Prédica: Lucas 13.1-9
Leituras: Isaías 55.1-9 e 1 Coríntios 10.1-13
Autor: Fernando Henn
Data Litúrgica: 3º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 03/03/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
1. Introdução
O terceiro domingo na Quaresma convida a refletir sobre o tema arrependimento (metanoia) de um jeito muito particular. A mudança que o evangelho quer provocar em nossa vida inclui uma mudança no modo como interpretamos os acontecimentos em nossa vida e à nossa volta.
Como base da reflexão, temos o texto de Lucas 13.1-9, o qual apresenta o relato de duas tragédias em que pessoas morreram. Na tentativa de encontrar respostas, havia quem acreditasse que aquelas que sofreram morte violenta eram mais pecadoras do que as outras que permaneciam vivas. Jesus, porém, afirma que isso não é verdade. E diz: “Se vocês não se arrependerem, vocês vão perecer também” (v. 5).
O texto de Isaías 55.1-9 parece complementar o texto de Lucas ao afirmar que nós, pessoas humanas, devemos nos colocar em nosso devido lugar na relação com Deus. Ser humano pensa e julga como ser humano. Só o próprio Deus julga como Deus: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o SENHOR” (v. 8).
O texto de 1 Coríntios é um alerta àquelas pessoas muito seguras de si e que se autojustificam perante Deus e perante outras pessoas. Cito o versículo: “Aquele, pois, que pensa estar de pé, veja que não caia”.
2. Exegese
V. 1-3 – “Os galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam.” Trata-se da citação de um episódio em que Pilatos, conhecido por sua violência, teria assassinado galileus no momento em que estavam abatendo animais que seriam oferecidos como sacrifício no Templo de Jerusalém. Não há certeza se a morte deles teria acontecido na parte interna ou externa do templo. Os interlocutores de Jesus, possivelmente fariseus, desejam ouvir sua opinião sobre esse episódio. Os galileus mortos poderiam ser parte do grupo dos zelotes, um movimento revolucionário surgido no ano 6 na Galileia, que defendia a luta armada contra a ocupação romana. Jesus afirma que aqueles que foram mortos por Pilatos não eram mais pecadores do que qualquer outro galileu (v. 3). Ele faz isso para “repudiar a teoria popular, generalizada em Israel, de que o sofrimento sempre era consequência do pecado” (Champlin, p.135). Anula-se o argumento de que, quanto mais trágica a morte, maior o pecado que a pessoa carregava (v. 2-3). No entanto, Jesus afirma que, se não houver arrependimento, todos vão perecer do mesmo modo. Quer dizer, não se trata de julgar quem tem mais ou menos pecados, mas interpretar tal acontecimento como um chamado à conversão. Esse episódio é exclusivo de Lucas. Não há outro relato histórico, nem mesmo do historiador Josefo, que registre esse acontecimento.
V. 4-5 – Relata um episódio envolvendo a torre de Siloé, que desabou matando dezoito pessoas. Esse relato é também citado exclusivamente em Lucas. Conforme Champlin, “a torre de Siloé fazia parte das fortificações de Jerusalém, próximo da importante fonte e reservatório do mesmo nome”. Exegetas supõem que essa torre teria vindo abaixo na época em que Pilatos construía um aqueduto. Nessa citação, Jesus estende a reflexão já iniciada anteriormente a um grupo maior de pessoas, não apenas aos galileus. Agora ele fala sobre os habitantes de Jerusalém. Ele afirma que as pessoas que morreram nessa tragédia não eram mais pecadoras do que o restante da população de Jerusalém. E, assim como no versículo 5, alerta para o fato de que, se não houver arrependimento (metanoia), todos vão perecer do mesmo jeito.
V. 6-9 – Relata a parábola de uma figueira, que por três anos foi visitada sem que nela fossem encontrados frutos. Esses três anos fazem referência ao tempo de ministério de Jesus desde o seu batismo. A metáfora faz referência ao fato de que, desde o início da pregação de Jesus, Israel não havia produzido frutos dignos de arrependimento. Aparece uma perspectiva de juízo muito forte no versículo 7 ao sugerir que essa figueira, que não produz frutos, poderia ser cortada por estar ocupando inutilmente a terra. Já nos v. 8-9, surge a perspectiva da graça de Deus. É oferecida mais uma chance à figueira, mais uma oportunidade para Israel arrepender-se e produzir bons frutos. Para isso é necessário que haja arrependimento, conversão. Nesse ponto, unem-se as temáticas dos versículos 1-5 e 6-9.
3. Meditação
Quando assistimos a um ato de violência na distante periferia de uma grande cidade, é muito comum o seguinte pensamento: “Provavelmente essa pessoa deve ter se envolvido com drogas”, numa nítida interpretação a partir do critério “colheu o que plantou” ou ainda “isso não acontece comigo porque sou uma pessoa boa”. Já quando o ato de violência acontece com uma pessoa de nosso convívio ou num ambiente que nos é familiar ou comum, entendemos que nada pode justificar tal ato de violência. Surge a pergunta: “Por que essa pessoa?” Isso não é justo! Chega-se a questionar a justiça de Deus.
Vivemos um tempo em que muitas pessoas falam com muita “autoridade” sobre as outras. “Cada um colhe o que planta” é uma afirmação recorrente em rodas de conversa. Numa outra formulação, no facebook, não é incomum haver o compartilhamento da seguinte frase: “Porque Deus é bom, deixa-nos plantar o que quisermos; porque Deus é justo, nós colhemos o que plantamos”. São afirmações aparentemente cheias de razão, mas devemos ter muito cuidado ao pronunciá-las. Não apenas refletir a quem dizemos isso, mas principalmente o que estamos querendo dizer quando as falamos.
