícios sem mancha, que te oferecemos em primeiro lugar pela Igreja católica, que te dignes pacificar, guardar, reunir e governar por todo o orbe da terra, em união com o Papa [...] e nosso Bispo [...]e todos os que guardam a fé católica e apostólica.
Lembra-te dos teus servos e servas [...] N e N [...] e de todos os que estão ao redor deste altar, pelos quais te oferecemos ou eles te oferecem este sacrifício de louvor [..]. Faze em nosso favor que esta oferenda seja aprovada, espiritual, aceita, porque ela é a figura do corpo e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo.
Toda a parte que precede ao embolismo da instituição, junto com o que segue, tem um caráter epiclético, estando centrada a súplica na aceitação da oblação da Igreja. Não há uma petição explícita da transformação ou consagração dos dons. Mazza55 lembra a teologia que está por trás dessa forma de conceber a sacramentalidade. A terminologia da imagem e da figura é a terminologia clássica da Igreja antiga para expressar a presença sacramental e real, dentro da teologia da mimese ou da imitação. A sacramentalidade da ação celebrada provém do fato de ser cópia, imagem e semelhança do que fez Jesus na ceia, ordenando fazer o mesmo em sua memória.56 No Quam oblationem de Ambrosio se pede a Deus que faça que a oferenda da Igreja seja aceita e que seja espiritual como o sacrifício espiritual de Cristo. Não se pede a transformação do pão e do vinho. Dá-se por suposta a causa da mimese da última ceia por mandado do Senhor. É justamente o fato de a oferenda ser o sacramento do corpo e do sangue de Cristo o motivo apresentado ao Pai para aceitação da oferenda, apesar da indignidade daqueles que agora a oferecem.
Nessa forma antiga, o Cânon romano é lógico e coerente e de uma clareza que o assemelha a muitas das anáforas orientais. Ao modificar o texto, a sua lógica é invertida. O Quam oblationem continua pedindo, em primeiro lugar, a bênção, aceitação da ofe-renda da Igreja, para que o pão e o vinho se tornem o corpo e o sangue do Cristo. Bem mais de acordo com a gratuidade do dom de Deus é pedir a aceitação da oferenda da Igreja por ser a oferenda de Cristo.
Por outro lado, o texto, ao ser analisado com atenção, não se apresenta como verdadeira epiclese para a transformação dos dons, separada da epiclese da santificação e aceitação da oferenda da assembléia. Por isso, a maneira mais sábia de ler o texto, dentro da tradição das grandes anáforas, seria considerar epiclética toda a seção, desde o Te igitur, numa súplica que, ao explicitar o pedido para a consagração dos dons, não o separa em realidade do pedido pela aceitação da oferenda dos que serão santificados por esses dons.
Essa separação dos dois aspetos da epiclese se dá efetivamente nas orações eucarísticas compostas pela reforma litúrgica, porque elas, por um lado, se inspiram nas anáforas orientais, introduzindo elementos muito valiosos, mas, por outro, mantêm a estrutura do Cânon romano, interpretada através da teologia dominante da presença, concebida de forma estática e separada do seu dinamismo transformante da assembleia.
Não se faz justiça à própria letra do Cânon romano, que pede a transformação dos dons na súplica da aceitação da oferenda da Igreja, e muito menos a toda tradição das grandes anáforas do passado que nunca separam os dois aspectos da epiclese.
Essa limitação não deve ter sido resultado da falta de visão dos especialistas e de muitos Bispos envolvidos no processo da composição dos textos, mas da impossibilidade de chegar a um consenso na superação de condicionamentos de uma teologia, que dominou durante quatro séculos a catequese e a piedade eucarísticas. Nessa teologia é mais importante a clareza, na determinação da matéria e forma dos sacramentos, concebidos de forma um tanto unívoca e apriorística, e a fixação do momento da ação transformante do sacramento, do que a dinâmica espiritual e soberanamente livre da ação de Deus. Mais uma vez, determinada teologia teve mais peso do que a lex orandi que se manifesta com clareza na tradição litúrgica.
Dois incidentes mostram a dificuldade de superar condicionamentos teológicos multisseculares. Um já foi mencionado. O Missal romano de Paulo VI teve um atraso na publicação, devido à reação de muitos perante a IGMR, já publicada com o Ordinário da missa, que obrigaram, por espírito conciliatório, a acrescentar um proêmio e a modificar ligeiramente alguns números, precisamente em torno ao problema da presença e das palavras da consagração.
O outro, mais significativo, foi a não-aprovação da proposta do Coetus X da introdução na liturgia romana da anáfora de S. Basílio. É verdade que faltou apenas um voto para que a proposta alcanças-se a maioria na aula conciliar.
O DEBATE CONCILIAR SOBRE A ANÁFORA DE SÃO BASÍLIO
O documento do Coetus X, publicado por Mazza,57 no original latino, que traduzimos aqui, mostra melhor que nenhum comentário onde se situava o problema: as vantagens que teriam derivado da sua aprovação, em termos de ecumenismo e de enriquecimento da liturgia romana, acolhendo a rica tradição oriental, em face do apego a uma mentalidade ou da incapacidade de superar os estreitos limites de uma tradição parcial fechada sobre si mesma.
