Prédica: Marcos 11.1-11
Leituras: Salmo 118.1-2,19-29 e Filipenses 2.5-11
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Domingo de Ramos/Domingo da Paixão
Data da Pregação: 29/03/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX
Bendito o que vem em nome do Senhor!
1. Introdução
Entre o texto de prédica e os dois outros textos para este domingo há uma relação sob enfoques diferentes. Enquanto o Sl 118 convida ao louvor e à gratidão, referindo-se à ação libertadora de Deus – pedra angular rejeitada pelos construtores; o dia que o Senhor fez; bendito o que vem em nome do Senhor –, Fp 2 descreve a caminhada salvífica do Cristo que deixa sua condição divina, assume a condição humana, segue o caminho para a cruz e, ressurreto, é exaltado à condição divina. Assim, ambos os textos iluminam o relato do evangelho sob ângulos diversos: por um lado, a conclamação ao louvor, assim como o povo aclama Jesus como o Salvador que vem; por outro, a exaltação do caminho salvífico seguido por Jesus, para o qual o relato de Mc 11, a entrada triunfal em Jerusalém, aponta. Assim, além do texto-base para a pregação, os outros dois textos são uma boa complementação e deveriam ser aproveitados como leituras. O Salmo 118.1- 2,19-29 poderia ser integrado na liturgia de entrada.
O relato da entrada triunfal em Jerusalém é transmitido pelos quatro evangelistas: nos sinóticos, no final do relato (especialmente em Mateus e Marcos), como introdução aos acontecimentos finais da atuação de Jesus e sua crucificação; em João, que fala de diversas idas de Jesus a Jerusalém, isso se dá também em conexão com a última, porém antes dos grandes discursos de despedida.
A perícope de Mc 11.1-11 foi analisada no PL 33; os textos paralelos de Mt 21.1-11, no PL 38 e Lc 19.28-40, no PL 34 e 37.
2. Exegese
O texto está claramente estruturado. Compõe-se de duas partes: na primeira (v. 1-7), é descrito como é providenciado um animal para a entrada na cidade; a segunda parte (v. 8-11) relata essa entrada na cidade. Como moldura para o todo encontram-se, no início e no final, as indicações geográficas, com destaque para Jerusalém nos dois momentos. A menção do templo, no v. 11, serve como ponte para os relatos seguintes. Os v. 1-7 compõem-se de dois elementos que se correspondem integralmente: à ordem dada por Jesus corresponde exatamente o cumprimento da mesma, ou seja, tudo se dá assim como Jesus o previra. Na segunda parte, há os gestos de saudação (v. 8) e a saudação propriamente dita (v. 9s), que está estruturada de forma paralela e emoldurada pela aclamação “Hosana”.
Quanto às indicações geográficas, a menos conhecida é Betfagé. Além da menção aqui (e nos textos paralelos), não aparece em outra passagem dos evangelhos. Em contrapartida, Betânia, Monte das Oliveiras, Jerusalém têm grande destaque em todos os relatos dos evangelhos. Em Betânia, Jesus encontra-se seguidamente (Mt 26.6; Lc 24.50; Jo 1.28; 12.1); é lá que moram Maria, Marta e Lázaro. É o local de recolhimento de Jesus (v. 11; veja também Mt 21.17; 26.6; Mc 14.3). O Monte das Oliveiras, a leste de Jerusalém, já é mencionado no Antigo Testamento como sendo local de oração (2 Sm 15.32). Segundo Zc 14.4 (cf. também Ez 11.23), Deus se manifestará no dia do juízo nesse monte. Já Jerusalém, a cidade do templo, é o centro religioso e político, sede do sinédrio. Apenas uma vez (3.8), Marcos menciona Jerusalém sem qualquer observação. No mais (3.22; 7.1), vem sempre em conexão com escribas ou fariseus, de maneira que Jerusalém é o local dos adversários de Jesus que planejam e consolidam o plano de matá-lo (10.32ss; 14.43). Portanto já as simples indicações geográficas apontam para o caráter messiânico do texto.
Esse caráter é destacado pelo cerne do relato – preparação para a entrada com busca do jumento; entrada e aclamação – e pela indicação no final em relação ao templo. A cena toda desemboca no templo, onde Jesus observa tudo – não como turista deslumbrado, mas como quem percebe toda a deturpação do mesmo. Essa menção é, pois, o elo para com a cena que ocorre no dia seguinte (11.15-19). No entanto, diferentemente de Mateus e Lucas, que relatam imediatamente em conexão com a entrada triunfal em Jerusalém a ida ao templo e a expulsão dos mercadores, em Marcos o cortejo triunfal acontece fora, às portas da cidade. Assim, segundo Marcos, a chegada de Jesus a Jerusalém é, de fato, a ida ao templo. E o fato de separar essa chegada e a intervenção no burburinho do tempo em dias distintos dá a esse relato da chegada à cidade um caráter de ação simbólica frente à questão da vinda do Messias. Contrariamente à expectativa zelote, que espera por um messias guerreiro, que expulsará os romanos e restaurará o reino de Davi, Jesus expressa aqui que, segundo a vontade de Deus, o Messias é o humilde príncipe da paz. Além disso, separando a chegada à cidade da intervenção no tempo em momentos distintos, é destacado no relato de Marcos que o que importa não é a conquista da cidade como um general vencedor, mas a restauração correta na relação com Deus, simbolizada no templo.
