João 6.[56-59] 60-66
Introdução
João, o autor do Evangelho, era um sujeito meticuloso. Quem sabe por causa de sua timidez, escrevesse com paixão e emoção. Não permitia que entrassem em seu escritório. Ninguém deveria quebrar sua linha de pensamento. Zípora, sua ajudante na casa, não conseguia entrar lá nem para tirar o pó. Um dia João saiu e Zípora imediatamente entrou. Abriu as janelas para arejar o ambiente e, eis que, entrou junto um pé de vento derrubando ao chão todas as folhas onde João havia escrito. Assustada, fechou as janelas, juntou tudo, colocou sobre a escrivaninha e fez de conta que nunca tinha entrado lá. Assim João enviou seu Evangelho para a gráfica que encadernou tudo meio misturado.
Mateus, Marcos e Lucas escreveram de tal forma que um concorda com o outro. João só tem 10% de material que coincide com os outros evangelistas. Além de misturado (João 12 vai coincidir com Mateus 26; João 2 coincide com Lucas 19), João usa fontes diferentes. Acima de tudo, escreve mais com o coração do que com a razão.
Os versículos que destaco para a pregação neste 14º domingo após Pentecostes, não têm paralelos nos Evangelhos sinóticos,. O presente texto está no contexto central do ensino de Jesus onde ele, após ter caminhado sobre as águas, afirma ser o pão da vida. João deve ter escrito este Evangelho por volta do ano de 90 a 100 AD , uma vez que já era conhecido entre os gnósticos (1) em 130 AD.
Discurso duro
Devemos ser justos com João. O início do capítulo 6 também é compartilhado por Marcos, Mateus e Lucas. Lemos que Jesus dá de comer e 5.000 pessoas. Isto causou um delírio entre a multidão. E agora, João dá sequência ao assunto dizendo que Jesus é este pão, ou seja, dá da sua carne para comer e do seu sangue para beber (v.56-59). E, ao trazer este ensinamento na sinagoga em Cafarnaum, percebeu o murmúrio daquelas pessoas que o seguiam, não apenas os 12 discípulos.
“Dura é essa palavra. Quem pode suportá-la?” (v.60 NVI)
Jesus havia afirmado categoricamente: quem não comer da minha carne e não beber do meu sangue, não tem vida dentro de si (v.53). Que absurdo! Como isso é possível? Evidentemente, e dentro da ótica de João, Jesus estava se referindo à Ceia, à Santa Comunhão. Não dizia que o benefício para a pessoa que crê esteja em tomar a Ceia do Senhor para si, e sim, em saber e crer (2) no que está presente na Ceia: a morte de Cristo em nosso favor, o justo pelos injustos. Carne e sangue testemunham de Cristo, apontam para Cristo, a fonte e a manutenção da vida.
A pergunta de Jesus é ainda mais dura: “Isso os escandaliza?” (NVI) Scandalízei (no grego) significa derrubar alguém com suas palavras ou conceitos. Jesus pergunta se Suas palavras estão ofendendo os ouvintes. Continua aprofundando seu questionamento ao acrescentar “spoilers” (antecipações) sobre sua ressurreição e ascensão.
A mensagem é clara: somente com a morte vicária de Jesus na cruz, com Sua ressurreição e glorificação (ascensão) o que é espiritual faz sentido.
O espírito produz vida
“O espírito é o que vivifica” (v.63). João utiliza para espírito a mesma palavra grega usada para designar vento. A rigor não sabemos se está falando no Espírito Santo ou no espírito humano. Alguns exegetas inclusive pensam estar se referindo a algum benefício especial da Ceia do Senhor. Em todos os casos reconhecemos que o Espírito Santo se comunica com o espírito humano que, por sua vez, reconhece este agir através de elementos concretos, como a Santa Ceia. E nisto está a vida!
A carne somente tem vida se movida pelo espírito. O espírito somente faz jus à sua existência, se estiver na carne. A vida se dá, acontece, nesta interdependência escandalosa (3). Se a palavra de Jesus é pão para as multidões, então esta palavra vivifica o espírito que está na carne.
Destruindo a heresia gnóstica, o evangelista interpreta as palavras de Jesus dizendo que sem o espírito de Deus em nós não há vida. Isso porque a carne por si só não é vida. É apenas existência!
Abandonando a causa
Segundo as criteriosas anotações de João Jesus parece não dar fôlego aos seus ouvintes. Se forma enérgica e contundente reitera que a única forma de se chegar a Deus, de experimentar reconciliação com Deus, é crer na obra de Cristo. A palavra chave é pisteuousin, crer, e isso de uma forma muito especial: reconhecer que Deus ou Jesus Cristo estão na posição de nos ajudar a nos salvar de nós mesmos. A nos salvar da nossa própria carne e nos dar o espirito livre de viver com Cristo, de Cristo e para Cristo.
