OS CASAMENTOS INTERCONFESSIONAIS
APRESENTAÇÃO
Sentido do documento elaborado pela Comissão Teológica do CONIC — Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
Como o próprio texto do documento indica, a Comissão partiu da constatação da realidade atual, com a multiplicação dos casamentos mistos em nosso meio; e de que nem sequer padres e pastores sabem, muitas vezes, como atuar neste campo.
O documento não pretende solucionar nenhum problema teológico de natureza dogmática. Neste sentido, deve ficar bem claro que o CONIC, não sendo uma instância doutrinária, não tem nenhuma autoridade para mudar o que está estabelecido pelas diferentes Igrejas. Por isso, à comissão cabe apenas relatar o que consta ser doutrina aceita em cada Igreja, sem fazer uma crítica da mesma. O único possível, sob este aspecto, é tentar mostrar as convergências que podem ocultar-se atrás da diversidade aparente.
Igualmente, o CONIC carece de autoridade disciplinar sobre as Igrejas-membros. Por isso, ao expor a disciplina em vigor nas Igrejas, não nos compete incentivar ações que sejam contrárias a quanto está determinado como obrigatório para os membros de uma delas. Mesmo percebendo as dificuldades que derivam de algumas normas em vigor e até desejando a mudança delas, os membros da comissão não podem negar a autoridade das instâncias competentes que as ditaram. Valha isso, de modo especial, no que se refere ao problema dos batismos dos filhos de casais mistos. O que se pretende, de modo especial, é tentar uma exposição o mais compreensível para todos, buscando também uma interpretação que alargue os horizontes, sem violentar o texto da lei.
A orientação eminentemente prática do documento levou-nos a constatar que a maior parte das dificuldades, na área dos matrimônios interconfessionais, surge da legislação católico-romana em vigor. Por isso foi--lhe dada uma atenção especial, sem que isso signifique valorizar mais uma Igreja do que as outras. Daí também a atenção concedida aos documentos do diálogo luterano-católico romano-reformado e do anglicano-católico romano sobre a teologia do matrimônio e os matrimônios mistos. Não havendo nenhum documento semelhante, no diálogo interconfessional dos metodistas, não foi possível contar com ele.
Na elaboração do presente documento, foram examinados outros semelhantes da Alemanha, do Canadá e da Inglaterra. Em geral, esses documentos são muito mais sintéticos em relação às questões dogmáticas e são dirigidos exclusivamente aos noivos. A comissão brasileira achou que a informação sobre a doutrina poderia servir não só aos mesmos noivos, mas também aos padres e pastores, no diálogo a ser desenvolvido nas bases, sem o qual o escrito seria perfeitamente dispensável.
Enviaremos inicialmente este às Igrejas, para sua divulgação e experimentação, por um período de dois ou três anos, após o qual, de acordo com as reações recebidas das bases, poder-se-á pensar numa redação mais completa e definitiva.
Como é lógico, as considerações teológico-pastorais do mesmo referem-se primeiramente às Igrejas--membros do CONIC. Em princípio, valem também para outras Igrejas pertencentes às mesmas tradições. Contudo, não se pode esquecer que sempre há pequenas nuanças entre denominações da mesma tradição. Julgamos que não é possível especificar todas essas nuanças e que, por isso, pastores e padres deverão estar atentos, em cada caso concreto, ao que a Igreja em questão crê e pratica.
Mais difícil ainda seria pretender englobar, no nosso documento, Igrejas ou comunidades eclesiais que se originaram em tradições diferentes, como as Igrejas ortodoxas, batistas, pentecostais etc. Sem uma colaboração direta de teólogos e autoridades delas, seria muito arriscado dar uma visão adquirida apenas por observação externa. Mesmo assim, parece-nos que as linhas gerais deste podem servir como diretivas práticas, a serem adaptadas, de acordo com as circunstâncias, também nesses casos.
A Comissão Teológica do CONIC
Porto Alegre 3/6/86
OS CASAMENTOS INTERCONFESSIONAIS: Uma visão Teológico-pastoral
1. Uma constatação
Os casamentos entre cristãos de diversas confissões são uma realidade cotidiana no nosso meio. Em tempos passados, houve quem pensasse que a separação, inclusive física, entre as diversas comunidades seria um ideal a ser mantido para sempre. A história da colonização alemã no Rio Grande do Sul, por exemplo, mostra um esforço para manter áreas católicas e protestantes. Mas este suposto ideal ruiu com a mobilidade crescente das populações. As comunidades se interpenetraram e a inclinação natural entre o homem e a mulher não se deteve perante as barreiras confessionais. Com raras exceções, os matrimônios interconfessionais passaram a ser parte de nossa realidade cotidiana. As Igrejas-membros do CONIC não podem fechar os olhos perante essa realidade e se perguntam como avaliá-la.