As motivações do Coetus, para que fosse introduzida na liturgia romana a anáfora de S. Basílio, foram:
Na atual renovação litúrgica, muitos desejam uma oração eucarística que tenha
• uma expressão plena de ação de graças por toda a economia da criação e da salvação,
• com uma exposição transparente de todos os elementos essenciais da oração eucarística tradicional,
• numa fórmula que seja ao mesmo tempo bíblica e adaptada às necessidades catequéticas. Tudo isso parece encontrar-se nesse texto mais do que em todos os outros das mais antigas tradições.
Por outro lado, a introdução desse texto na tradição litúrgica ocidental seria da máxima importância para o ecumenismo. Não existe nenhum texto que tenha gozado de tal popularidade no Oriente cristão. Atualmente ela é empregada, na forma aqui proposta, na Igreja copta e, numa recensão mais recente e mais longa, em todas as Igrejas bizantinas, tanto dos gregos, como dos povos eslavos. Na mesma forma, já existe na Igreja católica, tanto dos ucranianos, como dos melquitas, e na forma mais antiga entre os coptas.
Nos séculos passados, seu uso foi aceito por quase todas as Igrejas orientais, na Armênia, Geórgia, Síria, etc.
Não existe, atualmente, nenhuma oração eucarística, cuja matéria ou desenvolvimento seja mais claro:
• ação de graças pela obra da criação (até ao Santo);
• ação de graças por toda a história da salvação, até à encarnação redentora;
• as palavras da instituição (em conexão com a ação de graças pela evocação do mistério paulino) numa formulação sintética de tudo o que se encontra no Novo Testamento;
• anamnese plena da obra da redenção, sugerindo a expressão da oblação incruenta do sacrifício divino em palavras plenamente consonantes com a sagrada Escritura;
• epiclese bem antiga, na qual o Espírito Santo é invocado, para que, ao fazer-se a consagração eucarística, se faça a santificação dos oferentes, que os conduza, num corpo e num espírito, à plenitude do Reino de Deus e à glorificação de toda a Santíssima Trindade;
• intercessão verdadeiramente universal, embora breve, para que todos sejam reunidos na edificação do Corpo de Cristo e povo de Deus;
• grande doxologia conclusiva.
Há, no entanto, alguns teólogos que alegam contra a introdução desse texto, como está, na liturgia romana, que a epiclese para pedir a consagração (como em todas as liturgias de tradição sírio-ocidental) se encontra depois das palavras sagradas, e não antes (como acontece com a oração Quam oblationem, no Cânon romano)
Mas a isso pode-se responder:
• devemos considerar que nenhuma oposição teológica pode prevalecer. Porque esse texto, como muitos outros da mesma tradição, é admitido já pela Igreja católica para os orientais, e há muitos pronunciamentos solenes dos Sumos Pontífices, que não só reconhecem a plena ortodoxia desses textos, mas também proclamam a importância da complementaridade das tradições orientais e ocidentais da santíssima eucaristia, de forma que quem tivesse a pretensão de negar ou pôr em dúvida um igual valor da liturgia dos orientais negaria as mesmas afirmações dos Sumos Pontífices.
Não podemos esquecer que não só orações eucarísticas desse teor foram comuns, nos séculos passados, na mesma Igreja latina, tanto nos ritos antigos das igrejas galicanas como nos das Igrejas da Espanha e da Irlanda, mas também agora tais preces eucarísticas, ou seja, com a epiclese para a consagração após as palavras santas, permanecem na praxe atual das Igrejas em que se celebra a liturgia segundo o rito mozárabe aprovado pela Santa Sé.
Se é posta a questão da adoração a ser feita às espécies sagradas nessa oração, o melhor seria fazê-la no fim de toda a oração eucarística, uma vez que a plena expressão da intenção da Igreja, ao usar as palavras divinas, não aparece de forma perfeitamente clara, antes de chegar ao fim, nas preces dessa tradição oriental. Com isso não se decide acerca da questão da importância teológica da epiclese tomada isoladamente, mas apenas se tornaria mais claro que a intenção da Igreja, ao usar as palavras divinas, aqui, como no Cânon romano, se exprime na oração com a qual essas palavras estão unidas de forma inseparável na ação sagrada.
Outro fato significativo da relação entre a tradição litúrgica romana e outras tradições foi o seguinte: quando se pensou, no Concílio, em adaptar o Cânon romano, desistiu-se do projeto, para não tocar num texto com a marca e o peso de uma tradição de séculos. Só que o princípio não valeu, quando se tratou de adaptar a anáfora de Hipólito, de antiguidade maior.
PERSPECTIVAS ECUMÊNICAS NA CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA
O longo itinerário anterior, embora limitado apenas a alguns pontos concretos, mostra a dificuldade de uma mentalidade teológica ser questionada até às suas raízes pela própria tradição litúrgica. Isso equivale a falar — embora a afirmação possa parecer muito forte — da resistência das mentalidades teológicas ao questionamento do próprio Espírito, porque supõe-se que o Espírito se manifesta na tradição multissecular da oração da Igreja antes do que em certas construções teológicas, cujos condicionamentos histórico-culturais, e certamente também políticos, saltam à vista. A não ser que se queira negar o axioma tradicional: legem credendi lex statuit supplicandi — a lei da oração estabelece a lei da fé.
