Prédica: Romanos 12.1-8
Leituras: Isaías 51.1-6 e Mateus 16.13-20
Autoria: Walter Altmann
Data Litúrgica: 12° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/08/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV
Não se conformar, mas deixar-se ser transformado
1. Introdução
1.1 O contexto histórico da Epístola aos Romanos
A carta do apóstolo Paulo aos romanos é aquela que mais se aproxima de uma sistematização de sua teologia. Ele a escreve em Cencreia, cidade portuária grega, perto de Corinto, em algum ano da segunda metade da década de 50 depois de Cristo, antes de viajar de volta a Jerusalém, para fazer a entrega da coleta que efetuou nas comunidades que surgiram de sua pregação ou pelas quais passou em sua atuação missionária até então, em benefício dos pobres dentre os santos que vivem em Jerusalém (Rm 15.26). Era um compromisso que ele assumira no concílio de Jerusalém (At 15).
Depois disso Paulo pretendia missionar na Espanha, no extremo oeste do Império Romano, após haver criado comunidades na parte leste do império. Ele passaria então por Roma (Rm 15.24), capital do império, onde já havia comunidade(s) cristã(s), oriunda(s) possivelmente de judeus convertidos à fé cristã e lá residentes, mas entrementes também com membresia gentílica. De forma muito diferente do que planejado, Paulo haveria de chegar a Roma, com o que os Atos dos Apóstolos encerram seu relato, mas jamais haveria de alcançar a Espanha. Ele foi preso ainda em Jerusalém sob a acusação de haver profanado o Templo (At 21.27-29); e posteriormente, acusado de sedição (At 24.5-6), foi enviado a Roma por ter cidadania romana. Preso em Roma por dois anos, haveria de, com toda probabilidade, ser condenado à morte e executado por decapitação, modalidade prevista para os cidadãos romanos.
A essa comunidade cristã em Roma Paulo se apresenta a si e a sua teologia. Contrariamente a outras epístolas, em que Paulo se reporta a situações específicas e concretas, inclusive conflitos, nas comunidades a que se dirige, nessa Paulo faz “simplesmente” uma espécie de balanço de sua atuação apostólica e, por assim dizer, um resumo de sua teologia. Daí sua alta relevância.
(Mais informações, em minha contribuição sobre Romanos 5.1-5, no PL 40, p. 168-170.)
1.2 A importância da Epístola aos Romanos na história da igreja
Desde os tempos da igreja antiga até hoje, a Epístola aos Romanos tem exercido uma influência decisiva em momentos cruciais da história da igreja e do desenvolvimento teológico.
Destaque-se a importância para a Reforma. É amplamente sabido que a chamada “redescoberta do Evangelho” por Lutero se deu a partir da passagem de Romanos 1.17, a partir da qual ele desenvolveu a doutrina da justificação pela fé, pela fé somente, conforme entendimento também de Romanos 3.28. Essa nova compreensão da justificação não só ocasionou uma reviravolta na vida de Lutero, como se constituiu no núcleo central de toda a pregação da Reforma. Já para o fim da vida, em 1546, no Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos, Lutero haveria de escrever: “Esta epístola é, sem dúvida, o escrito mais importante do Novo Testamento e o mais puro evangelho. É digno e merecedor de que o cristão não só o conheça de cor, palavra por palavra, mas também com ela se ocupe diariamente, como pão diário para a alma, pois ela jamais poderá ser lida ou contemplada em demasia” (LUTERO, 2003, p. 129).
Já o Reformado João Calvino escreveu, em 1539, importante comentário à Epístola aos Romanos, em que afirma em seu início que “se porventura conseguirmos atingir uma genuína compreensão desta Epístola, teremos aberto uma amplíssima porta de acesso aos mais profundos tesouros da Escritura” (CALVINO, 2001, p. 23).
É sabido também que a leitura dos textos de Lutero acerca de sua experiência espiritual ao interpretar Romanos foi catalisadora para a própria experiência espiritual de João Wesley, de cuja pregação e atuação veio a surgir o metodismo.
Já no século 20, após a Primeira Guerra Mundial, um comentário à Epístola aos Romanos, neste caso de Karl Barth, em duas edições bastante diferentes uma da outra, de 1919 e 1922, serviu para uma reviravolta fundamental na própria história da Teologia. Barth acentuou a alteridade de Deus, contrapondo sua ação misericordiosa a todo e qualquer projeto do ser humano de se estabelecer ele próprio como seu deus.
