Prédica: Joel 2.1-2, 12-17
Leituras: Mateus 6.1-6, 16-21 e 2 Coríntios 5.20b-6.10
Autor: Joe Marçal G. dos Santos
Data Litúrgica: Quarta-feira de Cinzas
Data da Pregação: 22/02/2012
Proclamar Libertação - Volume: XXXVI
1. Introdução
Joel é conhecido como o profeta que anuncia o Pentecostes (At 2.16-21). No texto previsto para este domingo, ele anuncia o dia de Javé e conclama o povo à conversão com jejuns, choro e pranto. No texto de Mateus, Jesus corrige a piedade farisaica sobre a esmola, a oração e o jejum, deslocando seu foco da pessoa que as pratica para Deus e sua justiça. O texto de Paulo conclama à reconciliação com Deus e a não receber em vão a graça de Deus, o que é exemplificado no ministério do apóstolo.
2. Exegese
A exegese tem associado Joel à tradição profética tardia. Há certo consenso em situar autor e obra no que restou de Israel após a destruição do templo em 586 a.C, a Judá do século IV a.C. Estamos lidando com os humores do contexto pós-exílico babilônico, os mesmos que darão o tônus do judaísmo do primeiro século. Havia então uma tradição profética bem consolidada, que fornece as lentes para Joel interpretar seu tempo e geração, profundamente afetada pela memória do exílio, que, em seu reverso, o contagia com os esforços de afirmação de uma identidade (2.17).
O texto indicado para a prédica representa um fechamento para a primeira das duas partes que estruturam o livro. O motivo que perpassa o livro é a calamidade que assolava então o país: uma invasão de gafanhotos durante uma estiagem. É preciso considerar o grau de gravidade de tal situação para um contexto geograficamente desfavorável à atividade agrícola e ao mesmo tempo dependente dela. São condições bem propícias para o espírito apocalíptico com o qual Joel interpreta o desespero e os efeitos da situação como consumação do juízo divino – sinalizado pelo toque imperativo de uma trombeta (2.1).
O tema do “dia do Senhor” é recorrente. Joel toma de empréstimo essa imagem escatológica em sua interpretação dos eventos que abalam Judá, relatados nos versos anteriores. Os versículos que seguem caracterizarão a invasão de gafanhotos como o exército que executa o juízo de Deus, “um povo grande e poderoso” (2.2), aludindo à memória de invasão e vassalagem do exílio. O ápice dessa leitura de realidade, embora não integre a leitura para a prédica, encontramos no v.11: “O SENHOR levanta a voz diante do seu exército (...) é poderoso quem executa as suas ordens”.
Os v. 1-2, portanto, recriam o cenário de terrível assolação no qual Joel elabora sua interpretação e faz seu anúncio. Nesse contexto, dará início ao chamamento do povo ao arrependimento e à penitência, tomando especialmente imagens da liturgia de penitência como elemento central de seu chamamento profético nos v. 12-17: “Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto” (2.12).
O chamado ao arrependimento expressa-se pela liturgia e, ao mesmo tempo, transcende-a por meio do apelo ao “coração”, que, na antropologia bíblica, é a sede da racionalidade e da vontade humana. Assim, a exigência “de todo o vosso coração” soma-se à imagem de não apenas rasgar as vestes (liturgia), mas “rasgar o coração”. Aquilo que expressa o gesto ritual de rasgar as vestes deveria atingir e expor o “coração”, isto é, atingir a pessoa em sua forma de pensar e agir.
Por sua vez, a culpa do povo é sem precedentes (no texto). Está naturalizada na estiagem e na invasão de gafanhotos. Nessas condições, a esperança depende de um retorno a Deus “de todo o coração”. A resposta a esse apelo, contudo, pode ser bastante ambígua. Por exemplo, tal como no zelo religioso da tradição judaica posterior, que também a seu modo naturaliza a lei divina. Frente a essa atitude, João Batista e Jesus de Nazaré exercerão sua vocação crítica e profética.
No v. 14, o profeta estiliza um discurso sobre o coração humano: “Quem sabe ele (o coração) não se voltará e se arrependerá?”. O efeito dessa conversão é traduzido em imagens do culto. O coração arrependido poderá deixar atrás de si uma bênção, uma oferta de manjares e libação. O modo da pergunta sugere a liberdade e gratuidade de resposta do coração. A exigência de arrependimento é uma possibilidade, cujo efeito imediato são ações de graça.