Vistos aspectos do texto a partir da moldura com as indicações geográficas, vejamos as duas cenas. V.1b-7 descrevem as providências para a entrada na cidade. A instrução de Jesus aos discípulos para providenciar um jumento, que está amarrado, tem como pano de fundo Gn 49.11 e Zc 9.9 (mesmo que essa passagem não seja citada literalmente, como em Mt 21.5). A passagem de Zacarias bem como outras manifestações rabínicas evidenciam que o jumento é considerado o animal sobre o qual vem montado o Messias. E o fato de ser um animal, sobre o qual ninguém ainda montara, qualifica-o ainda mais para ser montaria do Messias. Além disso, a pureza, o fato de não ter sido usado para outra finalidade, é um pressuposto, no judaísmo, para fins religiosos e cúlticos. Novo caráter messiânico transparece na resposta que os discípulos devem dar diante do protesto das pessoas ao desamarrar o jumento: “O Senhor (Kyrios) precisa dele”. Em nenhuma outra passagem em Marcos, Jesus é chamado de Kyrios. Mas a comunidade pós-pascal destaca com esse termo que Jesus é esse Messias, que vem em nome do Kyrios (v. 9). Além disso, a expressão “logo o mandará de volta para aqui” garante que o direito à propriedade é mantido. Por outro lado, a justiça, bem como a humildade e simplicidade desse Messias evidenciam-se exatamente no fato de que ele apenas toma o jumento emprestado.
Instrução de Jesus aos discípulos (v. 2-3) e execução da tarefa dada (v. 4-6) coincidem integralmente (cf. Mc 14.13-16). Nisso se evidencia, por um lado, que Jesus se atém à vontade de Deus, expressa na Escritura em relação ao Messias, e, por outro lado, que Deus mesmo conduz a história e que as pessoas agem segundo a vontade de Deus.
Providenciado o animal e levado até Jesus, os discípulos colocam suas capas sobre o animal em forma de cela. Esse gesto dos discípulos motiva os de- mais acompanhantes a estender suas capas, respectivamente ramos pelo caminho por onde Jesus segue a partir do Monte das Oliveiras em direção à cidade. Com referência a 1Rs 1.38-40, 2Rs 9.13, a cena lembra a entronização de um rei. Isso também é destacado pela aclamação por parte do povo que o acompanha. Com base no Sl 118.25s, que contém elementos de uma liturgia de entrada no templo, Jesus é aclamado como aquele que “vem em nome do Senhor”, respectivamente que com ele vem “o reino de Davi, nosso pai”. Emoldurando essas declarações, encontra-se a aclamação Hosana, respectivamente “Hosana nas alturas”. Originalmente, Hosana é um grito por socorro: Deus, salva-nos! Mas com o tempo passou a ser uma aclamação, um grito de louvor. Grito por socorro que se transformou em exclamação de louvor, porque agora está se cumprindo a esperança messiânica. Assim como está estruturado, pode-se supor que Marcos tenha imaginado uma sequência litúrgica em que os que precedem e os que seguem aclamam em responsório com Hosana, intercalado pelas declarações messiânicas: “Bendito o que vem em nome do Senhor” e “Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai”.
Portanto o povo que acompanha Jesus e que o saúda com Hosana expressa com essas aclamações a esperança de que se cumpra agora o que ele anunciara, ou seja, a vinda do reino de Deus. Esse reino é caracterizado como o “reino de Davi, nosso pai”. Essa expressão, diferentemente de Mt 21.9, que fala em “ilho de Davi”, surpreende, porque, na tradição judaica, “pais” são os patriarcas, não o rei Davi. O que se espera é a restauração do reino de Davi. Portanto essa expressão é criação tipicamente cristã. Além disso, Marcos não menciona o título de rei; isso fica preservado para o relato da crucificação (15.26). Ali se revela a sua verdadeira dignidade real.
Diferentemente de Mateus (21.10), a chegada à cidade é totalmente discreta. Não há menção alguma de reação do povo da cidade ou das autoridades. Isso evidencia, por um lado, a ideia de “segredo messiânico” que Marcos desenvolve ao longo de seu relato; por outro lado, a discrição nesse momento serve como preparação para o definitivo confronto em torno da dignidade real que se dá no processo de Jesus. Portanto o título que normalmente é dado a essa perícope (entrada triunfal em Jerusalém) vale mais para as versões de Mateus e João. Em Marcos, caberia melhor o título: A chegada a Jerusalém.
3. Meditação
O relato de Marcos apresenta alguns aspectos surpreendentes: a) coincidência entre a orientação para a busca do jumento e a execução da ordem – acontece exatamente assim como Jesus ordenara; b) grande alarde por parte de quem acompanha Jesus com expectativa de acontecimento extraordinário e resultado nulo, nada acontece; c) o cortejo e a aclamação ocorrem fora da cidade, enquanto a cidade nem toma conhecimento do ocorrido. Em suma, o relato dá a impressão de que iria ser algo bem maior do que efetivamente foi.
