Quase ao final da campanha eleitoral que conduziu Lula à presidência da república, a atriz Regina Duarte pronunciou a frase mais polêmica daquele momento. Afirmou que “tinha medo” de viver num país governado por Lula e o PT. Logo após a vitória Lula afirmou que “a esperança venceu o medo”. Emblemático!
Hoje, após nove meses de mandato, poderíamos perguntar: quem tem medo e quem tem esperança?
Curiosa situação: aqueles que há pouco nutriam medo e eram hostis às possíveis mudanças sociais inevitáveis em uma nação com Lula como presidente agora demonstram esperança de que, afinal de contas, não haverá transição política abrupta ou rupturas econômicas. Aqueles que se enchiam de esperança de verem o começo de um novo Brasil, muito diferente em aspectos vitais da política, economia ou sociedade, começam a desconfiar de suas certezas e perceber que o jogo é muito mais complexo.
Este processo de transferência de expectativas vem se acelerando fortemente nas últimas semanas, chegando a ponto de provocar euforia nos opositores de ontem e ao menos uma incômoda angústia em muitos daqueles que até agora acreditavam em mudanças.
Há muitas questões em aberto e, certamente, a vida política em nosso país em 2003 sofreu uma forte aceleração. Abaixo, comentaremos algumas das questões mais relevantes.
Em termos de macro-economia há diversos indicadores positivos. A balança comercial apresenta, até o momento, um superávit de mais de 17 bilhões de dólares – o melhor desempenho dos últimos dez anos. A projeção é superar os US$ 20 bilhões até o final do ano. Mas todos estes recursos estão comprometidos com o pagamento dos serviços da dívida externa brasileira, que ultrapassa os R$ 240 bilhões. A taxa de câmbio do dólar, que no final de 2002 sofreu fortes altas (quase R$ 4,00 por dólar), acabou recuando e se estabilizou (R$ 2,90 por dólar). Não apresenta nenhuma mudança significativa há seis meses, o que não é pouco, considerando os momentos anteriores. O chamado risco Brasil, um indicador que mede a confiança dos investidores externos no país, recuou de praticamente 1300 para algo em torno de 700 pontos. A inflação se encontra sob controle. Assim, conseguiu-se manter a estabilidade monetária, base de toda política econômica brasileira, e os dirigentes públicos recebem copiosos elogios de organizações como FMI, Banco Mundial, etc.
Possivelmente ainda mais significativas sejam as mudanças da política externa brasileira. Em primeiro lugar, trata-se de buscar um papel mais soberano perante os países industrializados e, também, maior protagonismo nos foros internacionais. Nesta perspectiva encontram-se os esforços de ampliação do Mercosul, a resistência ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), o papel de liderança dos países emergentes perante a Organização Mundial do Comércio (a denominada articulação do G21) e o diálogo com importantes países como África do Sul, Índia e China. Também são muito significativas as iniciativas de cooperação internacional, entre as quais podem ser destacadas a ajuda humanitária em remédios e recursos humanos para diversos países africanos vítimas da epidemia de AIDS, a liderança no processo de mediação da crise venezuelana e a recente oferta de espaço para apoiar as iniciativas de paz da Colômbia. Os esforços de Lula para colocar a questão da fome na agenda mundial e outras posições humanitárias acabam por colocá-lo na lista dos nomes comentados para o prêmio Nobel da Paz. Tudo isso traz orgulho para a população brasileira.
Neste novo direcionamento da política externa abrem-se inéditas possibilidades de trocas comerciais ou tecnológicas, apoio ao fortalecimento das grandes causas sociais mundiais e um papel muito mais ativo para o Brasil na política internacional.
O sucesso dos indicadores macro-econômicos e da política internacional é ainda mais significativo se considerarmos o contexto internacional, que é bastante desfavorável.
Contudo, no âmbito interno a situação não é tão animadora. Vivem-se tempos difíceis, tanto nos aspectos econômicos como em termos sociais e políticos.
