Nos primeiros dias de dezembro de 1874, deu-se encontro memorável na estação férrea de São Leopoldo, RS. Do trem, desembarcou um homem com barba escura e temo cinza, acompanhado de sua esposa. O colega que o recebeu estava bem escanhoado e vestia terno preto. Os exteriores também representavam dois mundos que desempenhavam o mesmo ministério. Um conhecia o mundo, buscava saber, vinha cheio de iniciativas, frequentara a academia; o outro era duro, rijo, comprometido com doutrina ortodoxa, missionário preparado para sacrifícios pessoais. - Dois tipos distintos. Em suas diferenças marcariam a conformação de parte do mundo evangélico-luterano de São Leopoldo. No encontro em São Leopoldo, sua relação era de desconfiança. Desconfiança caracterizava também na colônia alemã, as relações entre os descendentes de imigrantes e os alemães recém-chegados da Alemanha.
Fazia pouco tempo que o homem de barba escura se recuperava de doença pulmonar bastante grave. Enquanto se recuperava, deixara de lado carreira acadêmica a promissora e encontrara funções como secretário junto ao inspetor da Sociedade Missionária da Renania, em Barmen, na Alemanha, Dr. Friedrich Fabri. Nas cartas que vinham do Brasil, ficou conhecendo a dura realidade em que viviam os evangélico-luteranos e seus pastores. Ficou também sabendo a respeito do fracasso da tentativa de organização eclesiástica que fizera colega que o antecedera, Dr. Hermann Borchard. Em época, na qual a Prússia em expansão buscava nossos mercados para seus produtos, Hermann Borchard fora enviado ao Brasil pelo Conselho Diretor da Igreja Evangélica da Prússia. Antes de embarcar, conseguiu apoio do já mencionado Dr. Fabri. Em São Leopoldo, Borchard desenvolveu atividade incansável, fundou escola, visitou comunidades, promoveu seminários de atualização de professores e de pastores. Por fim, conseguiu a fundação do Sínodo Teuto Evangélico da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Para dar continuidade ao trabalho, promoveu a vinda de pastores, formados em centros de missão. Para criar base de sustentação cultural ao luteranismo, fundou escola a nível do que hoje seria o 2º.grau, em São Leopoldo, e buscou a filiação de seu Sínodo a Igreja Evangélica da Prússia, no que, porém, não obteve êxito. Quando de seu retorno à Alemanha, em 1870, não encontrou sucessor a altura. O trabalho realizado desmoronou e deixou profundas marcas de decepção entre leigos, professores e pastores. Qualquer tentativa de reprise seria vista com maus olhos.
Além disso, a situação estava complicada de modo geral na Colônia alemã. Completavam-se 50 anos desde a chegada dos primeiros imigrantes alemães. Mas a colônia estava tão desunida que em julho de 1874, fora impossível comemorar o cinquentenário da imigração. Católicos, protestantes e livre-pensadores digladiavam-se a valer, e as guerras verbais não eram pequenas, suas palavras nem sempre podiam ser reproduzidas. O líder talhado para ser o condutor político dos teutos, Carlos von Koseritz, atacara de tal maneira os padres jesuítas e os pastores que conseguiu uni-los nas críticas a sua pessoa. O zelo da restauração católica, promovido pelos padres jesuítas, porém, indispusera-os com os pastores evangélicos. Suma: todos brigavam contra todos.
Para complicar ainda mais a situação, desenvolveu-se no Ferrabraz movimento messiânico, conhecido sob o nome Mucker e que foi sangrentamente aniquilado neste mesmo ano de 1874.
Foi nessa situação que o casal desembarcou em São Leopoldo. Seus nomes? Wilhelm e Marie Rotermund.
2.
Wilhelm Rotermund nascera em 1843. Não foi menino prodígio, nem garoto precoce. Aos 21 anos, resolveu estudar Teologia. Frequentou as faculdades de Teologia de Erlangen e Göttingen. Sonhou em seguir carreira acadêmica. Concluídos os estudos, foi para o Báltico, onde atuou por dois anos como professor particular. Em suas atividades, desgastou-se de tal maneira que, mal completados os 30 anos de idade, seus pulmões estavam acometidos pela tuberculose. Prescreveu-se-lhe repouso absoluto. Melhorando aos poucos, foi convidado a ser secretário de Friedrich Fabri, inspetor da Sociedade Missionária da Renania. A atividade não foi de longa duração, pois Fabri pediu-lhe que fosse atuar no Rio Grande do Sul para organizar a vida eclesial das comunidades evangélicas-luteranas. Casou-se com Marie Brabant, cruzaram o oceano e chegaram naqueles dias de dezembro a São Leopoldo.
