Prédica: Romanos 5.1-11
Leituras: Êxodo 17.1-7; João 4.5-42
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 3º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 24/02/2008
Proclamar Libertação - Volume: XXXII
1. Contexto
Cristo abre os seus braços e estende as suas mãos do alto da cruz;
Toca os limites extremos do globo terrestre.
Gólgota se transforma em centro da Terra.
(Cirilo de Jerusalém – 315 a 386 a.C.)
2. Preliminares
A perícope aborda, em relação ao contexto, um assunto novo. A intenção teológica em Romanos 1.16s., posteriormente detalhado nos capítulos 3 até 4.2, é aproximar o binômio justiça de Deus e vivência da fé. No texto, em pauta, o autor indica para a justificação como obra salvadora de Deus. Ela é constitutiva para a vida plena. O evangelho testemunhado e encarnado gera poder que salva.
3. Perfil exegético
V. 1 – O apóstolo acentua que vida justificada indica para a oferta de paz com Deus. A reconciliação restabelecida entre Deus e a pessoa humana é um fato novo e resulta do sacrifício de Cristo na cruz de Gólgota. O novo relacionamento entre Deus e o ser humano inaugura um novo tempo. A iustificatio Dei em nada se assemelha à proclamação do direito aplicado na sociedade humana. O princípio da jurisprudência humana é evidente: detecta a culpa do réu e estabelece a punição adequada. O destaque conferido à justiça de Deus marcou o conceito de salvação e de fé em Paulo e na igreja da Reforma.
V. 2 – O mediador da ação divina é identificado: Jesus Cristo, o crucificado. O caminho a esse estado de graça torna-se acessível pela fé. A glória definitiva, que estabelece o novo futuro, continua ausente e sinaliza a qualidade pecadora do ser humano.
V. 3 – A promessa do novo futuro é esperança. O apóstolo sabe que o tempo de espera acontece na medida em que a realidade do sofrimento e das ilusões permanece. Essa situação nos identifica com as demais pessoas e nos faz solidários também com os descrentes. O apóstolo anuncia que o sofrimento, as ilusões e as tribulações fundamentam a alegria das pessoas cristãs e desafiam para uma postura de perseverança.
V. 4 e 5 – As tribulações fortalecem a esperança. Quanto maior a pressão exercida pelas dificuldades, tanto maior será a alegria da esperança. A vivência do sofrimento remete ao amor de Deus. É elemento-âncora que dá amparo. É o amor de Deus que se revela na vida e através da vida da pessoa crente.
V. 6-11 – Jesus Cristo materializa o amor de Deus. A sua morte em favor dos ímpios e pecadores é o exemplo mais concreto da encarnação desse amor. A qualidade do sacrifício de Cristo na cruz é muito diferente do mártir que se doa em favor dos amigos e cúmplices. Nada se compara à morte vicária de Cristo. Quem sacrificaria sua vida pelos justos, pelos bons? Se Cristo morreu por nós, ele também o fez por nossa causa. A realidade da cruz indica para a necessidade humana, jamais de Deus. Deus não precisa derramar sangue para aplacar sua ira.
O sacrifício de Cristo sinaliza a iniciativa gratuita de Deus e liberta a humanidade da esfera da maldição. A cruz sempre é protesto contra a realidade do pecado, fonte das tribulações, dos sofrimentos e das ilusões humanas.
Deus não precisa de reconciliação; a humanidade pecadora necessita dela. Ela sinaliza o mundo que se afastou da vontade de Deus e organiza a vida como se Deus não existisse. Livre da necessidade de promover a justiça por mãos próprias, o povo de Deus, a exemplo de Jesus Cristo, tem caminho aberto à vida solidária. A cruz erguida em Gólgota é instrumento que promove a paz de Deus e razão da esperança perseverante.
4. Meditação
Cremos em Deus, que permite que sua graça venha do céu à semelhança das gotas de chuva, quando caem sobre a superfície da terra. Jesus Cristo tornou-se pessoa humana. Em favor da causa da paz Jesus pregou, curou, debateu com seus adversários, morreu e trouxe reconciliação.
Discípulos de Cristo refletem em atitudes o brilho da bondade de Deus. A sociedade toda e a criação serão beneficiadas. A convicção da presença de um Deus gracioso promove a reconciliação – não porque a humanidade assim o mereça. A nova justiça fundamentada no amor e na misericórdia tem o seu eixo no Cristo crucificado. Na comunhão de irmãos e irmãs, na qualidade de mendigos de mãos vazias, seguidores de Cristo descobrem um novo sentido de vida. A fé vence a desconfiança e o medo. Ainda assim a humanidade continua exposta a preocupações, ao sofrimento, ao poder do pecado e da culpa. O brilho da luz e as sombras coexistem. Na qualidade de humanos, não cairemos fora do perdão.
