Prédica: Mateus 26.36-56
Leituras: Êxodo 24.1-11 e 1 Coríntios 10.16-17
Autora: Ramona Weisheimer
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 21/04/2011
Proclamar Libertação - Volume: XXXV
1. Introdução
Quando comecei a pensar na tarefa que tinha pela frente, inicialmente bateu um desespero enorme: onde conseguir material? Aqui, tão longe dos grandes centros de pesquisa e produção de material, é difícil encontrar algo. Recorre-se às livrarias, o que vem de fora é caro, pede-se aos vizinhos. E, no final, quem diria, o material reunido era tanto e tão interessante... quase me perdi. O desafio deu mais sede e fome por ler, por ouvir, por conversar com Mateus, com o povo para quem o evangelho foi fonte de força e vida, como povo pequeno e pobre, doente e oprimido, mas cheio de esperança e fé.
G. DANIELI diz que a Paixão está entre os textos mais antigos do evangelho, se não for mesmo o mais antigo, podendo-se aqui até olhar o Evangelho de João ao lado dos outros três como sinótico.
Quanto aos textos que acompanham Mateus 26.36-56 nesta Quinta-feira da Paixão, em Êxodo 24.1-11, as leis de Deus são lidas ao povo, que se compromete com elas. No momento do sacrifício, que sela a aliança, o povo novamente se compromete a guardar o que lhe é dito, e Moisés, intercessor entre Deus e o povo, simbolicamente o une, aspergindo o sangue de uma única vítima sobre o altar de Deus e sobre o povo. Depois, aos notáveis é permitido ver Deus, e todos comem. Em 1 Coríntios 10.16-17, o apóstolo pergunta aos coríntios se o cálice da bênção não é comunhão e se o pão partido não é comunhão, pois, se é comunhão, participamos todos juntos dessa bênção. O texto do Evangelho de Mateus vem logo após a comunhão da mesa, instituição da Ceia; logo após, o compromisso é afirmado e reafirmado por aqueles mais próximos de Jesus de que jamais o abandonariam. Aponta para o sangue a ser derramado: nova aliança! Jesus é o único intermediário, sacrifício que nos une ao Pai e aos irmãos. Por vezes, também nós precisamos ouvir as palavras que nos chamem à realidade: não é esse o sacrifício que nos une?
2. O texto
“O evangelho carrega as marcas do mundo em que foi criado e para o qual foi endereçado” (W. CARTER, p. 32). Vou correr o risco de estar “chovendo no molhado” com algumas colocações.
Mas como talvez haja entre os leitores pessoas em situação semelhante à minha – os anos da Faculdade já distam, e a literatura à disposição, por causa da distância e da dificuldade de aquisição, é pouca – quem sabe ajude um pouco. Ou console.
Conforme W. CARTER, o Evangelho de Mateus teria sido escrito entre 80 e 90 d.C., provavelmente em Antioquia, na Síria. Outros autores, como M. BARROS, trazem-no para próximo de Antioquia, nas colinas de Golan, mas talvez não na cidade. Quanto à data, seria após a destruição de Jerusalém pelas tropas romanas em 70 d.C. e após a reorganização do judaísmo, por escribas e fariseus, em Jamnia. A destruição de Jerusalém deixa marcas profundas também nas comunidades do Nazareno, pois foram alvo dos judeus, que os consideravam traidores que teriam atraído a ira divina, e talvez eles mesmos se sentissem culpados pela desgraça. Nazarenos traidores ou povo de Deus? Para permanecer firme na fé, fazia-se necessário atualizar a palavra, a vida, de Jesus. Com uma audiência de maioria judaica, o texto deixa claro a todo instante que Jesus é o cumprimento das promessas feitas aos profetas. Não fica tão claro se a primeira audiência era composta apenas por pessoas pobres, “marginais involuntários”, ou por pessoas de alguma posse, chamadas a se preocupar com a missão entre os pobres. Provavelmente, um grupo misto.
Para o estudo dos versículos, tomei as traduções propostas pela Bíblia de Jerusalém (BJ) e por W. CARTER.
V. 36-38 – “Então Jesus foi com eles para um lugar chamado Getsêmani. E disse aos seus discípulos: Sentai aqui enquanto eu vou até ali para orar. Levou consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Jesus começou a ficar aflito e agitado” – BJ; “começou a entristecer-se e a angustiar-se” – “Então lhes disse: Estou profundamente aflito, até a morte; permanecei aqui e vigiai comigo” – BJ; “Minha alma está triste até a morte.” Getsêmani, conforme a BJ, significa “lugar de azeite” e ficava ao pé do monte das Oliveiras; cf. Zacarias 14, é o local da vitória escatológica de Deus. Vai com Jesus o grupo mais próximo: Pedro, Tiago e João. Esses viram a transfiguração (17.1-8); agora estão presentes no seu reverso de angústia. Tiago e João haviam pedido lugares de honra no reino, proclamaram poder beber o cálice do sofrimento de Jesus; Pedro proclamara mais de uma vez seu amor e confiança totais em Jesus. Apesar disso, nenhum parecia compreender efetivamente o caminho da cruz. É dada ênfase à humanidade de Jesus, que se angustia até a morte. “Minha alma está abatida”, cita um refrão dos salmos de
lamentação.