Devemos afirmar, em primeiro lugar, que alguns aspectos positivos dessa situação são inegáveis. Assim, constatamos um respeito mais profundo pela fé do parceiro no casamento. Por razões que nem sempre apareciam claras, um dos cônjuges do matrimônio interconfessional era obrigado a virar de religião. Às vezes, tratava-se da mulher que sofria as imposições do marido; às vezes, a família mais fechada ao diálogo prevalecia sobre a de mentalidade mais aberta. Hoje, compreendemos que uma mudança de adscrição confessional não pode ser fruto de conveniências sociais e que só se justifica por um convencimento pessoal e profundo. A fé não brota de imposições externas; ela é fruto de uma resposta livre ao chamado de Deus.
Além disso, a convivência, no mesmo lar, de cristãos de diversas confissões pode ser a base para o conhecimento mútuo maior e, em muitos casos, para um respeito mais profundo da fé e da prática religiosa do outro cônjuge. Preconceitos e falsas concepções ruem mais facilmente na convivência cotidiana do que no contato esporádico e superficial. Neste sentido, podemos afirmar que os casais interconfessionais podem ser uma verdadeira escola de ecumenismo prático. O desejo de unidade entre os cristãos brota espontaneamente em seu seio e o caráter dramático da separação entre os que invocam o mesmo Cristo se torna experiência vivida no dia-a-dia.
Não podemos silenciar, porém, as dificuldades que também derivam da multiplicação dos matrimônios interconfessionais. Não é raro encontrar, nestes lares, um menor senso de identificação confessional; não precisamente por um progresso para unidade autêntica em Cristo, mas pela descaracterização da fé de cada um dos parceiros. É até frequente que certo indiferentismo, ou pelo menos uma diminuição do fervor de ambos os cônjuges, seja constatado nessas uniões. E esse indiferentismo atinge também, numa porcentagem significativa, os filhos desses casais interconfessionais.
2. Tentando uma compreensão comum do Matrimônio
Todas as Igrejas cristãs compreendem o matrimônio como uma instituição querida por Deus. O próprio Deus é o princípio e a fonte de todo amor e de toda comunhão de vida. Ele deu, na história, o exemplo ímpar do amor. A Aliança do Antigo Testamento foi uma figura e um testemunho profético da eterna e Nova Aliança do Senhor com seu Povo. O Cristo se revela, no Novo Testamento, como o esposo por excelência (2Cor 11,2; Ap 21,2), que demonstra o seu amor entregando sua vida na cruz. No relatório final da comissão de estudos constituída pela Igreja Católica Romana, a Federação Luterana Mundial e a Aliança Reformada Mundial, sobre A Teologia do Matrimônio e o Problema dos Matrimônios Mistos (Veneza, 1976), encontramos a seguinte declaração:
Tal mistério (da entrega de Cristo à Igreja), estamos convencidos, não é, e não pode ser estranho à situação conjugal. De fato, a Aliança projetada desde a criação do mundo, manifestada em Israel, realizada em Jesus Cristo, anunciada pela Igreja dos Apóstolos, comunicada pelo Espírito Santo, revela que o próprio Deus se compromete, em Jesus Cristo, a fim de conduzir todo o amor até sua verdade total. Se alguém nos perguntar quem é esse Jesus Cristo que desempenha tal papel no amor conjugal, responderemos sem duvidar: é o Senhor da Promessa, o Senhor da Aliança, o Senhor da Graça. É por isso que, sem esquecer nunca a ação do Espírito Santo no seio de todo amor conjugal, afirmamos que o fato de os cristãos pertencerem, pela incorporação batismal, à vida de um tal Senhor é algo que atinge também sua existência conjugal (no. 16).
De modo semelhante, a Comissão Internacional Anglicano-Católico-romana, em seu Relatório sobre a Teologia do Matrimônio e sua aplicação aos Matrimônios Mistos (Londres, 1975), descreve a união conjugal como um sinal, para o mundo e para a Igreja, da aliança irrevogável de Cristo com a Igreja e do amor mútuo que encontra expressão entre Ele e a Igreja, e que deve existir entre os membros da Igreja: um sinal para os casados, para o mundo e para a Igreja, de que a permanência no seio dessa aliança depende do perdão contínuo e da renovação da graça de Deus.