Não foi fácil para o pastor alemão conseguir a confiança das comunidades, nas quais deveria atuar. Havia duas comunidades principais e uma série de filiais. Sua inexperiência com o mundo teuto-riograndense do século XIX era tão grande que, após dois anos de atuação, estava envolvido na maior das discussões com seus paroquianos. O grupo adversário arrombou a porta do templo, viu-se envolvido com a polícia e até a carreta usada para transportar os mortos até o cemitério acabou nas mãos dos contrários. Mesmo que as tensões tenham amainado e que os dois partidos tenham chegado a um acordo para usar o mesmo templo em horários distintos para celebrar seus cultos, a pendenga durou 30 anos. Foi só após esses 30 anos que, tendo sido indenizados os adversários, pode dar início à sonhada construção da Igreja de Cristo que por muitos anos - até o advento dos edifícios - marcou o panorama da cidade de São Leopoldo. A atividade pastoral de W. Rotermund foi marcada por estes dois eventos: briga e construção. São o ponto critico e o coroamento de uma atividade ministerial.
Em meio a essa atividade, porém, houve cotidiano, levado muito a sério, com aconselhamento, visita a doentes, ensino religioso, estudos bíblicos e grande quantidade de pregações. Em tudo isso, as brigas e construção, Rotermund não se distinguiu de seus colegas. Houve, contudo, e talvez uma diferença: enquanto outros ensacavam a viola, cansados das brigas, Rotermund ficou.
Ficou por amor a causa do evangelho, mas também porque entrementes seu espírito dinâmico e empreendedor levara ao crescimento de suas atividades e seria errôneo abandoná-las, ainda mais que faltava uma organização estável para os evangélico-luteranos. Antes de chegar a essa organização, outros frutos foram sendo produzidos por meio de suas mãos.
No início, por prazer, mas também para dizer da situação dos teutos no Brasil, escreveria: Logo, estava há seis meses em São Leopoldo, assumiu a redação de jornalzinho de São Leopoldo, o Bote (Mensageiro). No início, queria fazer dele apenas folha cristã semanal.. Mas o jornal ofereceu-lhe a oportunidade de mostrar aos ilustrados que fé cristã e cultura geral não se excluem. Foi assim que, em 1875, se envolveu, por meio ano, na guerra travada entre jornais teutos do Rio Grande do Sul. Na guerra envolviam-se os ilustrados, liderados por Carlos von Koseritz, os cristãos católicos, liderados pelos padres jesuítas, e os cristãos evangélico-luteranos, dos quais W. Rotermund acabou líder. Para os evangélicos, o assanhamento de Rotermund deu novo ânimo, depois de terem sido acusados de muckerismo. 0 proprietário do jornal, porém, demitiu-o temeroso com as consequências da guerra. Mas Rotermund, o pastor já era respeitado como jornalista.
Algum tempo mais tarde, volitaria a atuar através de jornal, que surgiria por outro caminho. Ao chegar a São Leopoldo, foi-lhe confiado depósito de livros, designado de Sociedade Sinodal de Livros. A iniciativa havia sido de seus antecessores e distribuía literatura cristã. O trabalho era um peso. Logo, porém, verificou que o , depósito poderia ser transformado em algo muito profícuo para o mundo evangélico-luterano, caso fosse transformado em livraria. Melhor ainda, seria anexar a livraria uma editora que publicasse materiais fundamentais para a vida desses luteranos. Nela, poderiam ser editados livros escolares, dos quais havia grande carência e... como haveria impressora: um jornal, defensor dos interesses evangélicos. Assim, com capital ínfimo surgiu, em 1877, a Livraria Evangélica, assumida em fins da década de 1880 por Rotermund e seus familiares como Livraria de W. Rotermund. Transformado em livreiro, o pastor ofereceu a seus adversários a possibilidade de novos ataques: avarento, dinheirista!
O primeiro livro editado pela Livraria Evangélica foi uma Cartilha (Fibel). Em 1879, seguiu-se Livro de Contas (Rechenbuch). Interessante: os dois livros tinham apêndice em língua portuguesa. Na década de 1930, os Rotermund tinham a maior casa editora de material didático em língua alemã da América do Sul. Em virtude dos conteúdos, os livros escritos e editados por Rotermund eram atacados e difamados. Defendiam a integração dos teutos no Brasil, mas também falavam de amor à pátria dos antepassados e ao Brasil. Diziam da importância do aprendizado do português e do alemão.
