Prédica: Marcos 3.20-35
Leituras: Gênesis 3.8-15 e 2 Coríntios 4.13 – 5.1
Autoria: Adélcio Kronbauer
Data Litúrgica: 2° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/06/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Jesus: insano e amigo de Belzebu?
1. Introdução
Michel Clévenot escreve em Enfoques Materialistas da Bíblia: “Por que ler hoje em dia o evangelho? Por meu lado, eu diria: porque o texto produz em mim um certo efeito. Mais efeito, eu confesso, do que qualquer outro texto no mundo” (CLÉVENOT, 1979, p. 93). Que efeitos serão suscitados em quem deve produzir uma mensagem? Que efeitos surgirão na vida de quem estiver na condição de ouvinte? O evangelista “lança mão”, segundo o mesmo autor, de meios. Quais os meios que serão usados para causar efeitos na vida das pessoas? Causar efeitos é o trabalho da produção textual. Assim como o evangelista intencionalmente causa efeitos na vida das pessoas que leem o seu relato, também quem vai interpretá-lo para uma comunidade terá o trabalho de produzir efeitos em seus ouvintes. Quais e como são tarefas intencionais.
O texto do Evangelho de Marcos é impressionante. É intenso. Possui todos os elementos de um bom roteiro, em especial, a tensão, o conflito.
Não há uma linearidade temática entre as leituras sugeridas. Marcos e Gênesis abordam o juízo sobre determinado pecado. A Segunda Carta aos Coríntios enuncia a esperança última, a superação de todo o sofrimento. Neste caso, seria possível fazer uma ponte entre as leituras no sentido de traçar relações entre pecado e sofrimento e ainda como superá-los. Marcos sugere o perdão e a prática da vontade de Deus. O texto da carta anuncia um reino eterno como forma definitiva de superação, enquanto que no texto de Gênesis o castigo é preponderante.
2. Exegese
Parto da tese de que o Evangelho de Marcos é um texto produzido no início da década de 70. Não é prudente negligenciar os acontecimentos catastróficos ocorridos nesse período histórico, sobretudo a guerra judaica (66-73), que culminou com a destruição do Estado judaico (para mais detalhes, cf. MONTEIRO, [s.d.], on-line).
Clévenot descreve o autor do evangelho como segue:
Em suma, tem-se um pouco a impressão, ao ler o texto grego de Marcos, que estamos ouvindo um judeu que tem dificuldades de falar grego e que tem que levar em consideração o fato de que seus leitores sejam romanos. É como se ouvíssemos hoje um resistente palestino falando francês com trabalhadores emigrados portugueses, senegaleses, turcos, explicando-lhes o significado das palavras, dando as coordenadas dos lugares, etc. (CLÉVENOT, 1979, p. 80).
Nesse tempo, o cristianismo sofre pesada repressão em Roma. As reuniões não contam com estrutura estabelecida, mas de acolhimento improvisado em casas ou em locais onde não poderiam facilmente ser localizados. A prática é clandestina aos olhos das autoridades do Império Romano. O cristianismo é considerado um crime. O historiador Tácito, que relata as torturas que eles sofriam, denomina o cristianismo de “detestável superstição”.1
Clévenot afirma que metade da população de Roma constituía-se de escravos e que o uso de sua mão de obra era a base da economia romana. Isso, segundo ele, prejudica avanços tecnológicos e arruína os pequenos produtores. Roma é uma cidade insalubre, acometida de vez em quando por incêndios de grandes proporções (12 em seis anos).
A cidade é realmente o símbolo do Império: Palácio com um luxo inesquecível e bairros miseráveis, população cosmopolita vinda dos quatro cantos do mundo; ela é parasita chupando as riquezas do universo sem poder dar trabalho a seus filhos. Nela se concentram todas as contradições do imperialismo escravagista (CLÉVENOT, 1979, p. 74).
O autor ilustra essa frase citando Apocalipse 18, onde se anuncia a esperança de que um dia ocorrerá a ruína da grande cidade (nesse texto Roma é chamada de Babilônia).
A comunidade cristã em Roma é formada por pessoas de diferentes origens étnicas. Os nomes citados em Romanos 16 e em outras cartas nos dão uma ideia dessa diversidade. Há entre elas gente de classes sociais distintas, porém a maioria era das classes mais pobres. Existe a história de que o neto do imperador Vespasiano, Flavio Clemente, e sua esposa Flavia Domitila tivessem sido cristãos. Flavio foi executado por Domiciano, e a mulher, exilada. Nesse tempo os cristãos em Roma já eram identificados como um grupo distinto do judaísmo, apesar de permanecer uma certa confusão a respeito. Na tradição católica, Flavia Domitila é considerada uma santa, uma mártir.