Esse itinerário explica também por que motivo a reforma litúrgica não conseguiu atingir a raiz do problema e viu-se obrigada a fazer certas concessões a determinadas mentalidades teológicas, deixando a porta aberta para a volta a formas deformadas da compreensão da eucaristia, semelhantes às que suscitaram a exigência da Reforma.
A separação da epiclese de consagração dos dons da epiclese da santificação da assembleia pela comunhão do corpo e do sangue do Cristo não permitiu aos fiéis superar definitivamente uma concepção da eucaristia, centrada, em primeiro lugar, na presença estática do Cristo nas espécies sacramentais.
Essa separação obscurece a subordinação da súplica da transformação dos dons à súplica da santificação dos comungantes, que se manifesta até na construção sintática do próprio Cânon romano.
Como foi dito anteriormente, o acréscimo do termo consagração, no número 55, item d, da IGMR, reforça a opinião comum dos fiéis do caráter quase mágico das palavras pronunciadas pelo sacerdote, obscurecendo a ação do Espírito. Até os próprios tradutores de alguns países, entre eles o Brasil, omitindo a conexão da narrativa institucional com a súplica ao Espírito (realizada no latim, ou através do pronome relativo, ou da partícula enim) favorecem a atitude de quem preside a eucaristia de pronunciar essas palavras, dirigindo-se à assembléia, quando, na verdade, estão dirigidas a Deus, em nome da assembléia, como o resto da oração. Favorecem, também, a atitude da assembléia de atribuir ao sacerdote, que falaria nesse momento em nome de Cristo ou in persona Christi, o poder da consagração. O gesto da assembléia de ficar de joelhos nesse momento impede a compreensão da unidade consecratória e epiclética da oração eucarística e, consequentemente, sua função como parte integrante e essencial da eucaristia, que é sacrifício espiritual, sacrifício de ação de graças e de louvor, enquanto é memorial do sacrifício espiritual de Cristo, que através dessa oração associa a Igreja à sua oblação.
Não se explicariam certas anomalias, que estão voltando em torno à Eucaristia, por esta não-plena superação da teologia medieval da presença? Que diferença há entre levar a custódia com o Santíssimo, através dos campos, para espantar as pragas da colheita, ou exibi-la no meio de um auditório que freneticamente levanta nas mãos cadeiras de trabalho, vidros de água ou receitas médicas? Ou começar a celebração com a exposição do Santíssimo, para ouvir a palavra na presença de Jesus, como se a própria celebração não fosse presença viva do Senhor?58 Ou ainda celebrações da eucaristia em que, fora as palavras da instituição, nada fica da estrutura da oração eucarística?
Outras conseqüências desse tipo poderiam ser aqui mostradas, a nível dos fiéis como a nível do próprio clero, para pôr em evidência como resta ainda um longo caminho a andar, no diálogo que, sera tamen, com quatro séculos de atraso, a Igreja estabelece com as justas reivindicações da Reforma.
De acordo com os documentos ecumênicos recentes, aparece claro que as diferenças porventura ainda existentes não afetam pontos essenciais da prática e da doutrina da eucaristia. Eu diria até que muitos de nós, católicos, teríamos mais facilidade para reconhecer nossa prática eucarística e nossa compreensão da eucaristia, perante a prática e a concepção de muitos irmãos separados, empenhados no diálogo ecumênico, do que em certas formas de celebração que estão acontecendo em grupos católicos.
Atrevo-me a aventurar uma pergunta: a partir dos consensos doutrinais dos representantes da Igrejas, nos diálogos ecumênicos, não deveria incentivar-se a celebração comum, como o melhor meio para ir caminhando para uma unidade maior e para uma crescente compreensão, de ambos os lados, do mistério da eucaristia, que sempre superará toda tentativa humana de explicação? É preciso partir da convicção de que as práticas e as explicações doutrinais das diversas Igrejas se enriqueceriam mutuamente nesse encontro fraterno, em torno ao mesmo altar, confessando a mesma fé, que nos une no único Corpo de Cristo. Que a união seja imperfeita, ela o é também entre os membros da mesma confissão.
Nós, também, temos o ardente desejo — afirma o Papa na encíclica Ut unum sint — de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo se toma já um louvor comum e uma mesma súplica. Juntos nós nos voltamos para o Pai e nós o fazemos cada vez mais, 'num só coração'. Às vezes, a possibilidade de poder por fim selar esta comunhão 'real, embora não ainda plena', parece bastante próxima.59
A nível do desejo, não se pode ir mais longe. Mas, o que impede a realização? Imediatamente antes o Papa o tinha dito: Por causa das divergências na fé, não é possível ainda concelebrar a mesma liturgia. Mas, mesmo em relação à hospitalidade litúrgica, a encíclica é bastante restritiva.
A teologia que está na base dessas atitudes é a seguinte: sendo a eucaristia a expressão máxima da unidade da Igreja, celebrar a eucaristia significaria uma identificação completa com a fé da Igreja que a celebra.
