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Hebreus 11.1

Prédica

16/05/1971

Hebreus 11.1
(culto ecumênico) 

Nossa vida diária é uma sequência interminável de esperanças que rara ou só parcialmente se confirmam de certezas reiteradamente desmentidas, de ameaças que nos cercam e paralisam. Não é de admirar, portanto, que cada um de nós confie mais ou menos nisto ou naquilo, de acordo com as necessidades ou possibilidades do momento. Os amantes da generalização não compremetedora acreditam numa coisa a que se convencionam chamar de Deus. Os de mais posses confiam na psicanálise. Os mais ideológicos baseiam sua esperança no desenvolvimento (após o descrédito em que caiu a palavra progresso). E há quem creia na água oxigenada. 

É nesse mundo repleto de perguntas e respostas, de resoluções e desmentidos, que nos cabe viver. E em cada um de nos existe um misto de fé, semi-fé, pseudo-fé, superstição e descrença. Talvez seja esse o conflito básico da existência humana. Mas não nos cabe irritar-nos diante das vedetes do ceticismo ou invejar os atletas da fé inquebrantável. Após um balanço do próprio passado, lembrando a angústia de um futuro incerto, dando-nos conta, enfim, do relativo impasse de nosso presente, cada um de nós se sentirá solidário com seu mais antipático colega ou vizinho. É bem verdade que a maior especialização humana consiste em cavar abismos e erguer barreiras - de classe social, de ordem política, de raça, de opinião religiosa. Mas não é menos válido que a precariedade de nossa humana condição nos faça incrivelmente iguais. O enigma da vida e a inexorável realidade da morte colocam toda a família humana diante de uma mesma indagação. 

E é justamente neste horizonte amplo e comum que irrompem as afirmativas desconcertantemente tranquilas do apóstolo: nós não somos dos que retrocedem; nós cremos. E a fé é a certeza Que alimenta uma esperança num alvo que ainda não podemos ver, mas em cuja direção andamos. 

Qualquer pessoa que se detiver no exame dessas palavras não poderá deixar de sentir-se perplexa, pelo menos no primeiro momento. E isso, porque seu autor não deixa margem para o retorno. Ora, a forma de vida mais saudosista, mais romântica e mais escapista que existe, está justamente consubstanciada no ato de retroceder, de retornar, de voltar atrás. Quando os compromissos, as exigências se tornam por demais incômodos e insistentes, nós recuamos. O escapismo mais suave consiste em recordar os bons tempos e querer retornar à infância. O escapismo mais consequente é o dos que mandam congelar o próprio cadáver. Mas o apóstolo sabe que a existência humana, apesar de aparentes retrocessos, é uma caminhada constante, que sê é possível dar passos em frente, apesar de as vezes os indivíduos, as nações e as igrejas andarem em zigue-zague. As vidas de todos os homens (e por isso também a existência das sociedades e clubes) estão englobadas numa jornada rumo ao alvo comum. Nem todos já sabem disso. Há inclusive os que não querem sabê-lo. Alguns esqueceram esse fato. Outros o temem. Mas o mínimo que se pode dizer é que é irredutível. A vida não transcorre em ciclos. A vida não é estática. A vida anda, flui, às vezes corre e até leva muita coisa de roldão. 

Mas existe um segundo aspecto surpreendente nas palavras ouvidas. Existe uma reta indicadora da direção, é bem verdade. Só que o alvo, como tal, não obtém qualquer descrição. A informação é mínima e aparentemente decepcionante: não se pode ver o alvo, a meta. Em outras palavras: o após tolo nega a viabilidade e validade dos muitos programas e previsões, que inspiram os escapistas pretensamente mais avançados - os que se refugiam num futuro projetado à perfeição, um futuro livre das incertezas e obscuridades atuais. O apóstolo nega, em suma, que se possa fazer uma concordata com a vida. A vida não se pode alimentar de sonhos passados, nem de vagas conjeturas e aspirações futuristas. A vida só existe hoje, apesar dos pesares. E é hoje que cumpre avançar um trecho na jornada. Eis o que significa ter esperança: viver o dia de hoje, com todos os conflitos e chances que encerra, na certeza de que temos um encontro marcado com o alvo de nossa vida. 

