Conceitos, princípios e propostas sobre Agroecologia
Prática agroecológica no Centro de Atendimento ao Pequeno Agricultor (CAPA): Conceitos, princípios e propostas
Síntese das discussões realizadas na reunião do Consórcio CAPA – Set/2002
Antecedentes
Desde 1978, ano de sua criação, o CAPA vem atuando no sentido de fortalecer a agricultura familiar, para que este setor, junto com outros segmentos sociais, possa avançar na construção de dias melhores para todos.
As conseqüências negativas da base tecnológica promovida pela revolução verde, causadora de exclusão social e degradação dos recursos naturais, fizeram com que o CAPA, desde o início, optasse por promover formas de produção geradoras de bem-estar para a população do campo e da cidade. Em 1983, junto com outras organizações de distintas regiões do país, o CAPA ajudou na criação da Rede PTA - Projeto “Tecnologias Alternativas”, denominação usada durante muitos anos pelas organizações/grupos críticos ao modelo tecnológico vigente.
Ao longo destes anos, os conceitos, as propostas e a prática do CAPA em torno desta questão vêm evoluindo, valendo-se das contribuições de agricultores/as, profissionais que passaram pelas equipes e outras organizações parceiras. Os princípios que orientam a prática atual também receberam influência de idéias/conceitos/elaborações gerados fora do círculo mais imediato de relações do CAPA. O termo agroecologia, por exemplo, foi incorporado no início da década de 90, a partir de reflexões conjuntas com outras organizações que compartilham das mesmas orientações de trabalho.
Todavia, este processo de desenvolvimento conceitual e da prática de atuação foi vivido de forma distinta por cada um dos núcleos, resultando em diferentes percepções sobre qual o melhor caminho para cumprir a missão que o CAPA se propõe. Isso pode ser explicado por vários fatores:
(i) Na antiga forma de organização institucional, cada núcleo era um CAPA, não havendo um processo sistemático de planejamento conjunto e de troca de experiências.
(ii) Os núcleos não têm a mesma idade. Enquanto os núcleos do RS são anteriores e/ou do período de resistência das “tecnologias alternativas”, os núcleos do PR foram organizados na era de efervescência da agricultura orgânica e de maior visibilidade da agroecologia.
(iii) O contexto de atuação de cada núcleo é diferenciado, influenciando sobremaneira a forma como a equipe trabalha e pensa.
(iv) As equipes passam por renovações e nem sempre é possível repassar de forma adequada os acúmulos institucionais para os/as técnicos/as que chegam, muitos/as deles/as no início da sua carreira profissional.
Estas questões foram apontadas pelos membros da equipe durante o diagnóstico realizado em 1999, cujo objetivo era levantar recomendações para a implementação de um processo de reformulação institucional que congregasse os núcleos em um único CAPA. As conclusões finais apontaram para a necessidade de promover espaços coletivos de discussão para chegar a uma síntese que contemplasse a diversidade de idéias que existe no interior do CAPA e que apontasse para uma identidade institucional.
É com este objetivo que “Agroecologia” foi eleito como tema de aprofundamento para a terceira reunião do Consórcio. Os pontos de consenso, temas para aprofundamento e propostas de continuidade estão descritos a seguir.
BLOCO I – CONCEITOS
1. Mais importante do que “como chamamos o que fazemos”, é ter princípios claros que norteiem nossa prática, ou seja, “saber para onde vamos e fazer o que pregamos”. O rótulo por si só não garante a qualidade do trabalho e, no mundo real, por exemplo, um agricultor que se diz “produtor orgânico” pode ser mais “ecológico” do que um que se chama “agroecológico”.
2. No entanto, as palavras têm sentido e deve-se usar aquelas que melhor expressam aquilo que fazemos e que buscamos. Isso ajuda a criar consciência e oferece condições objetivas para estabelecer alianças e parcerias. Os princípios, por sua vez, são como o roteiro de indicações que ajuda quem viaja por uma estrada desconhecida.