Não se poderia considerar a eucaristia também como caminho para uma unidade mais plena? Lembre-se o adágio tradicional de que a eucaristia faz a Igreja. Suposto o consenso nos pontos fundamentais, não seria a celebração comum do mistério unificador da Páscoa do Senhor o meio mais adequado para alcançar a graça — que só pode ser concedida como dom da entrega do Senhor, para o perdão dos pecados — da reconciliação plena?
O aspecto penitenciai da eucaristia, que tem suas raízes na todah do povo judeu e que é explicitado nas próprias palavras de Jesus, no relato da Instituição, foi muito esquecido na prática católica da eucaristia. A todah, memorial dos dons do Senhor, é acompanhada sempre pelo reconhecimento da própria infidelidade à Aliança. Giraudo chega a afirmar:
Tanto a todah veterotestamentária como a oração eucarística dizem que a história das relações entre os dois parceiros (da aliança) é a história de contínuas partidas e de infinitos retornos, desde o momento em que a relação, ou seja, a salvação, é relação e salvação incoativa, ao mesmo tempo plenamente realizada e devendo ainda realizar-se a cada instante da vida da Igreja.
E ainda:
Se a eucaristia representa a essência mesma da Igreja e o sacramento primordial que a funda, então é um direito de todo cristão que se reconhece pecador, ou seja, de todo cristão que, sabendo discernir o corpo e o sangue do Senhor, como penhor único de salvação, está decidido a fazer o melhor da sua parte, no âmbito das suas possibilidades reais e concretamente avaliadas, para conformar-se cada vez mais ao ideal evangélico. Não será de nenhum modo possível reduzir a comunhão do corpo e do sangue do Senhor a um certificado de boa conduta, a uma espécie de gratificação espiritual para quem já leva uma vida exemplar.60
É claro que um discernimento desse tipo não pode ser feito atualmente — e possivelmente nunca poderá ser feito — a nível universal das Igrejas. Com muita razão, a encíclica Ut unum sint (n. 80) reconhece como tarefa fundamental, no caminhar para uma plena reconciliação entre as Igrejas e no consenso nos pontos essenciais da fé, o envolvimento no processo de todo o povo de Deus. Os Consensos das comissões bilaterais devem ser recebidos pelas comunidades e tornar-se patrimônio comum da fé. Mas isso não poderá acontecer, se não é preparado por passos concretos, nessa direção, nas Igrejas particulares. É aí que pode ser feito um discernimento concreto e prudente sobre o progresso das comunidades no consenso a respeito dos pontos essenciais da fé e do desejo de caminhar para uma compreensão cada vez maior das divergências por acaso ainda existentes.
O Concílio Vaticano II abriu os caminhos para essa possibilidade, reencontrando uma eclesiologia de comunhão, na qual a Igreja universal é concebida como comunhão das Igrejas particulares, cada uma das quais manifesta em plenitude a Igreja de Deus numa realização singular da mesma e o ministério do Bispo de Roma como serviço da unidade dessas Igrejas. Nelas e a partir delas, existe a Igreja católica una e única, numa interioridade mútua entre Igreja universal e Igrejas particulares.61 Essa eclesiologia está presente também na encíclica Ut unum sint, mas está sendo realmente praticada?
Só na medida em que as comunidades derem passos concretos na direção de uma unidade reconciliada, poderão discernir se o consenso nos pontos essenciais lhes permite celebrar juntos a Eucaristia. Então a própria celebração do mistério central da fé, que abrange a totalidade do mistério cristão, irá abrindo corações e mentes a uma mútua e crescente compreensão. Tal discernimento só pode ser feito nas comunidades locais.
É assim que a eucaristia, que faz a Igreja, conduzirá à superação das divergências, que devam ser superadas, e a aceitar de coração aberto as legítimas diferenças nascidas da necessária singularidade das Igrejas particulares, por serem encarnações, situadas culturalmente, do único evangelho de Jesus Cristo. A aceitação recíproca enriquecerá as comunidades envolvidas no diálogo.
Se o diálogo ecumênico, conduzido por especialistas, através de pacientes e rigorosos estudos teológicos, alcançou consensos imprevisíveis no século passado, a recepção pelas comunidades desses consensos só poderá crescer no espaço onde essas comunidades vivem e expressam a fé: nas suas práticas de serviço fraterno e nas celebrações litúrgicas. Para chegar à possibilidade de um gesto público, a nível da Igreja universal, de reconhecimento mútuo dos ministérios, esse gesto deverá ser preparado por inúmeros gestos proféticos a nível das comunidades locais.
Quem poderá negar a contribuição do Irmão Roger Schutz para o caminhar do ecumenismo? A sua arriscada docilidade ao sopro do Espírito, a sua criatividade e perseverança tornaram possível a singular experiência da comunidade de Taizé — essa primavera da Igreja, na expressão de João XXIII. Os estudos dos especialistas são necessários. A prudência dos organismos institucionais é uma função requerida. Sem os gestos proféticos e arriscados de homens, que se deixaram invadir pelo Espírito, o qual sopra onde quer, a Igreja não passaria de uma instituição a mais para gerência das carências religiosas do ser humano. A cruz do Cristo é o dramático e exemplar testemunho disso.