Na agenda política há cinco importantes reformas em pauta: previdência, tributária, trabalhista, do judiciário e a própria reforma política. Destas, avançaram as reformas da previdência e tributária. As demais encontram-se em gestação.
Que avaliação é possível fazer deste processo de reformas?
A reforma da previdência, por mais significativa e adequada que tenha sido (há controvérsias quanto à eficácia ou justiça das mudanças aprovadas), afeta somente uma pequena parcela da população. Ademais, acossada pelo mais variado tipo de pressões, não conseguiu corrigir todas as históricas distorções e desigualdades de tratamento existentes entre os funcionários públicos.
A reforma tributária não diminuiu a elevada carga tributária existente no país. Calcula-se que 38% da renda nacional são consumidos em impostos. A grosso modo, pode-se dizer que toda pessoa assalariada trabalha quase cinco meses por ano para pagar impostos diretos e indiretos. E esta desmesurada proporção de recursos em impostos manteve-se praticamente inalterada. Além de desonerar produtos de consumo da população de baixa renda e diminuir o número de alíquotas de tributação sobre mercadorias, o que se fez foram alguns ajustes para manter o equilíbrio das contas públicas e algumas pequenas concessões aos governos estaduais e municípios. Questões importantes, como o fim da guerra fiscal, embora aprovadas em princípio, ficaram para serem regulamentadas em lei complementar. A diminuição do número de impostos ou da carga tributária sequer foi debatida.
Ainda que a legislação trabalhista brasileira tenha sido estabelecida fundamentalmente nos anos 40 do século passado, sendo, portanto, passível de reforma, o cenário da reforma trabalhista é dos mais complicados. Será, sem dúvida, a reforma que mais atingirá o conjunto da população. De um lado, se articulam com boa desenvoltura as propostas de uma classe empresarial que se encontra à vontade no jogo político. De outro lado, até o momento estão os tímidos ensaios de manutenção de direitos por parte do enfraquecido movimento sindical brasileiro, que, contudo, se abriga sob o manto da obrigatoriedade da contribuição sindical. Assim, a reforma trabalhista caminha para mudanças na legislação que permitirão maior flexibilidade nos contratos, diminuição de direitos dos trabalhadores e maior precariedade no trabalho. Tudo em nome de uma pretensa diminuição do chamado “Custo Brasil” e o aumento dos níveis de emprego. Porém, ainda é uma incógnita em que medida esta reforma afetará as relações de trabalho, pois as propostas ainda não estão colocadas de forma aberta ao debate. Não tardará muito.
A reforma do judiciário não possui clima para tramitar, devido à extraordinária resistência do próprio judiciário, com seus múltiplos privilégios, e as reformas políticas, por sua vez, aparentemente não despertam interesse nem do executivo nem do parlamento. Isto se deve, em grande parte, pela manutenção do exercício de governo através de acordos de bastidores, troca de votos por cargos e favores políticos e pela manutenção de poder dos grandes caciques regionais. Nisto o atual governo pouco difere dos anteriores. Assim, as estruturas de poder continuam inalteradas e até mesmo as grandes figuras de ontem continuam tendo prestígio, influência e poder.
Mas são nas questões econômicas e sociais que se encontram os maiores desafios – e medos.
O Programa Fome Zero é a iniciativa mais visível de política pública com finalidade social. No momento, encontra-se numa fase em que ainda não deslanchou, mas tampouco pode ser considerado um fracasso. O programa Fome Zero custará R$ 6 bilhões este ano, mas os juros da dívida pública consumiram R$ 114 bilhões em 2002 (um crescimento de 32% em relação a 2001) e agora certamente aumentarão. A cada dia do ano passado, o governo (União, estados e municípios) transferiu R$ 312,268 milhões para os bancos e fundos de investimento. Os gastos com juros foram mais do dobro do superávit primário (R$ 52,4 bilhões) e o setor público fechou 2002 com um rombo de R$ 61,6 bilhões. Fernando Henrique Cardoso ainda deixou como herança a dívida bruta de R$ 1,132 trilhão.