Evidentemente, é nesse momento que surge a questão mais nevrálgica referente à fé. Nossa fé nem de longe remove montanhas e, em geral, é insuficiente mesmo para impulsionar um tímido passo, que não nos atrevemos a dar. O bloqueio intelectual e certa consciência da nossa transitoriedade impedem que façamos nossa a liberdade de confiar, a ousadia da esperança e a aventura de viver em disponibilidade, sem procurar garantias aqui e ali. Ficamos tão preocupados com o que devemos ou não podemos crer, tão fascinados pela própria fé (ou pelo próprio ateísmo) que estacamos, aplicamos o pé ao freio, esquecidos de que a fé é um evento sempre novo, em cada novo dia. A fé ocorre no encontro e na comunhão com Aquele em quem se crê. A fé passa a compor a história da nossa vida, no momento (e nos sempre novos momentos) em que estendemos a mão Aquele que Se identificou conosco e que quis ser nosso irmão, para acompanhar-nos na jornada. 

Que significa, porém, o fato de Cristo acompanhar-nos na jornada da vida? Que consequências tem a presença de Cristo neste mundo? Que significa aceitar esse fato aparentemente tão invisível, tão despercebido? Por que Cristo parece ser tão incógnito, tão distante, até tão chocante e desprezível, tão paradoxal quanto a pobreza e sujidade da manjedoura, quanto a miséria e opróbrio da cruz. Deus não é o taumaturgo, o mágico que extrai de sua cartola o coelho que mais desejaríamos ver. Deus não concorda com os padrões que nós (os indivíduos, a sociedade e as igrejas) tantas vezes queremos impor. Pelo contrário. O Deus que se chama Jesus Cristo põe em questão a vivência pessoal, social, nacional, eclesiástica. O Deus que conhecemos e confessamos em Jesus Cristo é radicalmente diferente do ídolo que criamos para servir de padroeiro e confirmador de toda a iniquidade familiar, individual, política, econômica, social e cultural - de nosso e de outros tempos. Em nossos - dias, o problema essencial já não reside tanto em se saber se é possível acreditar em um Deus transcendental. Para muitos (e quem de nós se excluirá?), seria bem mais cômodo e agradável que Ele se encontrasse além da lua. Mas o Deus que vem ao nosso encontro não é o protetor incondicional da família, da tradição e da propriedade. O Deus que Se revelou em Jesus Cristo vem justamente para restaurar o homem e o mundo, sua criatura e sua criação. De fato, é mais fácil ser ateu do que colocar-se à disposição de um Deus que quer saber o que fizemos e ainda pretendemos fazer com Seus filhos e o mundo no qual Ele criou uma chance de vida digna desse nome - para todos! Deus não se limita a estruturas pré-fabricadas ou forjadas para o futuro. Seu alvo não coincide obrigatoriamente com nossa; metas, inclusive quando lhes aplicamos o rótulo de cristãs. 

Crer significa saber e aceitar tudo isso. Aceitá-lo como uma imensa libertação. E só aqueles que livremente encetaram a jornada, saberão que esperança não é mero sinônimo de conformismo ou otimismo á toda prova. Esperança é fruto da confiança de quem sabe que Deus cumpre o que promete. 

Sempre! Este culto ecumênico pode tornar-se um pequeno sinal de livre e confiante esperança. E cada um de nos poderá, cotidianamente, erguer mais outro sinal, outra seta indicadora do alvo, nas margens do caminho. Deus derruba barreiras para que possamos encontrá-lo. E todo aquele que resolutamente destruir um pedaço da muralha, no sentido de encontrar seu irmão neste mundo, terá concretizado mais um ato de fé.

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Autor(a): Breno Arno Schumann
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Juiz de Fora (MG)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 11 / Versículo Inicial: 1
Título da publicação: Auxílios para a Prática Pastoral - Seleção póstuma de prédicas e medit / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1974 / Volume: P - 2
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 23333

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