O absurdo dessas afirmações, do ponto de vista de sua mensagem, é perceptível se imaginarmos essa frase sendo ouvida por um pai ou uma mãe que perderam seu filho morto por um motorista embriagado. Quando individualizamos tal afirmação, somos obrigados a reconhecer que não colhemos apenas o que plantamos; colhemos também aquilo que as outras pessoas plantam. Ou seja, não basta eu cuidar do meu jardim; é necessário que a minha vizinhança também o faça. Fazendo um gancho com o texto de Lucas, podemos afirmar que o filho morto por um motorista embriagado ou sua família não seriam mais pecadores do que qualquer outro filho ou família. Por outro lado, o alerta de Jesus “Se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” pode ser entendido como um alerta: se não houver uma conscientização e mudança de comportamento no trânsito, mais vidas serão ceifadas. E a próxima pode ser a sua ou de um familiar seu. Lembro de um trecho do texto de 1 Coríntios, que é uma das leituras, quando afirma: “Aquele que pensa estar de pé, cuidado para que não caia”. Voltando à imagem do “cada um colhe o que planta”, não pense que teu jardim está a salvo das ervas daninhas que povoam o jardim do vizinho. Cuida para que as ervas daninhas que estão no teu jardim não contaminem o jardim do teu vizinho.
A partir dessa reflexão, acredito que o texto é uma grande oportunidade para refletirmos sobre o conceito de karma, que, de forma crescente, influencia um número cada vez maior de pessoas. É conhecida a afirmação: se alguém sofre, está pagando suas dívidas desta ou de outra vida; se alguém está bem, está usufruindo de suas boas ações nesta ou em outra vida. Não encontramos em Jesus Cristo embasamento para tal pensamento. Jesus, quando afirma que os outros galileus e habitantes de Jerusalém que morreram não eram mais pecadores do que os outros, deixa claro que não aceita a ideia de recompensa do modo como é pregado pelo espiritismo e outras tradições religiosas. Consigo imaginar Jesus afirmando também o contrário: vocês acham que são melhores do que os outros porque conseguiram vencer dentro do sistema? Vocês simplesmente conseguiram adaptar-se a ele e tiveram boas oportunidades.
O perigo, quando nos deixamos levar pelo senso comum, é acreditar na falácia de que de fato cada um colhe o que planta e que se estou bem é porque plantei coisas boas e se estou mal é porque plantei coisas más. Ignora-se que a sociedade tem um desenvolvimento histórico, que as injustiças e a manipulação dos meios econômicos e de comunicação ainda estão presentes e que a liberdade de escolha que temos é muito relativa e ilusória.
Por outro lado, não seria correto afirmar que as pessoas não têm responsabilidade por seus atos. Isso também seria errado. O evangelho chama-nos a produzir bons frutos. E para isso Deus sempre está disposto a nos dar uma segunda chance. Quantas pessoas afirmam que uma doença ou a proximidade da morte fizeram-nas rever seu modo de viver e fizeram uma avaliação sobre os frutos que estão produzindo com sua vida?
Seria interessante se todos nós pudéssemos nos perguntar sobre os frutos que estamos produzindo a partir da fé. Que frutos a comunidade, a igreja está produzindo? O que Jesus fala sobre a figueira vale também para a igreja. Se a igreja não produzir em seu meio frutos de uma vivência do evangelho, quem sabe vai chegar o dia em que deixará de existir.
4. Imagens para a prédica
Podemos trabalhar o texto de diferentes formas, com diferentes ênfases. Tenho a impressão de que poderíamos inclusive dividir o texto em dois e aproveitá-lo para duas pregações.
a) Meditando os v. 1-5: Pode-se trabalhar o texto a partir de ditos populares: “Cada um colhe o que planta”, “Porque Deus é bom, deixa-nos plantar o que quisermos; porque Deus é justo, nós colhemos o que plantamos”, refletindo com a comunidade sobre o que estamos de fato dizendo quando afirmamos isso, reforçando que Jesus afirma que não podemos classificar as pessoas em mais ou menos pecadoras de acordo com o que acontece em sua vida.
b) Conversar com a comunidade sobre o conceito de karma a partir da reflexão acima (na meditação). Talvez essas palavras não sejam conhecidas de todas as pessoas, mas os conceitos já estão bastante inseridos no dia a dia da comunidade.
c) Ler o texto como um todo, enfatizando a afirmação de Jesus quando ele diz: “Se vocês todos não se arrependerem, todos perecereis”. Não adianta apenas um ramo da figueira produzir frutos. Esse cumpre sua parte, mas, se não houver a participação de todos os ramos, certamente faltarão os frutos que são tão necessários para que o mundo tenha vida.
d) Uma quarta alternativa seria contar o exemplo de pessoas que viveram situações limítrofes da vida, chegando quase à morte, e sobreviveram. Passaram a interpretar o acontecido como uma segunda chance de Deus a elas e passaram a viver de modo totalmente diferente do que viviam.
5. Subsídios litúrgicos
O Salmo 51 poderia ser lido com a comunidade como forma de confissão de pecados. Quem tem a possibilidade de projetar imagens no culto poderia cantar o Kyrie “Pelas dores deste mundo”, enquanto imagens de dor e sofrimento (acidentes, terremotos, deslizamentos, enchentes) são projetadas. No anúncio da graça, poderiam ser projetadas imagens que retratam o amor concretizando-se em gestos de solidariedade e cura.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo – Volume 2. São Paulo: Editora Hagnos, 2002.
STÖGER, Alois. O Evangelho Segundo Lucas – Primeira Parte. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.