A doutrina exposta pode, pois, ser considerada comum a todas as nossas Igrejas. As divergências doutrinárias ulteriores não anulam essa concordância. A primeira dessas divergências refere-se à conceituação teológica do matrimônio. Para a Igreja Católica Romana, ele é um sacramento, no sentido mais pleno da palavra. Na tradição da Igreja Episcopal (Anglicana), o matrimônio também é considerado um sacramento, porém, não de instituição divina, mas de instituição eclesiástica, pelo que é qualificado de sacramento menor. Além disso, os teólogos das Igrejas pertencentes à Comunhão Anglicana diferem na explicação do que isso significa. Pelo contrário, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana, a Igreja Cristã Reformada e a Igreja Metodista não aplicam ao matrimônio o termo sacramento. Como víamos, porém, isso não significa que ignorem o caráter sagrado da instituição matrimonial. Daí que todas elas exortem os fiéis a pedirem a bênção divina sobre sua união. Todas as nossas Igrejas desejam, pois, através dos ritos que realizam — mesmo que uns os chamem de bênção nupcial e outros celebração do matrimônio — colocar a união dos cônjuges sob o sinal do amor e da misericórdia de Deus. Por isso, não obstante as diferenças, há uma série de elementos comuns que possibilitam um reconhecimento mútuo e um diálogo em torno da problemática dos casais interconfessionais.
Dificuldade especial constitui o problema da posição de nossas Igrejas a respeito da dissolução do matrimônio. Como se afirma no já citado documento católico romano-luterano-reformado, todos nós queremos, cada qual a seu modo, ser dóceis a Cristo, que reivindica para o matrimônio uma fidelidade que, antes dEle, era demasiado freqüentemente sacrificada (no. 33). O próprio Cristo chama os esposos para uma fidelidade irrevogável, com uma força tão grande que os discípulos se apavoram, esquecendo que aquilo que é impossível aos homens é possível a Deus (no 34). Essa indissolubilidade mostra-se, antes de mais nada, no amor conjugal, como o resultado da fidelidade de Deus, que exige e permite a dos cônjuges. Antes de ser uma lei, a indissolubilidade é, portanto, uma exigência vital do amor que os esposos se dedicam mutuamente e que devem também a seus filhos (no. 38). A partir dessas considerações, as Igrejas Cristã Reformada, Episcopal, Evangélica de Confissão Luterana e Metodista reconhecem o princípio da indissolubilidade do matrimônio, mas não como algo a ser imposto mediante uma lei. Por isso, empenham-se em anunciar e promover a reconciliação entre os esposos em conflito. Acentuam também a dimensão de misericórdia inerente ao Evangelho e, consequentemente, admitem uma segunda oportunidade para os divorciados quando o primeiro matrimônio aparece irremediavelmente rompido. Pelo contrário, a Igreja Católica Romana, apoiando-se sobretudo na noção de mistério, afirma a absoluta indissolubilidade — sem qualquer possibilidade de segundas núpcias — do matrimônio válido entre cristãos, uma vez consumado. Perante a realidade, porém, de nossa sociedade, com tantos naufrágios na vida dos casais, tem-se esforçado, nos últimos tempos, por agilizar a ação dos tribunais eclesiásticos na investigação de possíveis falhas, sobretudo na emissão do consentimento, que poderiam ser causa de nulidade de um casamento.
Uma ação pastoral que pretenda ser verdadeiramente ecumênica não pode deixar de chamar a atenção dos futuros parceiros de um matrimônio interconfessional sobre as convergências e as divergências expostas. Ainda mais, deve tentar levar à compreensão e ao respeito pela posição de cada um. Em todo o caso, deve ser despertado, nos futuros cônjuges, o desejo comum de um encontro autêntico com Cristo, precisamente através de sua união conjugal, na convicção de que todas as nossas Igrejas estão empenhadas no mesmo esforço de fidelidade à Palavra do Senhor.
3. Dificuldades práticas
No espírito de sinceridade que deve nortear todo diálogo ecumênico, não podemos silenciar as dificuldades que se apresentam normalmente, na vida de um casal interconfessional, já desde o momento em que começa a preparação para a celebração do matrimônio. Distingamos, porém, três casos diferentes:
a) Casamentos nos quais nenhum dos noivos é cristão praticante convicto, mas que pedem uma cerimônia religiosa mais por motivos de conveniência social. Nesses casos, os ministros das Igrejas deveriam esforçar-se para reavivar a brasa que parece estar para se extinguir. Como disse o ex-Arcebispo de Cantuária, Michael Ramsey: enquanto houver algum sentimento religioso rudimentar — mesmo que seja apenas uma fé rudimentar em Deus — dêem-lhes as boas-vindas, pois existe alguma coisa sobre a qual é possível construir. Não exercemos o nosso ministério em favor do povo porque ele seja forte, mas para tentar ajudá-lo a que seja forte (Canadian Churchman, nov. 1971, p. 17).