O texto confronta com conceitos em escala: “São as tribulações que levam à perseverança; mas a perseverança traz experiência de vida e traduz-se em esperança”. A vida de fé desconhece avanços permanentes em caminhos marcados tão-somente por vitórias. Atravessamos a paisagem da cruz e da escuridão; a vida humana continua invadida por fracassos e decepções. Graças a Deus, há liberdade para dividir os sentimentos e as vivências de frustrações e os fracassos; a fé fundamentada na aceitação imerecida permite que se repartam os clamores e que as fraquezas sejam admitidas. Quem desconhece o lamento de Cristo por causa da experiência da ausência de Deus? “Pai meu, por que me desamparaste?” Além de representar um desafio à fé e motivação para a vida de esperança, é consolador saber que a pessoa humana, em virtude de sua vulnerabilidade, encontra amparo e sente-se cuidada pelo Deus da bondade. A certeza da graça faz descobrir o sentido da vida. É a confiança que restabelece o equilíbrio e devolve à pessoa sem esperança e iludida o direito à vida em sua plenitude. O apóstolo Paulo confessa que o “espinho na carne”, do qual é portador, é suportável, porque a “graça de Deus lhe basta”. A comunhão comunitária privilegia a solidariedade e devolve a esperança do cuidado e do acolhimento. A graça coloca-nos ao lado de Deus.
A justiça divina é peculiar e especial; os seus frutos também são especiais. Por isso nada temos a temer, tampouco algo a perder. Há liberdade para reconciliar, curar, abraçar e repartir gestos bondosos, servindo e cooperando na missão de Deus.
A oferta de Deus é vida digna e plena. No entanto, persiste o estado de guerra entre humanos e Deus. É notória a insistência na auto-suficiência. Em nosso país, o caos social e ético, fruto da ausência de paz, invade todos os espaços na sociedade, desde as balas perdidas até a violência no campo. A convivência desrespeitosa entre os gêneros e gerações, entre raças e religiões reflete egoísmo, marginalidade e luta de poder. As seqüelas da desumanidade manifestam-se e deixam rastros de sofrimento e dor na sociedade e no meio ambiente.
5. Reflexões para a prédica
Que homem é este?
Foi UM que se doou
Ofertou o que possuía
Que se transformou em pão e vinho
Pão repartido vinho servido
Para todos que tem fome e sede
De pão e de amor
Sede de justiça.
Atentem ao homem
Que se entregou e se repartiu
Pedaço em pedaço
Dia após dia
Até a última gota de sangue.
Assim tudo se consumou
E por fim o túmulo vazio
Sim, este
Este foi o FILHO DE DEUS.
(Adaptação e tradução de um texto de Lothar Zanetti)
Inseridos na família eclesial através do Batismo, levamos o nome de cristãos. Somos identificados nominalmente pelo Cristo que se doou na cruz. Segundo o roteiro litúrgico tradicional, o texto de Romanos 5.1-11 era previsto para o domingo Reminiscere. Essa designação associa-se às palavras do Salmo 25.6: “Lembra-te, Senhor, das tuas misericórdias e das tuas bondades”. A ênfase do evangelho é clara: a morte de Cristo na cruz é o início de vida nova. Apesar da humilhação, do sofrimento e da aparente falência, Jesus não desceu da cruz. A morte vicária de Cristo liberta, traz alívio e firmeza, tanto pessoal como social e comunitária. “Na cruz de Jesus, Deus reage à violência humana não com a contraviolência, mas com perdão e reconciliação” (Klaus Wengst. Pax Romana, Pretensão e Realidade. Ed. Paulinas, 1991, p. 12).
O apóstolo Paulo destaca algumas questões fundamentais, traços condutores para a prédica:
1 – O evento da cruz inaugura um novo conceito de paz. É paz que não acontece de cima para baixo, nem nasce do centro do poder. A história da humanidade reflete tentativas de construir relações de paz à custa da luta armada, da brutalidade e de muito sofrimento; é a pretensa paz manchada de sangue e de infelicidade. Por causa da cruz de Cristo, sinal da miséria e do amor de Deus, e apesar de todas as manifestações de desumanidade, é possível permanecermos fiéis a este mundo.