3. Os conceitos de referência para o CAPA são:
3.1. Ecologia: Ciência que estuda as relações dos seres vivos entre si ou e com o meio ambiente no qual vivem.
3.2 Sustentável: capacidade se sustentar, conservar, manter ao longo do tempo.
3.3 Agroecologia: A ciência de aplicar os conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis.
3.4 Agricultura orgânica: Sistema de produção agrícola que não usa nenhum insumo químico.
3.5 Ecossistema: Um sistema funcional de relações complementares entre os organismos vivos e o ambiente dentro de uma determinada área física.
3.6 Agroecossistemas: Um sistema agrícola entendido como um ecossistema.
4. Com base nos conceitos de referência, o adjetivo “AGROECOLÓGIO” ou “AGRICULTURA ECOLÓGICA”, expressa com mais exatidão a opção de ter os princípios ecológicos como norteadores da ação. Implicitamente está embutida a idéia de que o objetivo final é alcançar um sistema de produção 100% ecológico, o que traz mais responsabilidades para quem adota este termo. A preocupação ecológica induz inevitavelmente a um tratamento holístico do problema, exigindo inclusive a consideração de fatores não-biológicos que interferem na sustentabilidade da agricultura.
5. O termo “ORGÂNICO” caracteriza o processo de produção/produto sem uso de veneno ou adubo químico. Portanto, identifica de forma mais precisa a produção oriunda de propriedades que estão em estágios iniciais do processo de conversão agroecológica.
6. Pela menor responsabilidade que estes termos carregam, os termos AGRICULTURA ORGÂNICA, PRODUTOR ORGÂNICO, são a melhor denominação para os casos em que não há uma preocupação/intenção/compromisso explícito com os princípios ecológicos na sua globalidade.
7. Desta forma, considerando a trajetória institucional e os acúmulos já alcançados, entende-se que o CAPA trabalha para a construção de sistemas de produção agroecológicos, no qual o sistema de produção orgânica pode estar presente em parte do processo, mas não é de forma alguma o ponto de chegada.
8. Partindo da definição da palavra e interpretando-a a partir de uma visão holística, o emprego de “SUSTENTÀVEL” por si só já deveria indicar que as dimensões econômica, cultural, ambiental e social têm que ser consideradas. Mas vale ressaltar que este é um termo amplamente utilizado, podendo carregar diferentes significados dependendo de quem o emprega.
9. Todavia, é uma palavra que pode ser utilizada para qualificar o modelo de desenvolvimento que o CAPA busca. Pode ser útil em particular na “comunicação para fora”.
BLOCO II – PRINCÍPIOS:
10. O modelo de desenvolvimento almejado contempla a possibilidade da existência de múltiplos atores, mas para o CAPA a agricultura familiar tem papel protagonista e o espaço rural um lugar de destaque.
11. A Agricultura sustentável não é uma responsabilidade apenas dos agricultores familiares, mas de todos os/as cidadãos/ãs.
12. A ação do CAPA é orientada por uma visão holística, ou seja, integradora das diversas dimensões que promovem o bem-estar das pessoas: econômica, cultural, social, política, ambiental e espiritual.
13. A visão holística requer uma intervenção multidisciplinar e, portanto, um programa de trabalho que incorpore não apenas o aspecto da produção agrícola, mas também temas como a organização, agroindústria, gestão, comercialização, saúde, alimentação e formação. Isto reflete diretamente na composição das equipes do CAPA.
14. A visão holística requer que o trabalho seja desenvolvido com toda a família, envolvendo homens, mulheres, idosos e jovens.
15. Valores humanísticos como a justiça, paz, amor, solidariedade e equidade fazem parte da abordagem do CAPA.
16. A estratégia de intervenção do CAPA tem como elementos centrais:
(i) buscar a autonomia dos agricultores familiares;
(ii) o fortalecimento da organização dos agricultores;
(iii) trabalho com grupos organizados para irradiar as ações;
(iv) a construção de alianças e parcerias para potencializar as ações;
(v) considerar as diferentes perspectivas: de gênero e de geração;
(vi) influenciar as políticas públicas rumo à agricultura sustentável, como componente do desenvolvimento sustentável;
(vii) proporcionar espaços de formação e buscar elevar o nível educacional (escolarização);
(viii) promover o protagonismo dos agricultores familiares.