b) Casamentos nos quais um dos noivos é membro fervoroso de sua Igreja e o outro é indiferente ou não-praticante. Achamos que, nesses casos, devemos dar todo o apoio, se o não-praticante se esforça para conhecer, enquanto possível, a fé do seu parceiro e se, ficando convencido, aderir à Igreja correspondente. Contudo, isso não deveria ser feito simplesmente para agradar o parceiro, mas como um ato que deveria basear-se em escolha pessoal e esclarecida da fé.
c) Casamentos nos quais ambos os noivos são verdadeiramente conscientes de sua fé e procuram vivê-la, com todo o empenho, como uma resposta de fidelidade ao apelo de Cristo. A primeira atitude a ser tomada, nesses casos, é a de procurar um conhecimento mútuo, em atitude o mais aberta possível, da fé e da prática da Igreja à qual pertence o parceiro. Ambos ganharão assim em compreensão e simpatia, ambos se acostumarão a dialogar, com vistas ao futuro, sobre essas questões. Mesmo assim, porém, haverá pontos em que não lhes será possível compartilhar a mesma crença. E acabarão por constatar que a comunhão de vida, que constitui o ser mais íntimo de todo matrimônio, encontra aí um limite dolorosamente intransponível.
Além disso, é também necessário que esses casais tomem consciência das dificuldades que poderão surgir em torno dos futuros filhos. Quem procura viver cada dia a sua fé, percebe a grandeza do dom que recebeu e procura naturalmente transmiti-lo a seus filhos. Pais, no sentido autêntico da palavra, são não só os que transmitem inicialmente a vida, mas os que cuidam dela, a alimentam e a fazem crescer até a sua plenitude. Por isso, consciente ou inconscientemente, os pais estão sempre transmitindo valores, participando da formação do caráter e da consciência dos filhos.
Algo semelhante acontece no campo religioso, mais especificamente em relação à vida cristã. Pelo batismo somos sepultados com Cristo, para vivermos uma vida nova (cf. Rm 6,4). Mas essa vida nasce frágil e ameaçada. Os pais que apresentam seus filhos para serem batizados desejam, certamente, que essa vida cresça na fé. Ora, as divisões existentes entre as diversas confissões cristãs repercutem dramaticamente na educação dos filhos na fé. Ambos os pais têm responsabilidade na formação cristã da criança e, como nos casais interconfessionais a compreensão desta fé não é exatamente igual, é possível que surjam problemas e dificuldades que afetam de modo angustioso a consciência dos esposos. Os ministros das Igrejas envolvidas poderão ajudar a resolver esses conflitos, mas sempre serão os próprios esposos que deverão dizer a última palavra.
Não podemos considerar uma solução o adiamento da educação religiosa até a adolescência, sob o pretexto de que o próprio filho haverá de decidir, no momento oportuno, a fé que deve abraçar. Na realidade, o problema se apresenta já antes, pois todas as Igrejas que atualmente são membros do CONIC praticam o batismo de crianças. Além disso, valores não suficientemente transmitidos durante a infância dificilmente serão assimilados depois. Por outro lado, a criança não deve crescer sem render explicitamente culto a Deus. E esse culto, gostemos ou não, tem sempre uma certa conotação confessional. Quando as crianças começam a perguntar, é necessário dar uma resposta. E elas também vão perguntar sobre questões religiosas. Talvez sem conseguir entender a profundidade do problema, elas constatam, nos lares interconfessionais, que o modo de expressar o reconhecimento devi do a Deus não é igual do pai para a mãe. E, ainda por cima, as próprias Igrejas insistem na necessidade da preparação de crianças e adolescentes para uma inserção mais profunda na comunidade eclesial, através de atos como primeira Eucaristia, profissão de fé, confirmação ou crisma.
O problema é tanto mais sério quanto a vida da criança é indivisível. Os cônjuges, num espírito de tolerância e compreensão, poderão conviver harmoniosamente, mesmo que existam entre eles certas diferenças no campo religioso, contanto que haja uma vontade autêntica de diálogo e de respeito mútuo. Mas o filho não pode ser dividido em duas partes, uma pertencente ao pai e a outra à mãe. Uma certa opção se impõe como necessária. E é aí que costumam surgir os maiores problemas.
A tomada de consciência das dificuldades apontadas não significa que não possam ser superadas. O que não se pode admitir é que os matrimônios inter-confessionais sejam contraídos na inconsciência dos possíveis problemas futuros. Por isso, a questão da educação dos filhos é algo que, pelo próprio bem do casal, deveria ser resolvido antes de contrair matrimônio. Os noivos precisam refletir sobre essa realidade. A decisão a ser tomada não pode ser unilateral, é uma decisão em que a consciência dos dois cônjuges deve ser respeitada. Padres e pastores poderão ajudar nessa tomada de consciência e nessa procura de uma solução, mas não podem querer substituir os próprios envolvidos. Aqueles a quem as igrejas confiaram o ministério pastoral precisam, por isso, aprofundar seus conhecimentos acerca da doutrina das diversas tradições cristãs sobre o matrimônio e devem tomar uma atitude •de respeito e compreensão diante de uma escolha que pode trazer consequências dolorosas. Às vezes somente lhes será possível sofrer com os que sofrem. Mesmo assim, o seu apoio ao casal pode ser de grande valor. Os clérigos não deveriam colaborar com celebração de casamento interconfessional na inconsciência, porque isso seria, na maior parte dos casos, contribuir para um fracasso posterior e para muito sofrimento que poderia ser poupado. Voltaremos ao problema da educação dos filhos ao falarmos das dificuldades derivadas da legislação eclesiástica.