O texto de Marcos inaugura uma nova forma literária no meio cristão: a narrativa. Não se trata de um discurso, mas de um relato. Relatos têm maior poder de atração do que ensinamentos por meio de discursos. O relato tem a capacidade de manter viva a memória de fatos já ocorridos, mas que imprimem uma determinada forma de entender o presente dentro do qual ocorre o relato ou a leitura do mesmo. O evangelho é uma forma literária, um relato, cuja intensão é elucidar quem é Jesus. O relato tem o poder de propagar, de se propagar.
Os dois episódios incluídos na perícope estão bem alinhados ao objetivo geral do relato. Jesus é acusado pelos parentes de estar fora de si e pelos fariseus de expulsar demônios em nome de Belzebu. O conflito está bem estabelecido: eis o poder do relato de propagar-se. Relatos sem conflitos, sem problemática bem definidas perdem essa força. Um bom relato também aponta para soluções do conflito. O conflito estabelecido em um relato é o mecanismo de compreensão da realidade passada e presente e a possibilidade de apontar para soluções. No conflito com os parentes e com os fariseus, Jesus é revelado, a identidade de Jesus está sendo revelada. Mãe, irmãos e irmãs de Jesus são as pessoas que fazem a vontade de Deus. Jesus resgata as pessoas, cura e liberta em nome de Deus, não em nome de forças malignas, dúbias. Não crer nisso é um erro e um pecado fatal. Quando se fala em Jesus, a pessoa cristã se define em conhecê-lo como Filho de Deus.
Três temas para pensar: fazer a vontade de Deus, pecar contra o Espírito Santo e expulsar demônios. Se a ideia for ressaltar a questão da expulsão de demônios, recomendo ler, de Paul Tillich, o artigo Curai Enfermos; Expulsai Demônios2 e o artigo de Uwe Wegner, Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos3.
3. Meditação
Fazer a vontade de Deus. É uma utopia imaginar que a vontade de Deus seja realizada no mundo de forma plena. Transformações profundas deveriam ocorrer nas relações de produção, distribuição de bens necessários para a vida. Como nos relacionamos uns com os outros e com a criação, estamos mais próximos do maligno do que da vontade de Deus. A humanidade está impregnada com vontades e desejos de espíritos enganadores, que iludem e absorvem a pessoa, roubando-lhe a condição do ser, “coisificando-a”. A plenitude da vontade de Deus, a justiça de seu Reino pode ser realizada em parte e de forma precária no mundo. Mas não devemos perder a oportunidade de criar situações em meio aos conflitos da vida que se revertam em relatos de experiências que tenham o poder de propagar o fato de sermos “mães, irmãos e irmãs de Jesus”.
Pecado sem perdão. Tentar confundir Jesus, atribuindo-lhe o título de aliado do mal é o pecado para o qual não está previsto o perdão, a restauração. Jesus é Deus, ele realiza a obra em nome do Espírito de Deus. Jesus quer curar o ser, tem o poder de curar, mas existe um conflito estabelecido no sentido de determinar onde está o mal. O evangelho é um relato que localiza o mal a ser curado. O evangelho originalmente foi escrito para que uma comunidade pudesse ver com clareza o mal, para identificar o mal. Ao lermos o evangelho hoje, vemos o mal que nos afeta? A leitura do evangelho tem sido uma luz para dentro dos conflitos atuais no sentido de encaminhar cura e libertação? Tenho a impressão de que há forças trazendo distorções e, mesmo que sejam relatadas libertações e curas, cada vez mais vemos doenças e escravidão. Vejo muitas pessoas “fora de si”, com uma espiritualidade que apresenta traços patológicos. Urge fazermos relatos de curas e libertação que ocorrem em nossas vidas, a partir de uma postura de transparência e lealdade com a justiça do reino de Deus.