Não podemos minimizar a importância desse programa de Rotermund. Nos lares, muitas vezes, os únicos livros eram Bíblia e Hinário. Agora, as cartilhas de Rotermund passavam a ser veículos que auxiliavam a melhorar a cultura geral. A seu lado, colocou-se o Catecismo, o Livro de Religião, a Gramática Portuguesa. Rotermund preparou a integração dos teutos no Brasil. Para o mundo luso-brasileiro, porém, isso era alemão demais; para muitos do mundo teuto, isso era brasileiro demais. O resultado foi apedrejamento de sua casa editora, ataques via jornais e, três anos após a sua morte, a destruição de seu jornal, o Deutsche Post.
Para restabelecer a auto-estima dos teutos, especialmente dos luteranos, entre eles, execrados após a catástrofe Mucker, Rotermund deu início a publicação do Kalender für die Deutschen in Brasilien, o Rotermund-Kalender. Ele foi de importância cultural fundamental entre os imigrantes alemães no Brasil, especial-mente entre os luteranos. Na maioria dos lares, não havia espaço para romances, para poesia. O gênero Almanaque = Kalender teve nesse espaço destaque fundamental. Através dele, formava-se cultura. Entre os teutos, difundira-se o Almanaque de Carlos von Koseritz. Suas posições eram, em boa medida, anticristas. Desde 1880, Wilhelm Rotermund passou a concorrer com o Almanaque de Koseritz, publicando o Kalender für die Deutschen in Brasilien. Alem de trazer informações gerais de interesse de agricultores, tornou-se também espelho da produção intelectual teuto-brasileira. Inicialmente, o próprio Rotermund escrevia os contos que tratavam de coisas da terra. Tornou-se, assim, também escritor. Os personagens de seus contos eram tornados do meio em que vivia e atuava como pastor: o vendeiro, o ilustrado, o colono, a mulher que sucumbe em meio a um mundo desconhecido e brutal. A tendência é clara: fortalecimento ético e religioso, integração ao meio brasileiro, sem descuidar da herança dos antepassados imigrantes.
Em fins de 1880, começou a circular o jornal Deutsche Post. Em seu programa, difundia a integração dos teutos e a manutenção de sua herança cultural. Desde o início, porém, também fica evidente outra intenção de seu redator e editor: levar os luteranos entre os imigrantes à formação de uma organização eclesial. Rotermund jamais almejou liderança política, esta seria assumida por outros. Do que, porém, não abdicou foi o de ser liderança cultural e religiosa. A primeira edição foi de 300 exemplares. Quando da destruição das instalações da Firma Rotermund, em 29 de setembro de 1928, o jornal tinha uma edição de vários milhares de exemplares, mas teve que encerrar sua circulação. Aos 80 anos, W. Rotermund ainda escrevia em seu jornal.
Pastorado, livraria, editora, produção de textos não ocultaram o professor Rotermund. Em breve, descobriu a importância da instalação do que chamava na época de escola superior, que fosse além do ensino elementar propiciado. A ele pensava agregar seminário para a formação de pastores e professores. Em 1880, fundou o que foi chamado de Nova Escola. Não estava só em seu esforço de fundar escolas. Na mesma época, padres jesuítas criavam e mantinham escolas com a finalidade de formar elites católicas. A falta de unidade no mondo luterano, porém, não permitiu que seu projeto fosse longe. Sofreu acusações, a escola foi transferida para Hamburgo VeIho e lá encerrou suas atividades.
Se a escola não vingou, outro intento traria grandes frutos. Desde o inicio de suas atividades em São Leopoldo, Wilhelm Rotermund viu-se confrontado com a desorganização do mundo evangélico-luterano. O fracasso do Sínodo organizado por Hermann Borchard provocou grande desconfiança entre comunidades e pastores. Diante de tal situação, Rotermund verificou que caso forçasse o surgimento de nova estrutura eclesiástica, desde logo estaria fadada ao fracasso. Fazia-se necessário que antes desenvolvesse atividade prévia, preparatória. Desde 1881, os protestantes tinham igualdade em relação aos demais brasileiros no tocante a política. No tocante a seus direitos religiosos, porém, eram tão-somente tolerados. A questão dos matrimônios mistos levara a muitas discussões. Foi a questão dos direitos religiosos o aspecto escolhido por Rotermund para sacudir o povo evangélico-luterano da letargia que se instalara em seu meio em relação a seus direitos. Através de circulares a todas as comunidades, bem como através de petição das comunidades evangélicas de São Leopoldo e de Lomba Grande, chamou a atenção do Estado para a situação insustentável, na qual se encontravam os protestantes. A petição foi arquivada. Entrementes, Rotermund não descansara e estabelecera contato com os demais pastores para preparar terreno para a fundação de outro Sínodo.