4. Preparando o casamento
Todas as nossas Igrejas encaram o matrimônio com seriedade e, por isso, desejam que seja preparado convenientemente. Daí que peçam aos noivos se apresentarem, com uma certa antecedência, aos respectivos ministros de sua confissão. Além das possíveis formalidades que deverão ser cumpridas, para determinar a data, o lugar e o modo da cerimônia religiosa, as Igrejas costumam dar uma preparação doutrinária para o matrimônio, quer através de conversas pastorais, quer mediante uma série de palestras, conhecidas popularmente como curso de noivos. Varia bastante, de Igreja para Igreja e de região para região, o modo e o conteúdo dessa preparação.
No caso de casamentos interconfessionais, o ideal seria uma preparação conjunta do casal e não uma divisão forçada. Para que isso aconteça e para mostrar claramente a lealdade que deve presidir o relacionamento entre membros de diversas confissões religiosas, padres e pastores deveriam comunicar-se mutuamente sobre casamentos interconfessionais que estão preparando. Igualmente, deveriam pedir aos noivos que se apresentassem também conjuntamente ao ministro próprio da outra confissão. Os mesmos noivos poderiam então participar, sempre em comum, de instrução dada nas duas Igrejas. Não é, contudo, esse o ideal que propugnamos.
Seria preferível que os ministros de ambas as confissões organizassem conjuntamente essa instrução. Em cidades onde os casamentos interconfessionais são mais frequentes, esse ideal não parece impossível. Desse modo, os noivos poderão ver concretamente o que significa um diálogo sincero entre duas confissões religiosas: terão a oportunidade de conhecer mais profundamente a religião do parceiro com quem vão começar uma comunhão íntima de toda a vida; e poderão ser ajudados mais facilmente a tomar decisões concretas nos campos mais conflitivos. Será muito esperar que isso aconteça? Na verdade, já existem algumas experiências, embora bastante limitadas. Deveríamos tentar ampliá-las e generalizá-las. Diálogo ecumênico não significa apenas o intercâmbio de pontos de vista entre teólogos, mas também toda a ação conjunta que indique uma maior aproximação entre todos os que se chamam de irmãos em Cristo.
5. Problemas derivados das normas eclesiásticas
Todas as Igrejas possuem regulamentações e normas; uma mais outra menos. Sem dúvida alguma, por causa da tradição romana e pelo seu caráter de organização mundial, a Igreja Católica Romana é, entre as Igrejas-membros do CONIC, a que aparece como mais sensível à dimensão jurídica. Além disso, no caso específico do matrimônio, a consideração de sacramento, no sentido estrito da palavra, que ela lhe atribui, provoca uma intervenção da autoridade eclesiástica católica, quando um dos noivos se proclama católico romano, bem mais contínua e completa do que a das Igrejas de tradição evangélica, em relação aos seus membros. Por isso não é raro que, em casamentos interconfessionais em que um dos noivos é católico, surjam dificuldades sérias, derivadas da legislação eclesiástica. Daí deriva a necessidade de uma atenção especial a essa legislação e de uma tentativa de compreensão dela em espírito ecumênico. Faremos isso, não para privilegiar uma Igreja-membro do CONIC sobre as outras, mas porque a prática pastoral nos ensina que ai pode haver um foco de conflitos em caso de uniões interconfessionais.
A legislação canônica católico-romana estabelece, em princípio, a proibição de casamento entre um católico e um cristão de outra denominação. Mas essa proibição, que diz respeito somente à liceidade e não à validade do matrimônio, é facilmente removível mediante licença do Bispo do lugar onde reside a parte católica. Ela é pedida, normalmente, através do respectivo pároco. Para obtê-la, porém, são exigidas algumas condições prévias. Em primeiro lugar, o católico romano deve manifestar sua fé e a disposição de conservá-la e testemunhá-la na vida. Algo semelhante acontece também em algumas Igrejas da Reforma. Assim, o Colégio Episcopal da Igreja Metodista determinou que quando a cerimônia for com a participação de um pastor metodista e de um padre católico romano, somente será realizada se ambos os nubentes manifestarem publicamente o seu compromisso de fé com a sua respectiva confissão religiosa. A diferença entre essas determinações está em que a legislação católico--romana exige esse compromisso apenas da parte católica. Para o não-católico há unicamente a previsão de uma informação do compromisso assumido por seu parceiro.