2. Considerações exegéticas
O apóstolo Paulo começa o capítulo 12 com uma exortação que introduz os capítulos a seguir, dedicado às consequências práticas para a vida de quem foi justificado pela fé, e isso na comunhão de irmãos e irmãs na fé. Dizer que é uma “ética”, após os capítulos “dogmáticos” de 1 a 8 (e os capítulos 9 a 11 que tratam da relação entre judeus e gentios) é um exagero. O que é correto é reconhecer, nos capítulos iniciais, o caminho da salvação, ficando superado o estado de pecado do ser humano, e isso exclusivamente pela graça de Deus, recebida em fé. À base dessa premissa, o apóstolo dá orientações para a vida de quem chegou à fé, como resposta à ação de Deus. É o sentido da referência às misericórdias de Deus logo no início do v. 1. Como se Paulo dissesse: “Do fato de que vocês são pessoas beneficiadas pelas misericórdias de Deus decorre que vocês agora vivam da maneira a seguir descrita”. Será um “culto [serviço] a Deus em meio ao mundo” (KÄSEMANN, 1974, p. 313).
A seguir, fica realçada a radicalidade dessa nova “postura” de vida. A referência ao “corpo” deve ser entendida no sentido de integralidade da entrega a que o apóstolo exorta. De um lado, não se trata, pois, de uma simples renovação espiritual, no sentido de que se tenha chegado à fé e se passe a louvar a Deus, mas em uma mudança que abarca a pessoa por inteiro. Isso fica realçado também pelo toque antiespiritualizante que pode se depreender da referência a um “culto racional”. Fé cristã não se externa simplesmente em emoções, mas também em raciocínio. Também esse presta culto a Deus, quando calcado na misericórdia recebida na fé. De outro lado, não se pode extrapolar esse sentido, como se o apóstolo estivesse excluindo a dimensão espiritual da vida de fé. A entrega do corpo é ela própria um exercício espiritual.
A referência ao “sacrifício” leva à culminância a exortação à apresentação do “corpo”. Trata-se, realmente, de uma entrega total, não de uma parte ou algo ocasional, vez por outra, em determinadas circunstâncias etc. É total “nosso ser relacionado ao mundo”, “no cotidiano” (KÄSEMANN, 1974, p. 315). Há, naturalmente, a associação ao sacrifício de cordeiros no templo judaico. Mas, no entendimento cristão, esses foram substituídos pelo sacrifício do Cordeiro Jesus de uma vez para sempre. Contudo, o termo “sacrifício” ainda pode ser utilizado, como aqui, para a própria vida em decorrência da fé, expressando sua radicalidade, mas já não é um sacrifício que mata, mas um sacrifício “vivo”, isto é, contínuo, sempre em todas as esferas e momentos da vida. Assim, ele também é “santo e agradável a Deus”, pois desdobra para dentro da realidade do mundo a própria vontade de Deus. (Ainda no entendimento de KÄSEMANN, 1974, [p. 315 e 317], Paulo pode estar aqui empregando, em parte, elementos de uma parênese batismal.)
O v. 2 exemplifica ainda mais claramente a consequência dessa nova vida: uma não conformidade com o estado atual do mundo leva a uma radical transformação do próprio eu, pelo qual a mente, motivada pela fé, se torna capaz de reconhecer qual é, naquela realidade, a vontade de Deus que não coíbe a liberdade, mas é boa e agradável, não é parcial, mas perfeita. Mais uma vez, também desse ângulo, fica claro que se trata de uma transformação radical de todo o ser. “Verdadeiro culto a Deus significa congruência com a vontade de Deus para louvor a ele no pensar, no querer, no agir” (KÄSEMANN, 1974, p. 316).
A partir do v. 3, pelo restante do capítulo 12, mais 13, 14 e até 15.13, o apóstolo Paulo desdobra as premissas teológicas estabelecidas nos v. 1-2 em consequências práticas para a vida. Não o faz de modo legalista, prescrevendo ações específicas para situações determinadas, mas colocando tudo sob o critério formulado em 13.8: A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei. Na perspectiva do amor, há grande liberdade nas escolhas práticas.
Ainda assim, o apóstolo Paulo dá uma série de outras recomendações a considerar. Ele de imediato chama a atenção para o fato de que a vida se desenvolve sempre na relação com outras pessoas e, no caso da pessoa que chegou a crer, em comunhão com outras pessoas que compartilham sua fé. Ela integra um corpo (v. 4) e desse é um membro, um entre vários outros. Logo, cada qual deve pensar com moderação (v. 3) acerca de si, acerca de seu papel nesse corpo. Há um limite de “conveniência” em como pensar de si mesmo, e o limite é dado precisamente pelo alcance dos demais membros. Inclusive a fé não deve ser vista como algo absoluto, também ela tem uma medida (ainda v. 3) e deve se somar à fé de outras pessoas no corpo.