Entretanto, outras políticas públicas e programas sociais, em qualquer âmbito, estão sofrendo cortes orçamentários e com muita dificuldade poderão apresentar alternativas de vida para amplas parcelas da população excluída.
Um bom exemplo é a questão agrária. Há décadas se fala em reforma agrária, se propõem modelos e se adotam políticas para esta questão. Contudo, continua sendo uma questão atual. Basta ver alguns indicadores sociais sobre violência no campo.
Indicadores em 2002 e até agosto de 2003 (fonte Comissão Pastoral da Terra) - assassinatos no campo: 43 e 46; conflitos de terra: 567 e 202; ocupações: 184 e 126; casas destruídas: 1.459 e 1.757; roças destruídas: 1.384 e 1.226.
A simples leitura destes números nos faz enxergar que os conflitos no campo aumentaram significativamente em 2003, em especial o número de assassinatos de camponeses e indígenas envolvidos em lutas pela terra. Considerando que os recursos para reforma agrária diminuíram (e continuarão em decréscimo) e as inerentes dificuldades jurídicas e estruturais para realizar assentamentos, não é difícil prever um aumento dos conflitos pela terra no Brasil.
No contexto urbano a questão social mais candente é o desemprego. Calcula-se que somente na região metropolitana de São Paulo há quase dois milhões de trabalhadores desempregados. O decréscimo verificado durante todo o ano na produção industrial faz com que toda cadeia de ocupações de trabalho no meio urbano sofra reduções. Os serviços e atividades comerciais encolhem e uma ampla massa de trabalhadores se vê obrigada a sobreviver a partir de biscates, trabalhos informais ou até mesmo clandestinos. O desemprego no setor industrial é particularmente duro, porque afeta chefes de família numa faixa etária na qual não há opções de recolocação ou novas carreiras. A ampliação dos índices de desemprego também “puxa para baixo” os níveis de remuneração, precarizando as já difíceis condições de trabalho encontradas no país. As políticas públicas - e esta questão não aparece somente no Brasil ou nos países pobres - estão muito longe de produzirem respostas satisfatórias ao drama da falta de trabalho e geração de renda.
É neste contexto que cresce a violência urbana. Particularmente a violência contra as crianças, adolescentes e jovens que não encontram perspectivas de futuro em seu presente. Vivendo em bairros afastados ou favelas (ou na rua mesmo), sob o estigma da pobreza, sem acesso adequado a educação, saúde, lazer ou ofertas de trabalho, vivem como exilados dentro de seu próprio país. Vivem com medo da violência e – ocasionalmente – também a produzem. Assim, reproduz-se nas cidades brasileiras (e não somente nas grandes metrópoles) dinâmicas de exclusão na qual a grande maioria da população sofre seus efeitos.
Luta pela terra, desemprego e violência urbana também encontram respostas (ou tentativas) organizadas da população. No campo há centenas de assentamentos de reforma agrária tentando produzir e distribuir alimentos. Há também milhares de famílias em acampamentos, lutando por um justo pedaço de terra para viverem em paz. Nas cidades se organizam associações, pequenas cooperativas, grupos de produção e de ajuda mútua para enfrentarem as difíceis condições produzidas pelo modelo econômico. São, em sua maioria, animadas por mulheres que não podem nem querem permanecer de braços cruzados diante da falta de alternativas. Também aumentam, em número e importância, os movimentos culturais (sobretudo de jovens populares de meio urbano) que pregam a paz, a tolerância com questões de gênero e opções sexuais e lutam contra o racismo e outras formas de preconceito.
Assim, se por um lado vivemos sob evidentes e fortes sinais de medo, também é necessário reconhecer os sinais de esperança.
Texto produzido em setembro de 2003 pela equipe executiva da Fundação Luterana de Diaconia: Ana Cristina Kirchheim, Deisimer Grocevski, Luis Stephanou e Silvio Schneider.