Talvez seria desejável unificar essa praxe. As Igrejas-membros do CONIC poderiam determinar, ou pelo menos expressar claramente o desejo de que, sempre que se celebre um casamento interconfessional, ambos os noivos manifestem clara e previamente sua fé cristã, a consciência de pertencerem a uma comunidade concreta e os compromissos que daí derivam, para a vivência e o testemunho dessa fé cristã perante os outros a começar da própria família.
Mas, além dessa declaração de fé que falamos, a legislação católico-romana exige um outro compromisso que levanta sérias objeções da parte das outras Igrejas cristãs e que, se mal entendido, poderá gerar dificuldades e atritos sérios na vida do casal.
Todo cristão consciente de sua fé tende, como dizíamos, a transmiti-Ia a seus filhos. Ora, essa fé não é vivida em abstrato, mas no seio de uma comunidade concreta, de uma Igreja. Pois bem, a Igreja Católica Romana acha que, precisamente no momento da preparação do casamento, deve lembrar essa obrigação a seus membros. Até aí poderia haver uma concordância com as outras Igrejas, mas a legislação canônica exige também que a parte católica prometa que fará o possível para batizar e educar os filhos na sua fé. Também neste caso, como no da promessa de que falávamos anteriormente em relação à fé do próprio nubente, o pároco católico romano não deve exigir nenhuma declaração do não católico. Apenas deverá informá-lo da promessa do seu parceiro.
Advirta-se, porém, que sublinhamos a palavra possível, porque se encontra explicitamente nas normas em vigor e porque pode ajudar a solucionar conflitos futuros. Possível não é algo que possa ser entendido num sentido absoluto, até as suas últimas consequências, mas num sentido moral. O católico, ao tentar cumprir suas promessas, nunca poderá prescindir de levar em consideração a consciência daquele com quem se uniu para toda a vida perante o Senhor. Por isso, se as condições sociais, familiares ou ambientais são tais que induzem o cônjuge católico-romano a pensar que não poderia levar adiante o seu propósito de educação católica de algum ou de alguns de seus filhos, sem violentar a consciência de seu parceiro e sem correr risco grave seu casamento, não deve por isso sentir-se culpado de ter quebrado uma promessa. Na medida em que um dever se torna moralmente impossível, deixa de ser dever.
As Igrejas da Reforma, em geral, não têm exigências legais específicas, em relação à prole nascida de um matrimônio interconfessional. Assim, por exemplo, a Igreja Metodista se conforma com uma declaração genérica: Ambos os nubentes deverão demonstrar consciência plena sobre as obrigações mútuas na vivência religiosa do casal e de seus filhos, decorrentes do casamento.
Como dizíamos, a legislação católico-romana levanta sérias objeções da parte das outras Igrejas cristãs. No documento católico-luterano-reformado, citado no capítulo dois, aparece um desejo de que essa legislação seja modificada, no sentido da norma da Igreja Metodista que acabamos de transcrever. Enquanto isso não acontecer, é possível, como fizemos, tentar uma interpretação da lei em vigor, guiada por um espírito ecumênico e que vá, com compreensão e caridade, ao encontro dos problemas concretos do casal.
Para além da legislação, porém, são possíveis outras considerações em relação aos filhos. Seja qual for a Igreja em que de fato acabem por ser educados, deveriam ser ajudados a compreender e respeitar o ensinamento e a prática da outra Igreja. Isso vai depender muito da atitude dos pais, da partilha de suas diversas experiências religiosas e da seriedade com que vivam sua fé. Os filhos aprenderão assim que existem problemas, mas saberão também que esses problemas podem ser enfrentados, diminuídos e até completamente solucionados. Desse modo, os lares interconfessionais poderão ser uma autêntica escola de ecumenismo.
6. A cerimônia religiosa nupcial
Cerimônias religiosas para celebrar ou abençoar casamentos constituem parte da vida cotidiana de nossas comunidades. Como dizíamos, todas as nossas Igrejas desejam colocar o matrimônio de seus membros sob o sinal da misericórdia e do amor de Cristo. Contudo, as diversas concepções teológicas acabam por criar, também aqui, alguns problemas práticos, embora não insuperáveis.