São mencionados vários carismas (dons), sempre com a menção de um determinado espírito em que eles devem ser exercidos. Dentre os carismas é mencionada, em primeiro lugar, a profecia (v. 6), que devemos entender não erroneamente como a previsão de eventos futuros, mas como a própria proclamação do Evangelho da salvação, do qual o apóstolo, já lá no início da carta, disse não se envergonhar (1.16). Logo, esse carisma deve ser exercido “na proporção da fé”, pois é à fé que a proclamação convoca.
Em segundo lugar, é mencionado o ministério. Melhor tradução é a diaconia, isto é, o serviço às pessoas necessitadas, assumido como tarefa com a qual a própria comunidade é incumbida. É um serviço que sem dúvida requer dedicação (v. 7a), desprendimento. Em terceiro lugar, o ensino, a catequese podemos dizer, que deve ocorrer com esmero (v. 7b). Em quarto lugar, o ofício de exortar, que podemos entender como o cuidado pastoral, o qual requer dedicação (v. 8a). Seguem-se, sem grande distinção, a contribuição (doação), dada com liberalidade, entenda-se particularmente às pessoas pobres (v. 8b), o ofício de presidir, na comunidade, que seja com diligência (v. 8c), e a misericórdia, ações gerais de amor, que ocorram com alegria (v. 8d).
3. Meditação
Paulo retoma aqui o tema de corpo e membros, já abordado na Primeira Epístola aos Coríntios (caps. 12 e 13), também o tema dos carismas (dons). Como lá, os membros, com seus respectivos dons, se complementam e nenhum pode se sobrepor aos demais. Como lá, também aqui, a descrição culmina com o dom do amor (1Co 13). À diferença da exposição em 1 Coríntios, a relação dos dons é em Romanos mais sucinta. Falta, em especial, qualquer referência àqueles dons que se convencionou equivocadamente de considerar como carismáticos, como os dons de curar, o de operar milagres e o falar em línguas (1Co 12.9-10). Não se deve derivar desse fato que Paulo não os considerasse dons legítimos no corpo de Cristo, se não teria feito uma crítica contundente a eles na Primeira Carta aos Coríntios. Mas pode-se concluir que ele não os considerava dons indispensáveis no seio de uma comunidade, se não os teria mencionado em Romanos. É um testemunho eloquente de que para Paulo também na forma em que uma comunidade vive e se organiza deve prevalecer não uma imposição legalista, mas a liberdade do amor. Todo e qualquer dom é carismático, no sentido de que ele provém do Espírito de Deus.
Observa-se ainda em Romanos, mais claramente do que em 1 Coríntios, que, ao empregar a imagem do corpo e seus membros, Paulo não sugere qualquer hierarquia entre os dons, a não ser que se quisesse entender a sequência como uma ordem hierárquica, o que consideramos descabido. Paulo fala que há diferentes dons (v. 6), não de que haja dons superiores e outros inferiores; todos são de igual valor, ainda que diferenciados, porquanto todos segundo a graça que nos foi dada (v. 6), indistintamente a todos. O que importa é que eles têm funções diferentes (v. 4), e assim se complementam uns aos outros.
Encaminhando-se à pregação, há que considerar, então, os seguintes aspectos:
Primeiramente, trata-se em Romanos 12.1-8 de uma palavra à comunidade cristã e a cada um de seus membros. Ou seja, não se trata de um tratado ético para a organização da sociedade em geral ou exortações à convivência humana, mesmo que alguns dos critérios arrolados possam servir para uma boa convivência na sociedade também. Aqui é abordado fundamentalmente o ser humano como alguém que pela graça de Deus foi justificado e chegou à fé, e está inserido numa comunidade de irmãos e irmãs.
Em segundo lugar, é importante observar que Paulo faz suas exortações à conduta cristã não como algo que a pessoa cristã pudesse produzir a partir de suas qualidades morais pessoais, mas apenas à base do fato de que foi uma pessoa agraciada pelo agir de Deus em Cristo. Seu agir torna-se uma resposta de louvor a Deus, em ação direcionada em favor de seu próximo. Por ser uma resposta à ação de Deus, ela pode ser dada não como carga, mas em grande liberdade e alegria.