2 – A argumentação do apóstolo aponta para o testemunho do amor de Deus. A cruz não é símbolo de vida perdida; torna-se antes um sinônimo de mais-vida! O amor de Deus provoca resistência num mundo dominado pela prática e cultura da violência. A nova criação, fruto do serviço do Cristo crucificado, torna-se realidade (2 Co 5. 17). Deus faz a história pelo lado avesso. O amor de Deus, visível na cruz, é irritante. Irrita sobretudo aquelas pessoas que anseiam por um Deus forte, um Deus que garante sucesso e justifica a própria glorificação. O amor de Deus resgata a identidade perdida da pessoa humana.
3 – Vida de qualidade, vida nova é possível sob o poder do amor de Deus. O amor de Deus torna-se atitude prática no relacionamento com outras pessoas e com toda a criação. O poder do amor, revelado na cruz, suprime as contradições presentes no descompasso dos relacionamentos e na política da violência que determina a vivência na sociedade humana. A ambição do sucesso, das vantagens próprias e do domínio é superada pela postura de Jesus: “entre vocês não seja assim”. Pessoas cristãs não apostam na glorificação própria, mas na graça e no amor de Deus.
6. Subsídios litúrgicos
Lema bíblico a destacar:
“Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).
Confissão dos pecados:
Ó Deus, a comunidade está reunida, juntos celebramos o culto; cantamos e louvamos, oramos e ouvimos a tua Palavra. Existem tantas situações na vida que nos levam a desconfiar de ti. Tu nos conheces e sabes o quanto vivemos afastados de ti e também do próximo. Distantes, sentimos um vazio na vida. Sem a tua companhia e orientação há falta de esperança e inexistem perspectivas para saídas. Levamos essa carga à tua presença para que nos libertes e concedas perdão. Por causa do amor de Jesus Cristo ouve o nosso clamor e tem misericórdia de nós!
Litanias:
Proponho partes do Salmo 10 como subsídio para as litanias. A antífona consistiria da leitura do verso 12: “Levanta-te, Senhor! Ó Deus, ergue a mão!”
O cântico do Glória pode ser precedido do seguinte texto: “No tocante a mim, confio na tua graça; regozije-se o meu coração na tua salvação” (Sl 13. 5).
Oração do dia:
Deus da bondade, hoje nos concentramos em tua paciência e misericórdia. Abre os ouvidos da comunidade reunida para que possamos juntos ser abençoados com o presente do teu santo evangelho. Concede-nos pensamentos coerentes e aprendamos a lidar e a conviver em paciência e paz também com o próximo. Amém.
Intercessões
Seguem alguns destaques:
– à misericórdia de Deus, que estabelece uma nova relação com as pessoas e com a toda a criação e que fortalece nova qualidade de vida e convívio;
– à abertura em relação à palavra de Deus e às suas potencialidades;
– à intercessão pela igreja, por suas lideranças e seus obreiros e obreiras. Que saibam desempenhar com dedicação o indicativo de Cristo “ser sal da terra e luz do mundo” em todas as suas dimensões e nos múltiplos contextos.
Importa que sejam abordados assuntos locais.
Oração eucarística:
Sugiro que seu conteúdo se atenha às formulações previstas no Livro de Culto da IECLB.
Oração pós-comunhão:
Deus da misericórdia, muito obrigado pela dádiva do pão e do fruto da videira compartilhado. A comunidade reunida experimentou a tua proximidade e hospitalidade. Retornamos aos lares e ao cotidiano da vida fortalecidos na fé, na esperança e no amor. Anima-nos a repartir com outras pessoas a tua paz e o amor que não conhece fronteiras. Amém.
Bibliografia
ALTHAUS, Paul. Der Brief an die Römer. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966 (NTD, 6).
BUCK, Martina. Reminiscere. In: Werkstatt für Predigt und Liturgie, Heft 1/2003; Bergmoser + Höller Verlag, 2003. p. 17-24.
BURGDÖRFER, Ludwig. Reminiscere. In: Gottesdienst-Praxis. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1998. p. 45-47.
SCHUMANN, Breno. Prédica sobre 2 Co 12. 9-10. In: Tempo e Presença, setembro 1973, Rio de Janeiro.
WALDECK, Thomas. Reminiscere. In: Gottedienst-Praxis. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2004. p. 49-55.
WENGST, Klaus. Pax Romana – Pretensão e Realidade. São Paulo: Ed. Paulinas, 1991.