De acordo com a doutrina católico-romana, o matrimônio é considerado sacramento, no sentido mais pleno dessa palavra. Por isso é enquadrado dentro da regulamentação dessa Igreja. Daí que, para os católicos romanos, quer dizer, para aqueles que aderiram pelo batismo ou por uma profissão de fé à Igreja Católica Romana e que não a abandonaram formalmente, a celebração religiosa católica do matrimônio não seja só obrigatória, mas também a única considerada válida pela mesma Igreja, como regra geral. Em princípio, pois, a legislação canônica faz depender a validade do casamento de um católico-romano da celebração no que se chama forma canônica, ou seja, da declaração de consentimento matrimonial perante uma pessoa credenciada pela Igreja (bispo, padre, diácono, e até, em alguns lugares, o leigo) e duas testemunhas. De acordo com isso, nas circunstâncias comuns, o matrimônio civil para os católicos romanos é apenas uma cerimônia para dar efeitos, na ordem civil, a uma união realmente celebrada perante a Igreja.
A Igreja Episcopal, por sua vez, deseja que os nubentes coloquem o seu matrimônio sob a graça do Evangelho e tornem público o seu desejo de viver como cristãos, em fidelidade e amor em Cristo. Mas, conforme a doutrina anglicana, todos os cidadãos têm liberdade de realizarem seus verdadeiros casamentos, diante de Deus, perante um ministro de qualquer Igreja.
A Igreja Cristã Reformada, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana e a Igreja Metodista entendem que o matrimônio, como instituição natural, faz referência, em primeiro lugar, à ordem civil. Por isso, reconhecem como autêntico matrimônio o consentimento manifestado perante o juiz ou oficial do registro civil, na forma exigida pela lei de cada país. Ao considerar, porém, que o matrimônio é também uma realidade sagrada — embora não sacramento, no sentido estrito da palavra — costumam fazer também uma celebração religiosa, oficialmente conhecida como bênção matrimonial. Durante esse rito, porém, há uma verdadeira expressão ou renovação do consentimento matrimonial.
Apesar das evidentes diferenças, as celebrações em todas as nossas Igrejas possuem elementos comuns. Em todas elas, os nubentes colocam o seu matrimônio sob o sinal da Palavra de Deus e proclamam publicamente que querem viver uma vida conjugal como membros de uma comunidade cristã e como expressão da fidelidade do amor em Cristo. Por isso, pode haver — e, em muitos casos, há — aceitação por uma Igreja de cerimônias celebradas conforme o rito de outra. Por isso também, as Igrejas rejeitam uma duplicidade de cerimônias religiosas para o mesmo matrimônio, mesmo em se tratando de casais interconfessionais. Como agir, então, na prática?
Uma vez mais, temos que nos referir à legislação católico-romana, por ser a mais rígida a esse respeito. Já dizíamos que, em princípio, ela exige a celebração do matrimônio na forma canônica, sempre que pelo menos um dos parceiros for católico romano. Contudo, sempre que houver dificuldades sérias para cumprir essa prescrição, pode-se obter dispensa, a fim de realizar o casamento num rito diferente, inclusive, se for o caso, apenas na forma civil. Autoridade competente para conceder essa dispensa é o Bispo local ou seu representante (p. ex., o Vigário Geral). Na prática, porém, tudo se encaminha através do pároco da parte católica. De modo especial, são levados em conta casos em que uma celebração no templo católico-romano poderia causar constrangimento sério ao não-católico ou à sua família. Uma vez dada a dispensa, a cerimônia religiosa em templo de outra Igreja é reconhecida pela Igreja Católica Romana como matrimônio autêntico, plenamente válido; ainda mais, com a mesma dignidade sacramental que os casamentos celebrados na chamada forma canônica. Por isso, essa cerimônia religiosa deve ser uma expressão de fé cristã e do desejo de colocar a união conjugal sob a Palavra de Deus.
De acordo com a doutrina que expusemos, as Igrejas da Reforma não têm, em geral, regulamentações sobre reconhecimento ou celebração de casamentos interconfessionais em templos de outras confissões, sem intervenção de um pastor próprio. Mas, pelo respeito mútuo que se devem e como manifestação da comunhão de vida que querem realizar, os noivos deveriam, em cada caso concreto, ponderar, com a ajuda dos respectivos pastores, a situação e as diversas possibilidades de celebração de um rito religioso, a fim de chegar a um acordo que respeita a consciência de ambas as partes.
7. Por que não um casamento ecumênico?
Alguém pode perguntar: Não seria ideal, no caso do casamento interconfessional, celebrar dois ritos religiosos, a fim de satisfazer ambas as partes? Como já dissemos anteriormente, não deve haver, em nenhum caso, uma duplicação de cerimônias religiosas. É de uma vez por todas que o matrimônio é colocado sob o sinal da Palavra de Deus e da fidelidade de Cristo à sua Igreja. Não tem sentido duplicar um ato que, pela sua própria natureza, tem a dinâmica do definitivo.