Esta condição, porém, faz com que muitos seguidores se afastem de Cristo. Abandonar não tem aqui necessariamente uma conotação ofensiva ou que descreva uma atitude ostensiva. É simplesmente tomar outro caminho. Isto até poderia acontecer sem chamar a atenção das pessoas menos observadoras. Eram seguidores que não seguiam mais. Bem simples.
Agora, quando Jesus se volta ao círculo mais íntimo dos discípulos, continuando seu questionamento, usa outro termo. Hypago é palavra mais direta. Significa deixar a presença de uma determinada pessoa. Abandonar. Literalmente, neste caso: se mandar. Vocês não gostariam de aproveitr a ocasião e se mandar também? poderia ser uma paráfrase da pergunta de Jesus.
Ir para onde?
Embora João seja tão diferente de seus companheiros evangelistas, concorda com eles ao colocar na boca de Simão Pedro a reação pronta com palavras certeiras: Senhor, para quem iremos? (v.68) Quanto maior a proximidade do caminhar com Cristo, tanto mais óbvia é a resposta. Não tem como negar o ensino de Cristo e não há como viver – e viver para toda eternidade – se não seguindo o Caminho de Cristo.
Pedro faz uma declaração épica que precisa ressoar em nossa mente e coração. Afirmação que precisa ecoar urgentemente na nossa Igreja. Todas as pessoas que anseiam em sua alma por Deus, toda gente batizada que reconhece que deve dar o passo da fé da entrega a Jesus, se reencontra com Deus e consigo mesma numa alegre esperança de vida plena. Estar na presença de Cristo faz a diferença.
Têm outros caminhos. Dá para simplesmente deixar de seguir. Tem como se satisfazer com paliativos... Mas para onde ir? Para onde fugir? Se o Senhor e Salvador Jesus Cristo tem “as palavras da vida eterna”? (v.68)
Conclusão
Lemos ainda há pouco, no início da Liturgia da Palavra, o texto de Josué (24.1-2a, 14-18) que nos fala de escolhas. Na semana passada falamos da Sabedoria em Provérbios 6, que também fala de escolhas. Hoje novamente falamos de escolhas. Para onde queremos caminhar? Como teremos forças para caminhar? (Efésios 6.10-20) São perguntas que devem ser respondidas individualmente. Mas precisa igualmente de resposta da sociedade. Em meio ao enorme surto de desigualdade social que vivemos em nosso País e, de resto, no mundo todo, precisamos responder: Para onde queremos ir?
A cultura de hoje privilegia o deleite da carne, do corpo, como se este fosse o objetivo final da vida. A ditadura do sexo, do prazer acima de qualquer responsabilidade, responde aos anseios do hedonismo e das ideologias que querem reger nossa sociedade. Dizem que o que importa é o momento. O compromisso com o depois simplesmente não tem lugar na agenda.
Seria uma nova versão do existencialismo? Podemos estar nos vendo no alto de um penhasco, na beira de um precipício ou no alto de um prédio. Lá em baixo estão as diversas ofertas e possibilidades de escolha de vida. Se escolher fosse apenas se atirar deixando o resto vai acontecer, certamente a morte seria a única consequência plausível. Escolher certo não é escolher dentro de limites de tempo e espaço. Somos capazes de tomar decisões?
Nossa liberdade é Cristo. Tão libertador que não precisamos estar escravizados pelas ditaduras da carne ou outras que nos afastam da cruz e de uma vida com Jesus. O espírito vivifica. Viver da compaixão de Deus e nos caminhos de Jesus Cristo é viver a eternidade. É não desistir da vida plena e verdadeira.
Prezada comunidade, um dia entendi o que significa viver com Jesus e caminho com Ele. Não vou desistir de viver com Cristo. E vocês?
Amém!
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(1) Gnosticismo: perigosa heresia que dizia ser o espírito inteiramente bom e a carne inteiramente má. Este dualismo leva a admitir que toda matéria (carne) é má, que a salvação é “escapar” da carne, que a humanidade de Cristo é falsa, que a carne deve ser tratada com dureza e, paradoxalmente, de forma libertina e devassa.
(2) Os versículos 35, 40, 47 e 51 deste capítulo comprovam a tese da prevalência do crer.
(3) Escandaloso é Deus ao permitir que no mundo “desconjuntado” e com valores “invertidos” seja pago um “preço ultrajante” do Justo em episódio salvífico acontecido em “um lugar que não podia dar testemunho da glória divina”, o lugar da caveira. (Westhelle, Vítor. O Deus escandaloso. Ed.Sinodal, 2008.
Foto:Die Große Krippe. Instalação em Wittenberg (Alemanha) de autoria de Martin Burchard. A maior manjedoura do mundo é composta de 2.017 barrotes, um para cada ano até os festejos dos 500 anos da Reforma. O nascimento do Salvador entre nós permite a visão da eternidade da salvação.