Expulsar demônios. Há uma lacuna em relação a esse tema na maioria das comunidades evangélicas de confissão luterana. Praticamente não se fala a respeito. Existe um tabu sobre isso. Paul Tillich inicia seu artigo, antes citado, dizendo:
A primeira dificuldade que experimentamos quando Jesus nos envia adiante dele e nos dá o poder de curar é que muitos vão dizer que não necessitam de cura. E se nos chegamos a eles com a pretensão de expulsar os demônios que lhes governam as vidas, riem-se de nós e logo dizem que nós é que temos demônios, tal qual disseram a Jesus (TILLICH, 1973, p. 23).
É necessário dizer que não se trata de questões mágicas:
O ministro não possui poderes mágicos de curar. Nem mesmo a administração da liturgia e dos sacramentos lhe confere tal poder. Um poder assim está incluso na vocação da Igreja que possui o poder dado a ela, a Igreja, para libertar e expulsar demônios (TILLICH, 1973, p. 24).
E Tillich alerta:
Abusa-se do nome de Cristo quando é empregado em fórmulas mágicas. No entanto, as palavras de nosso texto mantêm a sua validade. Pertencem à mensagem de Cristo e nos falam de algo que é de Cristo, o poder de vencer as forças demoníacas que controlam as nossas vidas, corpo e mente. E creio que, de todos os meios para comunicar o Evangelho, este é o mais adequado para os homens de nossa época. Compreende-se isto, porque, em todos os países do mundo, inclusive o nosso (EUA), há um conhecimento dos poderes do mal como jamais houve em séculos anteriores (TILLICH, 1973, p. 24).
Voltamos à questão já mencionada antes: O evangelho (relato) nos faz ver o mal da nossa época, os demônios do nosso tempo?
Lutero usava com frequência o termo Diabo. Ele se sentia com frequência tentado. Já Bultmann realizou uma obra teológica no sentido de demitologização do Novo Testamento, que influenciou profundamente o pensamento teológico luterano, imprimindo um pensamento racional, construído sobre a corrente filosófica do idealismo. O pensamento de Bultmann inibiu a abordagem desse assunto. Precisamos recuperar a temática na igreja, pois faz parte de nossa missão: Tendo Jesus convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, e para efetuarem curas (Lc 9.1). Evidentemente devemos estar baseados em conhecimentos mais profundos sobre o que são os demônios, Diabo, Satanás, Belzebu, besta, espíritos maus, como isso é apresentado nas Sagradas Escrituras e na história.
4. Imagens para a prédica
Uma fábula de Esopo4 (“O gato, o Galo e o Ratinho”) permite perceber como um julgamento equivocado da realidade pode resultar em soluções catastróficas. O ratinho foi salvo pela visão apurada da mãe, porque ela o ajudou a perceber onde estava o verdadeiro perigo.
Com a leitura bíblica pode acontecer algo semelhante. Em que sentido o conflito apresentado no texto sugerido nos ajuda a entender nossa realidade? O que o texto mostra sobre nossa realidade? Há algo a ser curado, sanado? A vontade de Deus é realizada? Como poderia ser realizada? Onde estão os verdadeiros perigos do nosso tempo que são trazidos à tona com o relato do evangelho? Esses caminhos levam a que situação? Qual o caminho a ser trilhado para a cura do ser, para que o ser seja libertado do mal que o aflige?
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia
Bondoso, misericordioso Deus, criador da vida! Capacita-nos com teu Santo Espírito para vivermos segundo a tua vontade, tornando-nos mãe, irmãos e irmãs de Jesus, assim como já tens feito muitas vezes no passado e no presente. Liberta-nos do mal, cura o nosso ser. Dá-nos olhos para ver as aflições que existem ao nosso redor e ouvidos para ouvir as lamentações, assim como tu o fazes. Concede-nos o dom de curar, pois cremos em ti. Amém.
Notas:
1 Sobre esse historiador e seus relatos, veja: <https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert2003_ANGELOZZI_Gilberto_Aparecido-S.pdf>.
2 Disponível em: <http://www.koinonia.org.br/protestantes/uploads/novidades/Suplemento-CEI_05.pdf>, p. 23-27.
3 Disponível em: <http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/vol4302_2003/et2003-2uweg.pdf> .
4 Disponível em: <https://metaforas.com.br/infantis/2004-08-31/o-gato-o-galo-e-o-ratinho.htm>.
Bibliografia
CLÉVENOT, Michel. Enfoques Materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MONTEIRO, João Gouveia. Flávio Josefo e o cerco romano a Jotapata (67 d.C.). Disponível em: <https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/34759/1/SaberesePoderesvol.II_artigo9.pdf>.
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