Além disso, o texto apresenta uma série de contradições: há diferentes referências messiânicas ao longo do texto – indicações geográficas (Monte das Oliveiras, Betânia); o jumento, lembrando Zc 9.9; a aclamação “bendito o que vem em nome do Senhor”, expressando a expectativa do povo em relação ao Messias que instaurará o reino de Deus. Porém a cidade não toma conhecimento do acontecimento extraordinário; as autoridades não intervêm, e aquele que é aclamado como quem traz o “reino de nosso pai Davi” é aquele que vai para a cruz.
Assim, esses aspectos surpreendentes e essas contradições destacam um aspecto fundamental do texto. O que vem em nome do Senhor é um Messias às avessas. Ele traz o reino de Deus, porém de forma contrária às nossas expectativas – não com o poder das armas, com pompa e circunstância, mas na simplicidade, na doação, na entrega. E isso com toda a aparente surpresa e contradição é destacado pela descrição do relato: a opção pelo jumento e a ida direto ao templo. Porque é aquilo que o templo representa – presença de Deus, possibilidade de encontro com Deus – que, em última análise, interessa e é o que Jesus significa: a relação com Deus na e através de sua pessoa.
Mesmo que os que acompanham Jesus e o saúdam como “aquele que vem em nome do Senhor” talvez não tenham entendido direito essa narrativa, o início do relato da Paixão mostra justamente, mesmo que subcontrário, a soberania de Jesus, o Messias: tudo acontece conforme ele prevê e determina; o cortejo “triunfal” às avessas; a ida ao templo e a sua retirada da cidade que não representa a presença de Deus. Portanto o caráter triunfal da chegada a Jerusalém evidencia-se às avessas: na morte que é vencida pela ressurreição. Assim, esse relato da chegada a Jerusalém é a introdução ao relato que tem seu desfecho no testemunho da ressurreição e que oferece a compreensão correta para a saudação: “Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai!”
Por causa do relato paralelo em Jo 12.12-19, em que consta: “numerosa multidão que viera à festa ... tomou ramos de palmeira e saiu ao seu encontro”, este domingo recebeu o nome de Domingo de Ramos. Na versão de Marcos, não se fala em tais ramos. Por isso, com base nesta narrativa que dá início ao relato da Paixão e que serve como texto-base para este domingo, a outra designação para este domingo parece ser mais apropriada: Domingo da Paixão. Ela nos ajuda a ver esse relato da chegada a Jerusalém com olhar para o relato da Paixão que segue, respectivamente a partir desse relato que culmina com o testemunho da ressurreição e que, assim, nos dá a compreensão correta desse Jesus bendito que vem em nome do Senhor.
4. Imagens para a prédica
Com que expectativas nós vamos ao encontro de Deus? O que esperamos de Deus para a nossa vida? Um milagre que soluciona todos os nossos problemas
– de relacionamento, de saúde, de emprego, de dinheiro? É possível que entre os que seguiam com Jesus rumo a Jerusalém houvesse pessoas que esperavam algo semelhante em relação a ele. Nesse sentido, o final desse relato e o desfecho da estada em Jerusalém com a crucificação foram uma decepção. Mas justamente a mensagem da Páscoa não é a promessa de que nós somos libertados milagrosamente de todas as nossas dificuldades, mas que Deus, em Jesus, desce até a nossa mais profunda dificuldade, tristeza e solidão e nos envolve com sua graça. E envoltos por sua graça, temos a força e a orientação para seguir o caminho com ele, enfrentando todos os nossos problemas com a força da sua presença.
A chegada de Jesus a Jerusalém culmina na ida ao templo. Lá ele observa tudo o que acontece e em seguida se retira. No dia seguinte, ele retorna ao templo e “faz uma limpa” porque, em vez de ser casa de oração para todas as nações, se transformara em covil de salteadores (11.17). A igreja, cada comunidade local, é espaço de comunhão com Deus, desse Deus que desce para dentro de nossa realidade humana. Nossa igreja, nossa comunidade, é um espaço assim “para todas as nações”? O que será oferecido ao longo desta Semana Santa, que inicia neste domingo, para que pessoas possam perceber a presença e receber o conforto daquele “que vem em nome do Senhor”?
5. Subsídios litúrgicos
Como já indicado na introdução, o Sl 118 pode ser um bom subsídio litúrgico. Sugiro que se leiam os v.1-6 e 19-29, logo após a saudação e o cântico de entrada.
Como é o início da Semana Santa, ponto culminante da época da Quaresma, período de penitência, não deveria faltar nesta celebração a oração do Kyrie, implorando a piedade de Deus por quem sofre.
Bibliografia
GNILKA, Joachim. Das Evangelium nach Markus. Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament, vol. II.2. Zürich: Benzinger; Neukirchen- Vluyn: Neukirchener Verlag, 1979.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament, vol. II, 8. ed. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1980.
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