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ID: 371

Um olhar para o legado histórico da Reforma Luterana

Considerações trazidas no Concerto 500 anos da Reforma realizado na Câmara Municipal de São José dos Campos/SP

24/10/2017

Um olhar para o legado histórico da Reforma Luterana

Quando falamos em Reforma Protestante, não estamos falando apenas de um evento pontual na história do mundo europeu, nem de um movimento religioso revolucionário, mas sim, de um marco histórico, influenciado e influenciador de múltiplos fatores, que tornaram inevitável não só uma reforma religiosa, mas também política, social, intelectual e econômica a nível mundial.

A partir dos escritos e ensinamentos de reformadores como o inglês John Huss; o alemão Martim Lutero e o francês João Calvino, – estes baseados somente na Escritura, na Graça, na Fé e em Cristo - e de suas atuações frente os reis e príncipes protestantes, a Reforma contribuiu e muito na transição da Idade Média para a Idade Moderna; do sistema feudal para o sistema industrial; do domínio Imperial, para a atuação autônoma das nações-estados; de uma sociedade hierarquizada e categorizada, para uma sociedade livre e atuante na vida pública, privada e religiosa.

Para Lutero estava claro. Em seu escrito sobre a “Liberdade Cristã”, ele diz de forma audaciosa e responsável logo na primeira página: “Um cristão é uma pessoa livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém” e ao mesmo tempo, “uma pessoa serva e prestativa em todas as coisas e está sujeita a todos” Em outras palavras, somos livres de tudo e de todos pela fé, mas servos de tudo e de todos pelo amor.

Liberdade com responsabilidade. Eis uma característica da vida democrática. Eis um princípio que levou Lutero e demais reformadores a promover transformações na sociedade de sua época, influenciando o jeito de ser e de viver a fé e a vida em sociedade até os nossos dias.

Quero aqui, pontuar 3 aspectos bem práticos a partir de Martin Lutero, que elevam esta reflexão para além da fé. Porém, aspectos que não seriam possíveis de colocar em prática, se não fosse a fé consciente, comprometida, e incessante de Martim Lutero.

• EDUCAÇÃO: Para Lutero, a alfabetização e a promoção do conhecimento para todas as pessoas, e não só para os nobres e clérigos, deveria ser também um compromisso político e público. Cada cidade deveria ter suas escolas, dizia ele. Tal ênfase na educação foi tão marcante, que ao chegarem ao Brasil, os primeiros alemães luteranos diziam: “ao lado de cada igreja, uma escola”.

Nos EUA, a universidade protestante de Harvard também é um exemplo. Para o reformador, a educação promove a cidadania, estimula mentes pensantes e questionadoras, além de capacitar as pessoas a serem bons profissionais, pais e mães de família, governantes. Como Lutero conseguiu tal façanha no século XVI? Com a utilização da imprensa de Gutenberg. Ao traduzir a Bíblia para a língua do povo alemão, esta foi usada para alfabetizar as pessoas e daí, sem qualquer pretensão, se formatou o que hoje nós conhecemos como língua alemã oficial.

• ECONOMIA: Neste âmbito, Lutero revolucionou. Para ele, “toda profissão precisa ser exercida como uma vocação”. Não só o sacerdote é vocacionado por Deus em seu serviço, mas todo cristão é vocacionado a servir ao próximo por meio de sua profissão. Eis aqui o princípio que ele cunhou como “sacerdócios geral de todos os crentes”. Ou seja, para o bem comum, para o progresso da polis (cidade), e para que a economia (lei da casa) fosse exercida com justiça, sem usura, ganância e corrupção, era preciso atuar de forma vocacionada. Só assim, diz ele na explicação dos 10 mandamentos, é possível não só evitar o mal contra o semelhante, mas também promover vida, justiça e paz, seja na família, na sociedade ou na igreja. Se hoje consideramos o trabalho como algo que dignifica o ser humano, e temos teste vocacionais para as diferentes áreas profissionais, isso é graças à Martim Lutero.

• POLÍTICA: Lutero como vimos, acabou com a ideia hierárquica de estamentos e estruturas sociais imóveis. Para Lutero, os estamentos (privado, público e religioso ou povo, Igreja e Estado), possuem caráter funcional e instrumental. Em seus escritos o reformador não defende nem a união entre Igreja e Estado e nem a separação total entre Igreja e Estado. Lutero trilha o caminho do meio e tem uma compreensão mais harmoniosa e complementar. Para ele a Igreja proclama a vida, a Economia (agir particular de cada pessoa em seu espaço de trabalho), nutre e constrói a vida e o Estado protege a vida.