Esse discernimento, que não é outro senão o discernimento do corpo e do sangue do Senhor, a que Paulo se refere em 1 Co 11.29, inclui o discernimento a respeito do ministério ordenado, incluindo um serviço ou ministério universal da unidade, liberado e purificado das deformações históricas. O consenso atingido pelas comissões mistas deve encontrar uma recepção na comunidade que celebra a eucaristia. Imposto autoritariamente pelos dirigentes das Igrejas, levaria a novas divisões. Eis mais uma razão que exige uma caminhada das comunidades e dos gestos proféticas a nível local, para que se possa chegar a uma reconciliação universal das Igrejas.
Esta certamente não será a absorção das diversas confissões na uniformidade da Igreja romana, mas a unidade na pluralidade de carismas e manifestações do Espírito nas diversas encarnações culturais da Igreja de Jesus Cristo. Fica então claro que a conversão exigida pelo caminhar ecumênico, no seu triplo aspecto — conversão dos corações, da inteligência da fé e dos organismos institucionais — atinge igualmente a todos os envolvidos no diálogo.
Celebrando a eucaristia juntos — por suposto, depois de discernir o corpo e o sangue do Senhor — aprenderíamos todos, também nós católicos, a celebrar melhor o mistério da morte e ressurreição do Senhor. E, quem sabe, também descobriríamos que há dentro da própria confissão divergências mais profundas do que aquelas que tradicionalmente atribuímos aos irmãos de outras confissões.
A eucaristia só pode ser celebrada por aqueles que se reconhecem pecadores diante de Deus e sempre necessitados da salvação oferecida na morte e ressurreição do Senhor.
Notas:
1. Cf. em SEDOC 6 (1973/74) cc. 1349-1354.
2. Cf. em SEDOC 5 (1972/73) cc. 683-688.
3. Ed. Brasileira da Comissão Mista Nacional Católico-Luterana. São Leopoldo, 1974. Texto francês em Comunicado Mensal da CNBB, n. 249, jun. 1973, p. 751-778.
4. Ed. Brasileira da Comissão Mista Nacional Católico-Luterana. São Leopoldo, 1978. Também em Comunicado Mensal da CNBB, n. 308, maio 1978, p. 512-538.
5. Fé e Constituição. Conselho Mundial das Igrejas, Batismo, Eucaristia, Ministério: convergência da fé. Rio de Janeiro: CONIC-CEDI, 1983.
6. Lembre, por exemplo, Groupe de Dombes, Accord doctrinal entre catholiques et protestants sur l'Eucharistie, Doc. Cath. 1606(1972)334-338. Fé e Constituição. Conselho Mundial das Igrejas, Batismo, Eucaristia, Ministério: convergência da fé. Rio de Janeiro: CONIC-CEDI, 1983.
7 Preferimos usar a expressão Pais da Igreja a Padres da Igreja, porque traduz melhor, em português, o sentido da expressão latina Patres Ecclesiae. Designam-se com este nome os escritores cristãos (leigos, diáconos, padres ou bispos) dos cinco primeiros séculos, nos quais a Igreja procura as origens do diálogo do evangelho com a cultura do Oriente ou do Ocidente. Podem ser chamados, com razão, Pais, na tarefa perene da inculturação do evangelho, para a evangelização da cultura.
8. Cf. B. SESBOÜÉ, Pour une théologie oecuménique. Paris: Ed. du Cerf, 1990, 233s.
9 Cf. J. O. DUKE, O código de direito canônico: perspectiva protestante. In J. HORTAL (trad. e org.), O código de direito canônico e o ecumenismo. Implicações ecumênicas da atual legislação canônica. São Paulo: Ed. Loyola, 1990, p. 55-86, 66.
10. Segundo Lukas Vischer, teólogo reformado, antigo diretor de Fé e Constituição, a encíclica Ut unum sint suscita nas Igrejas da Reforma sentimentos contraditórios. De um lado, devemos saudar as convicções fundamentais formuladas no texto. Correspondem em grande medida às convicções que o Conselho ecumênico propaga desde há anos... Põe-se, porém, novamente a questão: o pontificado de João Paulo II corresponde a esta visão? Não segue um modelo bem mais autoritário e centralizador? As Igrejas originadas da Reforma não poderão nunca associar-se à visão da unidade, tal como ela é vivida na Igreja católica hoje (Entrevista dada ao jornal La Corix, no dia 1° de junho de 1995), citado por J. RIGAL, L'ecclésiologie de communion. Son évolution historique et ses fondements. Paris: Ed. du Cerf, 1997, p. 374, n. 1.
11. CONCÍLIO VATICANO II, v. III, Segunda sessão (set.-dez. 1963). Compilado por B. KLOPPENBURG. Petrópolis: Vozes, 1964, p. 515.
12. Citado por B. SESBOOÉ, Paur une théologie oecuménique, p. 30. O. de la BROS-SE, H. HOLSTEIN, C. LEFEBVRE, Latran V et Trente, t. 1. Paris: Orante, 1975, p. 168-169.
13. Simples e concebida de forma estática, porque se esquece que a eucaristia é mais do que isso. É presença do mistério pascal.