Em terceiro lugar, não há na perícope nem no contexto textual de Romanos qualquer legalismo. Cada membro e a comunidade como tal são chamados a discernir em responsabilidade própria qual a vontade de Deus, condizente com as necessidades reais e com os dons a cada qual conferidos. Ainda assim, a vida cristã se caracteriza por radical renovação pessoal de todo o ser. Há nela essencialmente uma dimensão de não conformidade com o estado do mundo com seu pecado, seu mal, sua violência, sua injustiça e quanto mais se quiser agregar. Essa não conformidade implica uma transformação de todo o ser, a começar pela própria mente, mas abrangendo a orientação da pessoa, não mais voltada para si mesma e seus interesses próprios, mas engajada na comunidade e em favor do próximo que padece necessidade.
Assim, em quarto lugar, ainda que inserida na vida da comunidade de fé, a ação de quem crê não se limita à fronteira dessa comunidade, mas, ao contrário, prioriza a ação para além desses muros, para dentro da sociedade. Por meio de proclamação, diaconia, ensino e serviço, a comunidade cristã não pensa prioritariamente em si mesma, mas antes de tudo em dar um testemunho vivo no seu entorno, tornando-se um instrumento da paz e da justiça.
Por fim, em quinto lugar, fica realçado que os carismas (dons) são multiformes e todos contribuem para um testemunho eficaz e de credibilidade. Será preciso tomar em conta que todos eles gozam da mesma dignidade na comunidade cristã como corpo de Cristo, que é constituído pela conjunção de todos os seus membros. O verdadeiro culto a Deus consiste na “entrega da existência corpórea no espaço costumeiramente designado de profano e, exigido de modo permanente, no cotidiano do mundo, processo em que cada pessoa cristã é simultaneamente sacrifício e sacerdote. Aqui se proclama o sacerdócio geral de todas as pessoas que creem” (KÄSEMANN, 1974, p. 317).
4. Pistas para a prédica
O tema da prédica sugerido é: não se conformar, mas deixar-se ser transformado. Esse poderia ser muito brevemente mencionado no início da prédica, para ser retomado mais adiante.
A seguir, poderia ser referida a imagem óbvia que o próprio texto traz: o corpo e seus membros, de fácil compreensão. Dever-se-ia realçar a diversidade dos membros e sua complementaridade no corpo, inclusive que são iguais em dignidade, só distinguindo-se por função diversa. Pode haver referência ao sacerdócio geral das pessoas que creem.
O passo seguinte pode ser a referência a que esse corpo, a comunidade, e cada um de seus membros, isto é, cada pessoa que crê, são chamados a servir com seus dons, não apenas no âmbito da própria comunidade (o que tampouco fica excluído), mas sobretudo em suas relações com o próximo, seja no âmbito familiar, profissional ou na sociedade. A comunidade e cada um de seus membros são chamados a ser instrumentos de paz e justiça na sociedade, bem como de cuidado para com qualquer pessoa que padece necessidade.
A seguir o tema da prédica pode ser retomado. A comunidade cristã e cada um de seus membros, tendo experimentado a ação misericordiosa e salvadora de Deus, já não podem se conformar com o estado do mundo, com suas mazelas, injustiças e sofrimentos. Logo, se dispõem a serem transformados em suas vidas pelo amor de Deus, tornando-se também instrumentos desse amor em suas relações, em seu meio.
Por fim, pode-se concluir que tudo isso é a forma viva de louvor a Deus em nossas vidas.
5. Subsídios litúrgicos
As orações do culto haverão de expressar:
1. O pedido de perdão para quando tenhamos pensado mais em nós mesmos, em vez de em nosso próximo em suas necessidades e quando, como comunidade, tenhamos dado atenção apenas às atividades internas dela, descuidando--nos da tarefa de testemunhar a fé na sociedade.
2. A gratidão por Deus, em sua graça, ter-nos conduzido do pecado à fé, de modo que podemos viver transformados e em liberdade.
3. Pedido a Deus que possamos viver, em amor, a serviço de nosso próximo, de pessoas com necessidades, discriminadas ou excluídas.
4. Pedido a Deus que nossa comunidade e a igreja toda possa ser, em palavra e ação, um sinal de paz de justiça, e dar um testemunho eficaz ao amor de Deus a todo e qualquer ser humano.
Sugestão de hinos
LCI 591 [HPD II, 446] – Arde a voz em meu peito.
LCI 575 [HPD II, 432] – Canção de caminhada.
Bibliografia
KÄSEMANN, Ernst. An die Römer. 3. ed. revista. Tübingen: Mohr (Siebeck), 1974. p. 313-330.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia. 2003. v. 8: Interpretação Bíblica; Princípios, p. 129-141 e 321-323.
CALVINO, João. Romanos. 2. ed. São Paulo: Parakletos. 2001. p. 23-31 e 431-445.
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