V. 39 – “E indo um pouco mais distante, caiu com o rosto em terra e orou: Meu Pai, se é possível que passe de mim este cálice. Contudo, não seja o que eu quero, mas o que tu queres.” Jesus ora sozinho. Três vezes a oração é repetida, como três foram as tentações no deserto. Cair com o rosto em terra é posição bíblica para orar e encontrar-se com o divino, e também uma posição de desespero e angústia. Como na oração que ensinara, ele ora a “meu Pai”, e ele também tem medo. Mas, pior do que a morte dolorosa, seria atrapalhar o reino. Deus não lhe dá resposta. Jesus resigna-se a fazer a vontade Dele.
V. 40-41 – “Jesus voltou para os discípulos e os achou dormindo. Ele disse a Pedro: Então, não pudeste vigiar comigo uma hora? Vigiai e orai para que não entreis no tempo da prova” – BJ; “não entreis em tentação” – O espírito está disposto – BJ; “está pronto, mas a carne é fraca”. Jesus não ensina a orar contra ser tentado à deslealdade, pois a tentação parece inevitável, e já fora predita (26.31- 35). Nem os manda fugir da tribulação. Mas cuidar para não duvidar da fidelidade de Deus ou do compromisso para fazer sua vontade. Os discípulos pensam estar firmes e fortes nos propósitos de Deus (espírito), mas terão que lutar para fazer isso (carne).
V. 42-44 – “Novamente retirou-se pela segunda vez e orou: Meu Pai, se isso não pode passar sem que eu o beba, seja feita a tua vontade. Novamente ao voltar, achou-os dormindo, pois os seus olhos estavam sonolentos. Então, deixando-os novamente, retirou-se e orou pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras.” Jesus resigna-se às consequências de ser fiel à vontade de Deus e repete as palavras da terceira petição do Pai-nosso (Seja feita a tua vontade).
V. 45-46 – “Então veio aos discípulos e lhes disse: Ainda estais dormindo e descansando?” – BJ; “Dormi agora e repousai” – “Vede, a hora está perto, e o Filho do Homem é entregue nas mãos de pecadores. Levantai-vos, vamos. Vede, meu traidor está perto.” Conforme a BJ, as palavras de Jesus são de “doce ironia”: agora vocês podem dormir, pois a hora em que deveriam estar comigo passou. Agora o que virá deverá ser enfrentado sozinho. E a hora chegou, está perto, como o traidor está perto. O Filho do Homem, que no discurso escatológico julga o mundo e estabelece o reino de Deus, é condenado pela elite e traído por um dos seus.
V. 47 – “Enquanto ainda falava, eis que Judas, um dos doze, chegou; com ele estava uma grande multidão com espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes e anciãos do povo.” A tragédia é sublinhada pelo fato de ser o traidor um daqueles que fora chamado e comissionado por Jesus, um que o acompanhara e fora por ele instruído. Jesus fora contra a violência, e eles vêm a ele com espadas e paus. Josefo registra que, mais ou menos em 59 d. C., chefes dos sacerdotes usavam turbas violentas para fazer cumprir sua vontade.
V. 48-50 – “Ora, o traidor tinha lhes dado um sinal, dizendo: Aquele que eu beijar é o homem” – BJ; “Prendei-o”, também. NESTLE-ALAND não escreve “homem”. – “Logo, aproximando-se de Jesus, disse: Saudações, Rabbi! e o beijou. Jesus lhe disse: Amigo, faze o que deves fazer aqui” – BJ; “Para que estás aqui? – Então vieram, botaram as mãos em Jesus e o prenderam.” Jesus põe termo à hipocrisia do gesto; passa logo à ação. Outras duas coisas chamam bastante a atenção nesse trecho: toda a vida de Judas é definida por esse único ato. E enquanto as mãos aqui falam de traição e violência, Jesus sempre usou suas mãos para curar, salvar, abençoar.
V. 51 – “Eis que um dos que estavam com Jesus pôs a mão na espada, a desembainhou e golpeou o escravo do sumo sacerdote cortando a orelha.” Não é dito quem foi, mas que um dos que estavam com ele pegou a espada. Em todo caso, alguém que não entendeu ainda a necessidade dos acontecimentos. Na melhor tradição do “sabe com quem está falando?”, ferir o escravo do sumo sacerdote era atingir o próprio dono notável. E também cortar a orelha pode estar aqui de propósito: a elite não quis escutar!