14. Até faz pouco tempo, os catequistas ensinavam que não se podia morder e até nem tocar com os dentes a hóstia.
15. Tais missas eram chamadas pelos reformadores privadas. O Concílio de Trento teve que defender sua legitimidade e seu caráter público, porque são celebradas pelo ministro público da Igreja em favor de todos os fiéis, embora reconhecendo não ser o ideal. Cf. DS 1747,1758. Aliás, o fato de ser chamado de o celebrante aquele que preside a celebração da comunidade, uso que prevaleceu até ao Concílio Vaticano II, mostra os limites da teologia eucarística da época.
16. Cf. S. MARSILI (ed.), La Liturgia, eucaristia: teologia e storia della celebrazione. Casale Monferrato: Marietti,1983, p. 66, que tira os dados históricos de P. BROWE, SJ, Die Verehrung der Eucharistie im Mittelalter, Roma, 1967.
17.Cf. A. FRANZ, Die Messe im deutschert Mittelalter. 1902, p. 103, cit. por MARSI-LI, op. cit., p. 64.
18. N.° 9. Os mesmos textos da reforma litúrgica, promovida pelo Concílio, como, por exemplo, a Instrução Geral sobre o Missal Romano, mostram uma certa flutuação na terminologia na hora de designar aquele que preside a celebração. Essa hesitação é ainda mais visível na linguagem dos fiéis: Não se muda de um dia para outro um tipo de linguagem modelado durante quatro séculos.
19. Uma vez que a oração eucarística se refere sempre à transformação dos dons para a comunhão do corpo e do sangue do Cristo, só seriam transformados, segundo Lutero, no momento da comunhão ou em função dela (in usu). Mas não se esqueça que Lutero mandava que não se deixassem restos do alimento eucarístico e se queimassem os resíduos. Não expressa bem a sua concepção da conversão eucarística o termo impanatio ou consubstanciação, com que às vezes é denominada. Quando ele fala da permanência do pão e do vinho, ou do pão-corpo e do vinho-sangue, ele quer afirmar a permanência dos sinais sacramentais, ou a forma sacramental da presença do corpo e do sangue. Pode-se criticar a filosofia da linguagem que está por trás dessas expressões, mas não a ortodoxia da fé. O que tanto Lutero como Calvino sustentam, ao rejeitarem a expressão transubstanciação, é a recusa a toda explicação filosófica do vínculo do corpo e sangue do Cristo com os sinais sacramentais do pão e do vinho. Mas certamente afirmam que a realidade profunda do pão e do vinho é o corpo e o sangue do Cristo, de forma sacramental. O Concílio de Trento não definiu, como necessário para a fé, o termo transubstanciação. Apenas afirmou que o termo era acertado para designar a conversão que tem lugar na eucaristia. Por isso hoje os luteranos, capazes de entender a filosofia escolástica, podem admiti-lo, embora reconhecendo, como nós o fazemos, que essa terminologia, no horizonte cultural hodierno, pode confundir mais do que esclarecer a compreensão do mistério da eucaristia. Cf. M. THURIAN, O Mistério da Eucaristia. Uma abordagem ecumênica. São Paulo: Ed. Loyola, 1986, p. 40-43.
20 Cf. M. THURIAN, El misterio de la Eucaristía. Un enfoque ecuménico. Barcelona: Herder, 1983.
21. C. GIRAUDO, Eucaristia per la Chiesa. Prospective teologiche sull'eucaristia a partire dalla lex orandi. Roma: GUP-Morcelliana, 1989 (ver p. 1-33).
22. F.-X. DURRWELL, La eucaristia, sacramento pascual. Salamanca: Ed. Sígueme, 1997, p. 16.
23. Ibid., p. 17.
24 Quando o grande santo Tomás, obrigado pelo ambiente cultural que o cercava, lançou mão das categorias aristotélicas e platônicas, para compreender e explicar o mistério revelado, em diálogo com a cultura universitária dominante, teve que superar laboriosamente o círculo estreito dessas filosofias. As categorias aristotélicas são um momento, dialeticarnente superado a cada instante, para compreender a linguagem da revelação. Por isso ele adverte: De divinis non de facili debet homo loqui quam sacra Scriptura (Das realidades divinas não deve o homem falar com facilidade de outra forma que a Sagrada Escritura) (Contra errores graecorum, c. 1, § 1032). Sobre isso pode ver-se o magistral trabalho de M. CORBIN, Le chemin de la théologie chez Thomas d'Aquin. Paris: Beauchesne, 1974. Ver também meu trabalho: Conhecimento de Deus e evangelização. São Paulo: Loyola, 1977, p. 108-117.
25. L. BOUYER, Eucharistie. Paris, 1966, p. 11.
26. L.-M. CHAUVET, Symbole et Sacrement. Une relecture sacramentelle de l'existence chrétienne. Paris: Ed. du Cerf, 1990.
27. A reflexão clássica sobre os sacramentos desenvolveu-se muito unilateralmente a partir da causalidade eficiente, com esquemas de representação de tipo producionista, deixando na sombra o mais caraterístico dos sacramentos que é a sua realidade simbólica. Tanto assim que o simbólico será oposto às vezes ao real, como mostra a história das controvérsias sobre a presença real. A obra de Chauvet começa, por isso, sob a guia de Heiddeger, tentando superar a metafísica para pensar o simbólico (cf. p. 14-49).