Nos v. 15-17, o profeta retoma o chamamento do povo para um ato litúrgico solene. O escopo está na imagem de sacerdotes chorando e orando em clamor pela misericórdia de Deus. A mediação sacerdotal protagoniza a própria penitência, colocando sobre esses personagens todo o drama da situação. A oração em destaque levanta um motivo significativo: o prestígio do povo eleito diante do olhar dos outros povos, ecoando na pergunta desses “onde está o seu Deus?”.
A escatologia de Joel vale-se de duas imagens importantes a serem consideradas hoje. Sua visão de um futuro de salvação é caracterizada, primeiro, pela abundância e prosperidade (2.18-27) e, no final do livro, pela restauração de Israel (4.18s). Deus renovará sua aliança “derramando seu Espírito sobre toda a carne” (3.1), introduzindo uma interpretação surpreendente da unção (ato litúrgico) em sua mensagem.
A expectativa messiânica em Joel já tem traços de uma plenitude universal (3.1,3), porém exclui os povos estrangeiros (4.1s). A situação pós-exílica talvez seja ainda uma ferida aberta, instaurando a violência como mediação de justiça compensatória (p. ex., a guerra em 4.9) e reinterpretando o “dia do Senhor” a partir da vingança (4.4,21). Isso tem consequências para o culto e a espiritualidade e coloca a pregação de Joel sob uma ambiguidade significativa, que não podemos ignorar em nossos dias: ao acentuar a exigência radical “de todo o coração” no arrependimento e penitência, Joel promove uma sensibilidade religiosa da culpa e reitera o sacrifício como exigência de relação com Deus – “rasgai vossos corações e não as vossas vestes” (2.13).
Essas considerações motivam a tomar como chave de interpretação pastoral do texto o evangelho indicado para o dia: Mateus 6.1-6, 16-21. Nesse texto, vamos encontrar recomendações de Jesus (Sermão do Monte) que emolduram o ensino da oração (Pai-Nosso) aos discípulos, vinculando a relação com o sagrado ao segredo e à discrição. Para Jesus, a exigência do coração concretiza-se na prática da justiça e torna-se ainda mais radical, porque não se trata de assegurar recompensa e prestígio diante dos outros, mas sim de manter-se na comunhão com o Pai que está no céu. Para uma interpretação evangélica do texto do profeta, que se desloca do esquema sacrificial e afirma a radicalidade do juízo e da graça para a liberdade humana, essa chave de leitura é imprescindível.
3. Meditação
O toque da trombeta emoldura esse texto profético. É uma imagem, porém, que se perde entre os tantos ruídos que fazem nosso cotidiano. Que paralelo poderíamos fazer? Que fatos apelam hoje ao interesse público de forma massiva e maciça? E que pertinência esses fatos e alarmes têm com nossa realidade mais imediata? Que diferença fazem para o exercício do amor próximo?
Nossa cultura é excepcionalmente comunicacional e plural. Estamos envolvidos em um constante sentimento e ilusão de “assembleia reunida” por meio das tantas redes de informação. Receber uma notícia ou outra difere à medida de nossa relação com a realidade envolvida nos fatos. Além de muitas trombetas e toques diferentes, vivemos sob ameaças que, se bem pensadas, pouco nos dizem respeito. Quantos de nossos medos são secundários? Quantos de nossos sentimentos de culpa são obsoletos?
A mensagem profética é sempre economicamente eficaz, porque é uma mensagem que visa nos desfragmentar. Os profetas criticavam as idolatrias não porque Deus precisava que o defendessem. A crítica profética dirige-se, antes de tudo, ao coração humano fragmentado e dividido conforme seus deuses e desejos mais primários. O monoteísmo é um artefato teológico profético por excelência. Por ser “mono”, opera efetivamente como uma “redução” de custo religioso. Orações, penitências, jejuns têm de ser feitos comedida e eficientemente. Eficiente em relação a uma forma justa de pensar e agir humanamente, focada em um Deus zeloso e misericordioso.
Nessas condições, na espiritualidade da Quaresma, para a qual o texto do profeta Joel é sempre novamente lembrado, e para permanecer no espírito profético, temos que recorrer ao silêncio. Esse talvez seja o alarme mais contundente para nossos dias. Silenciar por um momento, para então perceber onde exatamente ecoa a voz de Deus dizendo: “Convertei-vos a mim de todo o coração”. Possivelmente, vamos nos dar conta de que essa voz murmura e nos interpela desde outros lugares que aqueles em que mais as trombetas da economia, da religião, da política oficiais fazem seus concertos.