V. 52-53 – “Então Jesus lhe disse: Repõe tua espada no lugar. Porque todos os que pegam na espada pela espada perecerão. Ou pensas tu que eu não posso apelar para o meu Pai para que me envie, imediatamente, mais de doze legiões de anjos?” Resistência não-violenta, talvez a comunidade tenha bem viva na memória a própria destruição de Jerusalém por Roma, como consequência da insurreição dos judeus. Jesus rejeita a “guerra santa”. Ele poderia pedir mais de doze legiões de anjos ao Pai – uma legião tinha, mais ou menos, 6 mil homens – e, havendo três ou quatro estacionadas próximo de Antioquia, teria superioridade numérica para acabar com todos. Mas não o faz, porque aceita a sua missão. Só usa o seu poder em benefício dos outros. Inspiração para busca de meios alternativos de resistência. Importante: só em Mateus é citada a reação armada de um dos discípulos.
V. 54 – “Mas como se cumpririam então as Escrituras, as quais dizem que deve acontecer desse modo?”
V. 55-56 – “Naquela hora, Jesus disse às multidões: Saístes com espadas e paus para me prender como se eu fosse um bandido? Dia após dia eu me sentei no templo ensinando, e não me prendestes. Mas tudo isso aconteceu para que as Escrituras dos profetas se cumprissem. Todos os discípulos o abandonaram e fugiram.” Aqueles que fizeram do templo um covil de ladrões mandam prender Jesus como se fora um ladrão. Jesus não é violento, nem se esconde. Provavelmente, a ação se passa à noite. A intenção da elite religiosa se executa no escuro, em segredo. E todos os que se julgavam fortes o abandonaram e fugiram. Tudo para cumprir as Escrituras.
3. Pensando na prédica
O sofrimento de Jesus diante do abandono e da missão é terrível. Sua humanidade transparece. A alma está triste até a morte. Os seus dormem. Deus parece não ouvi-lo. Não é fácil. Só Mateus coloca o orar “comigo”, e os fortes que o acompanhavam não conseguiram vigiar.
Anotei algumas coisas para as quais eu não havia atentado antes e que talvez possam dar um rumo à meditação: 1) a oração no Getsêmani, com toda a sua dor, é o reverso da transfiguração; 2) os discípulos que acompanham Jesus são justamente aqueles que haviam estado na transfiguração e que mais vezes se mostraram senhores de uma fé inabalável, isto é, os que se proclamavam fortes são fracos e dormem; 3) no início do ministério, aparecem as três tentações no deserto, agora são três momentos de oração; 4) há uma ênfase muito grande na humanidade de Jesus, que tem medo, sim, da morte dolorosa, mas mais medo de atrapalhar a vinda do reino; 5) a comunidade a quem Mateus escreve é pacifista, pois só aqui alguém toma a espada e logo é mandado guardá-la; 6) Jesus assume as consequências da rejeição a Deus. E tudo se faz como cumprimento das Escrituras.
Marcelo BARROS, no belo livro “Conversando com Mateus”, faz de seu texto uma conversa com a comunidade de Mateus. Como ela coloca as palavras da forma que julga mais apropriadas para o seu contexto e entendimento. Realçam-se a dor e a angústia do Jesus que sofre enquanto seus amigos dormem, como comunidade pequena e perseguida que sofre e se angustia também. Que ora e confia no Pai, ainda que seja doloroso o que está por vir. É interessante lembrar que os três textos previstos encaixam muito bem: antiga e nova aliança, sacrifício, comunhão.
4. Imagem para a prédica
Sugiro o poema de Dietrich BONHOEFFER:
Quem sou eu?
Quem sou eu?
Frequentemente me dizem
Que saí da confinação da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão.
Quem sou eu? Frequentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.
Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer.
Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por fl ores, pelas vozes das aves,
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isso?
Quem sou eu? Esse ou o outro?
Sou uma pessoa hoje e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo? Um hipócrita diante dos outros,
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debandada da vitória já alcançada?
Quem sou eu? Essas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
“Miserere Nobis” Roberto E. Zwetsch (em Salmos para tempos de Incerteza – Editora Sinodal):
Bondade e misericórdia minha, tem piedade de nós!
Quando olho para dentro de mim,
O que encontro?
Um mar de dúvidas, lágrimas,
Desejos insatisfeitos,
Um favo de amor,
Mesquinharias e tolices,
Egoísmo vil.
Quem me poderá livrar
Desta carga que pesa
Sobre meus ombros
Como um fardo de séculos?
Só o Senhor é Deus.
Só Tu, Deus encarnado,
Podes compreender a minha angústia.
É por isso que busco o teu favor.
Não me decepciones.
Era pequeno e já escutava
O teu povo cantar:
Tem piedade de nós, Senhor!
Não me esqueci disso,
Ainda que a vida me tenha
Trapaceado tantas vezes
A ponto de eu duvidar de ti,
De mim mesmo,
Do amor que tudo ama.
Hoje lembrei deste canto:
Miserere nobis!
Miserere nobis!
Paz na terra
E entre aqueles a quem amas
Com o teu amor maior.
Bibliografia
CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002.
DANIELI, Giuseppe. Mateus. São Paulo: Paulinas, 1983.
MOSCONI, Luís. O Evangelho segundo Mateus. 2.ed. Belo Horizonte: CEBI, 1990.