28. X. DURRWELL, La résurrection de Jésus, mystère de salut: étude biblique. 3. éd. Le Puy: Ed. Xavier Mappus, 1954.
29. In Mat. Hom., PG 66, 714. O grifado é meu: a conversão é atribuída à ação de graças, ou seja, à oração eucarística.
30. Em Prière eucharistique et paroles de la consécration selon les théologies de Pierre Lombardi à S. Thomas d'Aquin, publicado originalmente em Lex orandi, lex credendi. Roma: Miscellanea C. Vagaggini, 1980, p. 221-233. Retomado em P.-M. GY, La Liturgie dans l'histoire. Paris: Cerf-Saint Paul, 1990, p. 211. Nesse artigo de Gy podem ver-se as origens históricas de concentrar no relato da instituição o poder consecratório da oração. Teoria que vigorou no Ocidente até ao Concílio, e que ainda permanece na convicção de muitos. O conflito entre a concepção teológica da eucaristia dos tempos pós-tridentinos e a concepção que aparecia na Institutio obrigou Paulo VI, com intuito conciliatório, a fazer preceder na Institutio o primeiro capítulo, com um proêmio e a modificar a redação dos n. 7, 48, 55d e 60. Se a modificação do n. 48 parece-me muito acertada, ao precisar que a eucaristia torna presente na Igreja o sacrifício da cruz, e não a última ceia, como poderia entender-se da redação anterior, as outras introduzem uma ambiguidade entre a concepção renovada da eucaristia e a interpretação tradicional de Trento (que certamente não é negado pela interpretação renovada). Para ver esses debates, que atrasaram a publicação do Missal, prevista para 1969, até 1970, ver A. Bugnini, La riforma liturgica (1948-1975), op. cit., p. 390s. O texto anterior da Institutio, no original latino com a tradução castelhana, pode ver-se em Nuevas normas de la misa, ordenación general del Misal Romano. Madrid: BAC, 1969.
31. A primeira versão enumerava a narrativa da instituição entre os elementos que compõem a oração eucarística, definida no n. 54 como prece de ação de graças e santificação, ou seja, como epiclética ou consecratória, toda ela. Lia-se nessa primeira edição, 54d: A narrativa da instituição, pela qual, com as palavras e ações de Cristo se representa aquela última ceia, na qual o próprio Cristo, Senhor, instituiu o sacramento da sua Paixão e ressurreição, quando [...I na edição do Missal se lê: A narrativa da instituição e consagração, quando pelas palavras e ações de Cristo se realiza o sacrifício que ele instituiu na última ceia [...]
32. S. AMBRÓSIO, Os sacramentos e os mistérios. Petrópolis: Vozes, 1972, IV, 14, p. 50. Cf. a tese de C. GIRAUDO, La struttura letteraria della preghiera eucaristica. Roma: Ed. PIB, 1989, especialmente p. 236-359.
33 P.-M. GY, op. cit., p. 215.
34 Cf. a tese de C. GIRAUDO, La struttura letteraria deita preghiera eucaristica. Roma: Ed. PIB, 1989, especialmente p. 236-359.
35. Este é apenas um exemplo entre outros, analisado por GIRAUDO, op. cit., p. 313.
36 Esta expressão aparece freqüentemente na eucologia do Missal romano, especialmente nas orações após a comunhão.
37 Diz-se de certa forma, para mostrar que a eucaristia, como a Igreja, nasce do mistério pascal. O gesto instituinte de Jesus na ceia só manifesta todo o seu poder instituinte no mistério pascal. Numa teologia jurídica, a instituição teria lugar apenas com o gesto de Jesus na ceia. Numa teologia que quer mostrar como a vida de Cristo nos é comunicada, o gesto profético da ceia adquire sua realidade na morte e ressurreição do Senhor. É do lado de Cristo morto que jorram o sangue e a água. Símbolos do corpo imolado — da entrega ou do amor até ao fim — e do Espírito que jorra da entrega do Cristo e faz nascer a Igreja. Símbolos, também, num sentido derivado do anterior, da água do batismo e da eucaristia.
38. Ver, por exemplo, Ne 9, 6-37. Cf. C. GIRAUDO, op. cit., p. 93s.
39. No duplo sentido que o evangelho de João dá a essa palavra. A morte de Jesus é sua glorificação, porque é a expressão suprema do seu amor ao Pai e a nós.
40. Sobre a densidade semântica do pão e do vinho na Bíblia, cf. L.-M. CHAUVET, Symbole..., p. 402s.
41. O termo usado por Jesus pode traduzir-se pelas duas formas e se refere à pessoa toda.
42. Lembre-se que a linguagem simbólica designa realidades não menos consistentes do que as designadas pela linguagem fisicista.
43. Este trecho da carta aos Coríntios, como a carta aos Hebreus, e mais radicalmente por tratar-se do culto pagão, contrapõe a oblação do Cristo aos sacrifícios das carnes de animais.
44 Op. cit, p. 607.
45. A oração eucarística também contém como primeiro dos aspetos da sua riqueza eucológica, no qual se inserirão todos os outros, a proclamação, confissão ou memória narrativa do evento da salvação em Cristo. Mas essa proclamação é feita como resposta da comunidade à palavra anteriormente proclamada. A anáfora, junto com a comunhão, é a resposta perfeita à palavra, porque unida à resposta do Cristo.