17. O CAPA trabalha na perspectiva de facilitar processos coletivos de construção de propostas, sujeitos a erros e acertos no percurso. Portanto, prioriza metodologias participativas que possibilitem que os agricultores/as sejam atores reais no processo.
18. O CAPA aposta na construção conjunta de saberes, tendo o conhecimento dos/as agricultores/as e as informações geradas pela pesquisa acadêmica como fontes de inspiração para a formulação de propostas.
19. A diversidade é um elemento central para a ecologização dos sistemas agrícolas e para atingir a sustentabilidade. Sem diversidade fica difícil construir independência e autonomia.
20. A aptidão natural do ambiente local e os sistemas de produção tradicionais ainda existentes são referência central na elaboração de planos de conversão agroecológica.
21. Na avaliação de resultados, a qualidade de produtos e processos é tão importante quanto a quantidade. Isso significa que a melhoria da qualidade de vida é um resultado tão importante quanto o retorno financeiro.
22. A conversão agroecológica deve resultar na melhoria de condição de renda das famílias. Portanto, organização do mercado e comercialização são temas relevantes para a ação do CAPA.
23. Aplicando o princípio da sustentabilidade, o mercado local deve ter prioridade, pois permite menor custo energético e financeiro no transporte dos produtos, procedimentos de certificação mais simplificados, e menos intermediação entre o produtor e consumidor.
24. Todavia, os mercados mais distantes, incluindo o internacional, também têm seu lugar. A exportação de produtos pode se justificar especialmente no caso de cultivos de exportação e/ou para fortalecer laços de solidariedade com organizações de consumidores.
25. Seja qual for a modalidade de mercado, a atuação do CAPA deve ir no sentido de que as organizações dos agricultores se capacitem para se apropriarem 100% da gestão da comercialização.
26. Há múltiplos mercados, cada um com a dominância de um determinado segmento social e portanto com valores distintos que orientam a aquisição de produtos. Cada mercado deste requer um sistema particular de certificação.
27. A certificação é um selo que permite a legitimação social do produto ecológico e/ou orgânico. É também um mecanismo de identificação do produto que possibilita ao consumidor exercitar seu direito de escolha.
28. A certificação é obtida a partir da aplicação de parâmetros definidos em regulamentações específicas. Os princípios que orientam estas regulamentações e a rigidez com que as mesmas são aplicadas pelo certificador determinam a confiabilidade do selo.
29. No mercado de exportação, por exemplo, há pouca autonomia para o agricultor, sendo necessário se submeter às normas de certificação definidas no país importador e às certificadoras que têm reconhecimento nestes mercados.
30. Nos casos em que não houver melhores opções de mercado, o CAPA deve usar da sua credibilidade para conseguir uma flexibilização de normas e redução de custos - que não comprometam a qualidade final da certificação -, para assim facilitar o acesso dos agricultores familiares a esses mercados.
31. No Brasil, a legislação ainda apresenta muitos vazios. No entanto, o CAPA deve somar esforços junto às organizações parceiras da Rede ECOVIDA para construir um sistema de certificação que contemple os valores ambientais e sociais presentes na proposta. Esta é uma forma concreta de diferenciação do selo ECOVIDA das demais certificadoras.
32. O CAPA foi criado pela IECLB, mas trabalha com agricultores familiares de todos os credos e raças, sem distinção político-ideológica. As opções partidárias de membros da equipe são opções individuais e não dizem respeito à Instituição.
33. A propriedade agrícola não é um sistema fechado e sente os efeitos da política econômica, política agrícola e variações do mercado. Portanto, a construção de uma agricultura sustentável depende tanto de soluções tecnológicas como de mudanças nas políticas públicas e na matriz de desenvolvimento.