Duas questões estavam muito presentes em suas reflexões: 1) Sabia que Borchard fracassara ao tentar filiar sua instituição eclesial a Igreja Territorial da Prússia. 2) Depois, sabia que comunidades e muitos pastores queriam preparar sua autonomia, sua independência. Em razão dessas duas observações, muito importantes, verificou que qualquer instituição eclesiástica entre os teutos luteranos só poderia vingar na base do voluntariado. Assim, em 1o. de fevereiro de 1886, quando já se encontrava há 11 anos no Brasil, dirigiu convite para uma primeira assembléia sinodal. Deste convite resultou, nos dias 19 e 20 de maio de 1886, a fundação do Sínodo Riograndense. Rotermund foi cuidadoso até na palavra que escolheu: Sínodo, pois tal palavra nada mais significava que convenção, reunião. Sempre que cristãos não se viram em condições de assumir compromisso muito sério em relação à Igreja, denominaram suas organizações de Sínodo. Sínodo são organizações de consenso mínimo. Só sete pastores e suas comunidades se fizeram presentes, em São Leopoldo quando da fundação do Sínodo Riograndense. Rotermund foi eleito seu primeiro presidente.
A importância da fundação do Sínodo como convenção de comunidades logo se fez sentir, quando a Comunidade Evangélica de Santa Maria teve que sentir com todo o rigor a letra do parágrafo 5 da Constituição do Império que vedava aos acatólicos a construção de prédios que se assemelhassem a templos. Os luteranos de Santa Maria haviam construído torre para seu templo, e funcionário subalterno ordenara sua demolição. Rotermund aproveitou a situação e comandou campanha de coleta de assinaturas não só em prol da permanência da torre do templo de Santa Maria, mas em favor da igualdade de direitos a todos os luteranos. A campanha teve caráter nacional e coletou assinaturas de luteranos em todo o Brasil. Mas não só deles, muitos católicos contribuíram com suas assinaturas. Em 4 meses, reuniram-se quase 8.000 assinaturas. Estávamos no ano de 1887. Mais uma vez, a petição não logrou êxito. A igualdade religiosa só viria com a República.
Em 1893, Rotermund entregaria a presidência do Sínodo. Acusações injustificadas a sua pessoa levam-no a se retirar. Vozes que diziam que a direção da Igreja não deve ser ocupada por teólogo, difamaram-no. Só em 1909, voltaria a assumir novamente a direção de sua igreja, em meio à crise que quase levou a desagregação, provocada pela subdivisão da Igreja um em diversos sínodos menores. Sob sua liderança, o Sínodo Riograndense pôde enfrentar as crises da 1ª. Guerra Mundial. Aos 76 anos, em 1919, finalmente consideraria a sua missão cumprida, confiando a conclusão do Sínodo a mãos mais jovens.
Wilhelm Rotermund faleceu a 5 de abril de 1925, apos longa enfermidade. A seu lado estava Marie Rotermund, fiel companheira e esposa, mãe de dez crianças, das quais sete sobreviveram. Quando se estuda a atuação do casal que, em 1874, desembarcou em São Leopoldo, é fundamental que Marie Rotermund não seja esquecida. Atua na comunidade, é professora, dirige o coral, mas tudo é feito em silêncio. Jamais voltou a seu país de origem, o esposo sim. Parece que entendeu sua vida como possibilidade de criar condições para a realização de grande obra. E, realmente, a obra do irrequieto Wilhelm Rotermund dificilmente teria sido concretizada sem o equilíbrio de Marie Rotermund. Ela faleceu seis semanas após a morte do marido, na chácara que ambos haviam adquirido nas proximidades de São Leopoldo, o Morro do Espelho. Algumas palmeiras teimosas ainda mostram a alameda que plantaram para sinalizar o acesso a seu Morro. Lado a lado, repousaram no cemitério municipal de São Leopoldo.
Martin N. Dreher.
Pastor da IECLB e Professor no Instituto de Pós-Graduação
em História da UNISINOS, São Leopoldo, RS
(Fonte: Anuário Evangélico 1998. Editora Sinodal, São Leopoldo/RS, p. 117-127)