 Em seu livro sobre o cântico de Maria, o Magnificat, Lutero recomenda ao príncipe Frederico, duque da Saxônia “O bem-estar de muita gente depende de um governante tão importante, quando ele é governado pela graça de Deus. Por outro lado, dele depende a desgraça de muitos, quando ele se volta para si próprio”. Lutero não queria que espaços políticos fossem utilizados em benefício nem de pessoas e nem de sua própria Igreja. Para Lutero, o fim último de uma governança política estava em fazer o bem ao povo. Como diria o destacado filósofo grego, Bias de Priene, “O exercício do poder revela o tipo de pessoa que alguém é”. Por isso, Lutero diz no Magnificat, “Não lembro nada nas Escrituras que sirva melhor para este caso do que o cântico de Maria. Todos os que querem governar bem e ser boas autoridades, devem aprender bem e guardar na memória este cântico”, pois ali Deus humilha os fortes e fortalece os humildes.

• Por fim, para não falar demais sobre política, o professor Lauri Wirth, ensina sob a perspectiva luterana que “a necessidade do próximo é o critério para julgar qualquer sistema e o espírito que sustenta e move as ações na sociedade”.

Aqui eu ainda poderia falar de outras tantas mudanças e transformações sociais promovida e influenciadas pela Reforma Protestante. Conhecer a história da Reforma é conhecer a origem da nossa própria história moderna e democrática.

Celebrar 500 anos de Reforma Protestante é, portanto, celebrar a história de homens e mulheres que não abdicaram de suas responsabilidades na sociedade. Que não se fecharam em seus guetos religiosos por causa de sua confissão de fé. Pelo contrário, por causa da Fé confessaste que tinham, se viram como protagonistas de um mundo melhor. Nem tudo deu certo é verdade. Nem tudo são flores, com diz o ditado popular.

A livre interpretação da Bíblia e o livre pensar trouxeram consequências. O cristianismo se fragmentou demasiadamente. A própria democracia mostra sua fragilidade em nosso tempo. As desigualdades sociais e os preconceitos ainda existem. O capitalismo idealizado pelos protestantes se tornou selvagem. A educação pública também tem seus desafios frente as diversas intensões ideológicas e político-partidárias que muitas vezes procuram seus próprios interesses em vez da promoção de conhecimento visando o bem comum e o desenvolvimento de nossa casa comum.

Por falar em casa comum. Precisamos resgatar o conceito verdadeiro de Ecumenismo. Afinal, celebramos também 50 anos de abertura ao diálogo ecumênico. E isso não é por acaso. Todo o movimento ecumênico surge, justamente de forma mais efetiva, no pós-guerra, afim de encontrar respostas para aquilo que não deu certo. Buscou-se olhar mais para aquilo que nos faz ser um em Cristo e menos para o que nos separa. Mais para a unidade e menos para o conflito. Celebrar 50 anos de diálogo ecumênico é reconhecer que há erros, conflitos e retrocessos, mas há também, acertos, comunhão e avanços.

Celebrar 500 anos da Reforma e 50 anos de diálogo ecumênico é, como consta nos 5 imperativos ecumênicos, procurar ver o mundo em que vivemos e a fé que professamos, “a partir da perspectiva da unidade e não da divisão”, redescobrindo assim “a força do evangelho” de Cristo, o qual só tem uma função: “anunciar sempre a boa notícia e promover o amor ao próximo”.

Qual nação, estado, município, comunidade, movimento social, família, igreja, autoridade e pessoa não deseja ser movido por tais virtudes: graça e amor. Dádiva e serviço. Gratidão e ação!

Como pastor luterano atuante nesta região do Vale do Paraíba e morador neste município, sou grato a Deus por poder celebrar os 500 anos da Reforma Luterana em conjunto com irmão e irmãs em Cristo da Igreja Católica e Igrejas Evangélicas e nesta casa comum a todos nós, a casa do povo. Povo que é chamado a servir em liberdade e amor ao próximo.Que por meio da música que hoje vamos ouvir, a qual é capaz de traçar poética e harmoniosamente a linha da história da cristandade, e refletir a teologia que pulsava nos corações de seus compositores, possamos permitir que todas as transformações sociais, econômicas, políticas, intelectuais e religiosas promovidas pela Igreja Cristã nos últimos 500 anos, pelas diferentes denominações e confissões, não se percam na história geral qualquer, mas sejam sempre relembradas e ensinadas, para que possamos continuar atuando com liberdade e responsabilidade em nosso mundo e em nossa cidade.
Afinal, agora, são outros 500. Obrigado.
  


Autor(a): P. Marcus David Ziemann
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Vale do Paraíba (São José dos Campos-SP)
Área: História / Nível: 500 Anos Jubileu
Natureza do Texto: Apresentação
Perfil do Texto: Palestra - Debate
ID: 44441

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