Por sua vez, o apelo ao arrependimento tem de ser reinterpretado, tal como faz o profeta. Ele usa da imagem do culto para transcender o culto. Para os profetas, o princípio é o mesmo sempre: se o culto, a religião, a espiritualidade não estão conectados com a justiça, não só de nada valem como põem tudo a perder. Por isso arrependimento é a porta estreita para o reino de Deus, e sua prática tem a ver com o coração mais do que com as vestes.
Contudo, há uma mediação, porque tudo se torna linguagem e resposta de ação de graças. O profeta fala ao coração; “quem sabe deixará uma oferta”. A revitalização de uma espiritualidade passa pelo coração das pessoas. Mais e mais, a religiosidade cresce entre as pessoas, ainda que o senso do IBGE indique aumento de pessoas que se identificam como “não religiosas”. Que trombeta será essa? Que voz sussurra por trás desse dado?
Jesus, quando dá lições de práticas e disciplinas espirituais – a oração, o dízimo e o jejum –, enfatiza o aspecto de segredo na relação com o sagrado. Essa conexão foi perdida pelo cristianismo desde o século III quando se tornou oficial e oficioso. O que fora segredado correu o risco de ser considerado herético ou foi esquecido pelo roldão de cânones. Quantos sopros do Espírito deixamos de perceber? Ora, atentar para uma necessária relação entre algo de segredo quando na relação íntima com o sagrado é um exercício de zelo e cuidado.
Fui visitar uma capela nos arredores da cidade onde vivia. Era uma capela bizantina. Luterano que sou, estava curioso para ver os ícones que a capela trazia. Pois eu sabia que, na Igreja Bizantina, os ícones são elementos do sacramento, tal como, para nós, o pão e o vinho. Imagens que são oradas – nunca consegui entender tal relação com a arte plástica. No portão da capela, encontrei-me com um velho jardineiro. Perguntei, por educação, se podia entrar, já que a porta estava entreaberta. O jardineiro levantou-se e, cumprimentando-me com autoridade e respeito, perguntou o que exatamente eu estava procurando. Contei-lhe de minha curiosidade, e ele disse que não valeria a pena eu entrar, convidando-me para estar na próxima missa que rezariam ali. Passaram-se anos, e eu ainda não voltei lá. Apenas soube, entrementes, que o jardineiro era o pároco.
Qual a recompensa disso? Se nos perguntam “onde está o seu Deus?” , o que temos respondido? Ainda há lugar para a cruz em nossa religião? Ainda há lugar em nossas comunidades para aqueles segredos compartilhados no silêncio, em torno do que comungamos e nos fortalecemos espiritualmente? Ainda somos “monoteístas de todo o coração” ou o temos dividido por tantos deuses quanto os desejos despertados cotidianamente? Apenas diante dessas questões é que “todo o coração” pode ser exposto ao arrependimento. Uma conversão movida não pela culpa e pelo mérito de tê-la sanado, mas tão somente como ação de graças por uma vida divinamente justa e ajustada ao zelo e à misericórdia.
4. Subsídios litúrgicos
A ideia de um silêncio litúrgico, associada ao segredo, permanece sugestiva. O texto de Joel, mais do que apenas incitar a uma determinada “palavra”, é também motivação para a liturgia. Quer dizer, quando Joel diz: “rasgai o coração e não as vestes”, o que isso poderia motivar em nossa liturgia de penitência?
Sabemos que carecemos muito de formas expressivas na liturgia. Somos, em geral, luteranamente comedidos em termos de estética e arquitetura religiosa. Mas se tudo é colocado sobre a “palavra”, o que garante a escuta, que é, antes de tudo, um exercício de sensibilidade? Por isso o silêncio talvez possa ser algo mais apropriado pela comunidade. O vazio solene pode, sim, ser significado, mas não didaticamente “explicado”.
De forma prática, esse silêncio poderia percorrer diferentes momentos do culto: ante a confissão de pecado, antes ou após a leitura do texto, no decorrer da pregação, no final ante a bênção. Para sinalizar o fim desse momento de silêncio, uma palavra ao estilo de aforismo, provérbio ou versículo.
Conforme é construído, esses silêncios litúrgicos podem funcionar como lacunas que a comunidade e cada indivíduo tomam para si e preenchem com sua própria oração mental e pensamento. Evidentemente, uma orientação a esse respeito pode ser dada incentivando a comunidade a valorizar e ofertar a Deus os pensamentos e orações que, mesmo involuntariamente, traz consigo para o culto.
Bibliografia
SCHULTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1992.
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: EST/Sinodal, 1994.