A família cristã encontra-se liturgicamente diante das portas da Semana Santa. Na realidade, não é tão-somente o povo de Jesus Cristo que vive esta experiência. O Novo Testamento, nas Escrituras Sagradas, testifica que a morte do Filho do Homem não remonta à culpa exclusiva de Judas Iscariotes, qualificado como o traidor de Jesus Cristo. Se assim fosse, poderíamos viver sob a suspeita de que a Igreja cristã favorece uma postura antijudaica. Conforme a teologia do evangelista João, naquela noite no Jardim do Getsêmani, o ato da entrega do Filho de Deus materializa a glorificação de Jesus. Aconteceu a vontade de Deus! Então seria Deus mesmo quem traçou o caminho de Cristo à cruz. Ocorria na cruz a concretização do plano de expiação do pecado humano. Seu objetivo era destruir a força do pecado, poder inerente a nossa humanidade. Lembrando o testemunho de João, os 11 discípulos, parceiros de Jesus, atestam sua cumplicidade quando da entrega do Mestre nas mãos dos inimigos, porque nada fizeram para que isto deixasse de acontecer..
O fim trágico do Deus-humano na cruz é assunto constrangedor! Trata-se de um tema causador de sérios tropeços. Mas é esta morte que legitima e fundamenta a esperança da superação dos poderes da morte no mundo atual; poderes que mancham a vida e jogam sombras nefastas sobre a sociedade humana até os dias de hoje. Por esse motivo, a crucificação e a cruz são instrumentos de salvação. A miséria humana, colocada a descoberto e visível no maldito madeiro, está compactada em manifestações de grande alcance, cujas conseqüências sufocam a vida humana e sempre se apresentam em formas destruidoras. Vida miserável, existência que nem é vida verdadeira, jamais fruto do destino cego ou do acaso indefinido, relaciona-se aos poderes da morte pautados pelas políticas da injustiça, da violência, das mortes planejadas para os campos da guerra aberta ou naquelas escaramuças, idealizadas sutilmente no silêncio do cotidiano. São tantos os mecanismos internacionais e nacionais sempre muito espertos e oportunistas a serviço da garantia de privilégios egoístas ou para manter a influência de grupos interesseiros e poderosos.
As esferas da maldição criam os agentes promotores da cultura da destruição, da opressão e da cultura da morte. Muitos são seus cúmplices e incontáveis seus discípulos. O perfil de suas conseqüências causa medo e angústia. A cultura da morte sente prazer em ver sangue derramado. Realidade maldosa, que coloca os indefesos nas sombras do desespero estressante, ao mesmo tempo em que acalma suas vítimas, sugerindo que se acostumem a conviver com fatos consumados. Atos de resistência são inadmissíveis e também indesejáveis.
Os acontecimentos trazidos à memória na Semana Santa abrem novo horizonte. A cultura que privilegia a destruição do ser humano e indiferente à boa ordem na criação é implodida pela ação solidária de Deus. É do alto do morro de Gólgota, da cruz, que Ele estende os braços abertos. São os braços carinhosamente estendidos pelo Cristo crucificado. Estão voltados de modo amoroso às criaturas angustiadas e a toda criação sofredora.
Igreja que aposta numa política de simpatia e de agrado a todo custo, porém, avessa à pregação do Cristo na cruz, não terá crédito e nem a confiança necessária por parte das pessoas que carregam suas próprias cruzes, embora mais leves do que a cruz de Cristo, igualmente causadoras de sofrimento e de desesperança. A cruz de Jesus Cristo é oferta de salvação e fortalece seres humanos na jornada das pequenas cruzes. Em meio à paisagem das sombras, as ofertas do consolo solidário, da esperança e novidade de vida são sinais antecipados do Reino de Deus, a grande expectativa do futuro. É esperança, cujas conseqüências já são notadas na vida presente.
A confissão de fé das pessoas cristãs aponta ao Deus que não foge do próprio sofrimento. Jesus Cristo não desceu da cruz para salvar a própria pele. Suportou a pressão, agüentou a crise, suportou o insucesso, venceu o sofrimento; jamais masoquista, mas sempre obediente. Se possível passa de mim este cálice, mas cumpra-se a tua vontade. A fidelidade do Cristo sob a coroa de espinhos é exemplar e foi muito maior do que aquela vivida pelos amigos, que lhe eram mais achegados. Diante do absurdo da morte na cruz, os amigos fugiram. O recado que vem da teologia da cruz é muito claro. É possível encontrar Deus, onde jamais imaginaríamos que estivesse, até mesmo na cruz. A cruz sinaliza o juízo de Deus sobre o mundo pecador. Ao mesmo tempo, é sua maior oferta de reconciliação!
Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC
Jornal A Notícia - 18/03/2005