46. O Símbolo da fé é recitado ou cantado aos domingos e em determinadas festas — sempre se reza nos festas que comemoram algum mistério mencionado no Credo. Originariamente é a profissão de fé batismal (daí a sua redação em singular). Provavelmente entra no culto cristão como defesa contra a heresia, mas logo perde seu ca-ráter polêmico para converter-se em oração. (Cf. J. A. JUNGMANN, El Sacrificio de Ia Misa. Madrid: Herder & Ed. Católica, 1959 [BAC 681, p. 509-523).
47. A oração dos fiéis seguia à liturgia da palavra, desde os tempos apostólicos. O testemunho de Justino não deixa dúvidas: depois da homilia do Bispo, todos nos levantamos — diz Justino (Apol. 1,67) — e elevamos nossas preces. No começo, o próprio Bispo formulava as preces. Mais tarde, o fará o diácono, após o convite do Bispo para a oração. O povo respondia com o Kyrie eleison ou outra invocação. Na liturgia romana perdeu-se esta oração dos fiéis (restando como vestígio dela a Oração universal da sexta-feira santa). A renovação litúrgica do Concílio Vaticano II a reintroduziu.
48. O Credo é, de alguma forma, uma antecipação da confissão dos eventos salvíficos que a oração eucarística, enquanto memorial da salvação, proclama. É significativo que a própria oração eucarística receba às vezes a denominação de exomologêsis. O termo tem o duplo sentido de proclamar ou confessar com gratidão os dons de Deus e de confessar a infidelidade da resposta do povo.
49 C. GIRAUDO, Eucaristia per la Chiesa, p. 382-505.
50. Giraudo põe este trecho da oração como conclusão da parte anamnético-celebrativa. Eu me inclino a situá-lo como transição dessa parte para a parte epiclética, uma vez que a oblação é o motivo principal do período sintático. Afirma-se que a oblação é precisamente o memorial do mistério pascal. Ora, a oblação está intimamente ligada com a epiclese ou invocação do Espírito sobre a oferenda. Esta transição é funda-mental para mostrar a unidade da oração, pois a oferenda é a própria ação de graças anamnética que inicia e encerra a anáfora. A íntima conexão do aspecto oblativo com o epiclético ajudará a compreender a peculiaridade do Cânon romano.
51. Contém, evidentemente, uma alusão ao fato institucional, mas não ainda o embo-lismo escriturístico. Isso é uma prova clara de como se deve interpretar a consciên-cia da Igreja de que a eucaristia se realiza em virtude da instituição do Cristo, das palavras de Cristo na ceia. Mas não necessariamente da repetição dessas palavras pelo sacerdote. Eis o texto: E nós também (repete três vezes) teus frágeis servos, débeis e fracos, que fomos congregados em teu nome e estamos diante de ti agora e recebemos com júbilo o exemplo (typum) que vem de ti, alegrando-nos, louvando, exaltando e comemorando e celebrando este mistério grande e tremendo e santo e vivificante e divino da paixão, da morte, da sepultura e da ressurreição do Senhor e Salvador Jesus Cristo. Segue a epiclese dupla.
52 Cf. Eucaristia per la Chiesa, op. cit., p. 485.
53 Cf. A. HÄNGGI — I. PAUL (ed.), Prex eucharistica. Textus e variis liturgiis anti-quioribus selecti. Fribourg Suisse: Ed. Universitaires, 1968. Ver, também, J. M. SÁNCHEZ CARO, Eucaristía e Historia de Ia Salvación. Estudio sobre la plegaria eucarística oriental. Madrid: BAC, 1983, p. 146s.
54. e sacramentis, V, 21 (Sources Chrétiennes, n. 25 bis, Paris, 1961, p. 114). Citado por E. MAZZA, Le odierne preghiere eucaristiche, 1/ Strutture, Teologia, Fonti. Bologna: Ed. Dehoniane, 1991, p. 151s.
55 Ibid., p. 153s.
56 Cf. A. GERKEN, Teologia de la eucaristia. Madrid: Paulinas, 1991, p. 59-91.
57.Cf. E. MAZZA, Le odierne preghiere eucaristiche, v. 2. Testi e documenti editi ed inediti. Bologna: EDB, 1991, p. 161-162.
58. Estamos referindo-nos a fatos concretos, recentes.
59. N.45.
60 C. GIRAUDO, La struttura letteraria della preghiera eucaristica, Berakâ giudaica, anafara cristiana. (AB 92). Roma: PIB, 1989, p. 369; cf. etiarn p. 366-370.
61 Cf. J. RIGAL, L'ecclésiologie de communion, p. 59-81.
Veja mais:
Apresentação – Huberto Kirchheim
Palavras de Apresentação – Dom Ivo Lorscheiter
Hospitalidade eucarística - Declaração de um seminário bilateral — IECLB-CNBB
Hospitalidade eucarística - Silfredo Bernardo Dalferth
Lucas 17.11-19 — Uma reflexão ecumênica - Gottfried Brakemeier
Admissão Mútua à Ceia do Senhor - Joseph Hoffmann, Wenzel Lohff e Harding Meyer
Eucaristia e unidade eclesial - Juan A. Ruiz de Gopegui, SJ