34. Sendo assim, o CAPA deve trabalhar buscando a ampliação dos espaços de participação democrática da sociedade civil organizada e influenciar a formulação das políticas públicas.
BLOCO III – PROPOSTAS
35. O CAPA avançou bastante na sua caminhada, mas ainda há muitos desafios. Na área metodológica há dúvidas sobre como irradiar as experiências exitosas e promover a compreensão dos agricultores/as para a globalidade da proposta. Em relação à conversão agroecológica, há dúvidas em como conduzir este processo de forma sustentável. Há também muito que ser trabalhado na área da comercialização e certificação.
36. Para avançar na busca de soluções, deve-se sistematizar e intercambiar dentro do CAPA os acúmulos institucionais existentes, descrevendo o que foi feito, como foi feito e resultados alcançados.
37. Deve-se compartilhar responsabilidades, investindo na consolidação de relações já existentes e na construção de novas alianças:
Reforçar parcerias com a pesquisa acadêmica para validação científica das propostas;
Reforçar laços com cidadãos urbanos e garantir comprometimento dos consumidores com a proposta.
Buscar maior apoio dos STRs, Movimentos Sociais e Igreja na divulgação da proposta.
Buscar parcerias com setores governamentais simpáticos à proposta, no âmbito municipal, estadual e federal.
38. A divulgação institucional pode ser melhorada, trabalhando a linguagem de comunicação utilizada com o público externo.
39. No âmbito das políticas públicas, deve-se continuar a luta por:
(i) Linhas de crédito específicas para agroecologia;
(ii) redução de outras linhas de crédito para a agricultura convencional;
(iii) incentivos fiscais para a agroecologia;
(iv) políticas de incentivo para produtos agroecológicos no mercado institucional.
(v) retirada gradual dos subsídios no programa de troca-troca de sementes híbridas e substituir pelas sementes crioulas;
(vi) inclusão da agroecologia nos programas de ensino de todos os níveis.
(vii) Inclusão da fitoterapia nos programas de saúde pública.
(viii) Linha de incentivo para agricultores que optarem a substituição do fumo por culturas alimentares.
40. Para agregar valor aos produtos agrícolas, é preciso continuar investindo no beneficiamento dos produtos e organização de agroindústrias.
41. No próximo encontro, tratar do tema “Metodologia de Trabalho”, tendo como principal insumo para discussão as experiências concretas desenvolvidas em cada núcleo. O tema deve incluir elementos como a forma que se trabalha com os agricultores, mecanismos para definir caminho da conversão agroecológica, relações com mercado, proposta tecnológica.
42. A troca de experiências e as discussões de aprofundamento não devem ficar restritas às reuniões do Consórcio, mas devem acontecer nos núcleos e através de outros mecanismos.
43. Adotar uma prática sistemática de circular literatura de temas de interesse, preferencialmente antes das reuniões do consórcio.
44. Verificar periodicamente se os princípios e conceitos acordados estão sendo implementados na prática. Isto requer o desenvolvimento de indicadores para monitoramento.
45. Aprofundar discussão sobre estratégia de intervenção: relações com outros parceiros.
46. Aprofundar discussão sobre certificação.
47. Implementar mecanismos diversos de intercâmbio (criar grupos de interesse temáticos, Internet, visitas).
48. Sistematizar e socializar com os novos técnicos informações sobre definições anteriores (história do CAPA).
49. Garantir participação dos agricultores nos processos de tomada de decisão do CAPA.
50. O avanço institucional depende da postura individual de cada um. Abertura é necessária para compartilhar e avançar.
51. Evitar comparações e buscar o “compartilhar”, quebrar o gelo, olhando com o “olhar do outro”.
52. Cada técnico/a deve sair com compromisso de fortalecer/promover intercâmbio.
53. No intercâmbio entre os núcleos, incluir a participação de agricultores.
54. Buscar maior participação das mulheres. Reconhecer o que já foi feito.
55. Reforçar conceito “bem-estar”.
Fonte: FLD