Mas não é impossível — ainda mais, no caso dos matrimônios interconfessionais, parece aconselhável — celebrar uma cerimônia religiosa com a presença e atuação de representantes oficiais das duas confissões dos noivos. Suponhamos, por exemplo, que um católico romano deseja contrair matrimônio com uma cristã evangélica de confissão luterana e que, após os entendimentos necessários, tenham decidido celebrar seu casamento no templo católico. Poderiam convidar o pastor evangélico a participar da cerimônia. Ambos — o padre e o pastor — poderiam anunciar a Palavra de Deus, pregar, fazer algumas preces e invocar a bênção divina sobre o casal. Mas, para evitar qualquer aparência de duplicação, a expressão do consentimento matrimonial entre os esposos deveria ser solicitada e recebida por um só; no caso concreto que estamos focalizando, pelo padre. É claro, porém, que, se a cerimônia se celebrasse no templo evangélico, com a dispensa da forma para o católico, corresponderia ao pastor solicitar e receber a manifestação do consentimento matrimonial. Em ambos os casos, é necessário que fique bem claro que a presença de um ministro de uma confissão no templo de uma outra é uma expressão de fé de suas respectivas Igrejas e um gesto de apoio aos nubentes, para que levem uma vida cristã. A reciprocidade deve ser completa, evitando-se até a aparência de que uma confissão quer prevalecer sobre a outra.
Um certo problema pode apresentar o fato de que, em alguns casos, os noivos pedem para que o matrimônio seja celebrado durante a celebração eucarística (missa), no templo católico-romano. Isso parece desaconselhável para os casamentos interconfessionais porque, na disciplina atual da Igreja Católica Romana, não é permitida, em princípio, a participação na eucaristia de cristãos de outras confissões. Conseqüentemente, para evitar situações penosas, que podem ser consideradas constrangedoras para a família da parte não católica, prefere-se o rito do casamento fora da Missa, onde não existem limitações para a oração em comum e a expressão da fé no único Cristo.
8. Testemunhar a Fé na vida
Não bastam todas as determinações e conselhos sobre a preparação e celebração dos casamentos inter-confessionais. É necessário que a comunhão de vida, iniciada com a colocação da união matrimonial sob o sinal da Palavra e do Amor de Deus, se manifeste, cada vez mais profundamente, no dia-a-dia, numa dimensão de fé. O sucesso de um matrimônio depende, em grande parte, da sinceridade e honestidade dos cônjuges. Essa sinceridade e honestidade valem também para a vivência religiosa dos esposos. Os dois são responsáveis não só pelo testemunho pessoal que devem dar, mas também pela ajuda e encorajamento que devem prestar a seu parceiro, a fim de que ele pratique a sua fé.
O exercício da paternidade responsável é um dever de todo cristão que vive a vida matrimonial. Mas as decisões a serem tomadas a esse respeito podem representar um problema real. É muito importante ficar bem informado antes de decidir, ou seja, é preciso tomar consciência das necessidades do casal, dos aspectos morais envolvidos na questão e das diversas alternativas possíveis. Pastores ou padres, médicos, conselheiros de diversos tipos poderão dar uma ajuda valiosa, mas a responsabilidade da decisão final, a ser tomada em consciência, é sempre dos próprios cônjuges, procurando honestamente realizar aquilo que acreditam ser moralmente certo.
Para a realização plena de um matrimônio inter-confessional, pode ajudar muito a oração em comum, Seria bom que casais que já têm essa experiência ajudassem aqueles que começam essa caminhada, nem sempre fácil, de compartilhar a vida. Também aqui, padres e pastores poderão dar uma ajuda, mas não devem pretender interferir nas decisões pessoais dos primeiros interessados, que são os esposos. A participação, embora limitada, em atos de culto e em atividades das duas comunidades pode ajudar os esposos a crescer na unidade de um matrimônio que quis nascer sob o sinal do Amor de Deus.
As nossas Igrejas são conscientes das suas responsabilidades neste campo. Por isso fazem um apelo a todos os que trabalham na pastoral familiar, para que procurem compreender a problemática especial dos lares interconfessionais e para que ajudem os esposos a alimentar, cada dia, a unidade de vida conjugal, na certeza de que a graça de Deus não lhes faltará.
Este documento tenta dar algumas orientações a este respeito. Mas uma pastoral autenticamente ecumênica só será possível mediante contatos e entrosamentos em nível local ou de base. A atitude dos ministros das Igrejas em face dos lares interconfessionais poderia e deveria ser um tema a ser refletido nas conversações entre padres e pastores. Em lugar de colocar ainda maiores dificuldades no caminho de cristãos que procuram ser sinceros na vida, os representantes das Igrejas deveriam ajudá-los a encontrar uma expressão de fé comum, no respeito mútuo como testemunho da caridade que nos une em Cristo.