Prédica: Hebreus 4.14-16
Autor: Augusto Ernesto Kunert
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 16/02/1986
Proclamar Libertação - Volume: XI
I — Introdução
O autor de Hebreus não é conhecido. A literatura aponta diversas possibilidades. Tudo, porém, continua no terreno das conjeturas. Hipóteses são levantadas por uns e rejeitadas por outros. Na dúvida existente prefiro não entrar no emaranhado das suposições. Contudo, considero importante as conclusões do teólogo Michel e, por isso, as transcrevo:
Uma autoridade eclesiástica do meio judeu-cristão, conhecedora da formação alexandrina, teologicamente independente, porém, fortemente imbuída na tradição apocalíptica e do cristianismo primitivo, ligada com a formação litúrgico-confessional da teologia paulina, escreve a Roma ou a outra comunidade da Itália para fortalecê-la na fé e na perseverança diante da perseguição que se aproxima. Sua luta se dirige contra certo relaxamento e cansaço que ocorreu no período posterior à atuação apostólica, usando para tanto as teses da tradição do cristianismo primitivo (p. 56).
Em geral os exegetas consideram que Hebreus foi escrito no período após 70 depois de Cristo, portanto, em época posterior à destruição do templo.
O personagem do sumo sacerdote, identificado com Jesus Cristo, é amplamente conhecido do culto judaico e das demais religiões da época. O paralelismo de Hebreus com o AT, exatamente no tocante ao sumo sacerdote, levou Trisker à afirmação que: Nenhum outro livro do NT tem tamanha semelhança com o AT e Bengel chega a dizer que: Hebreus, em determinadas passagens, é uma sucinta repetição do AT (p. 150).
II — Exegese:
V. 14:0 versículo constata que temos um sumo sacerdote. Não devemos esperar pela sua vinda. Ele não é promessa. Nós o temos. É o sumo sacerdote por excelência e seu nome é Jesus Cristo. O sumo sacerdote que agiu em favor do povo é o Filho amado de Deus.
Na tradição do judaísmo o sumo sacerdote ocupa um lugar de destaque. O texto respeita isso, mas limita o papel dos sumo sacerdotes para apontar a função e posição incomparáveis de Jesus Cristo. A Jesus Cristo o texto, no v. 14, dá duas qualificações especiais: Filho de Deus e que penetrou os céus. Nenhum outro sumo sacerdote, desde os tempos mais remotos, nem Arão ocupou posição semelhante. No paralelismo que existe com os sumos sacerdotes na tradição do judaísmo, Jesus Cristo mantém um lugar especial, único e incomparável.
Karl Gerhard Steck vê em nossa perícope um dos momentos altos de Hebreus e sugere que o autor pretende garantir a Jesus Cristo e à fé dos cristãos em Jesus Cristo a soberania sobre a substância do AT e que por isso a pessoa de Jesus Cristo supera a tudo e a todos que o antecederam (p. 113). Hebreus ressalta a exclusividade de Jesus Cristo como sumo sacerdote. Toda e qualquer comparação se torna improcedente.
Conservemos firmes a nossa fé: Aí temos uma exortação. O autor encarece a necessidade de posição definida. Uma conduta insossa leva o cristão à indecisão e acaba no desinteresse.
A história das comunidades da IECLB apresenta muitas situações de confissão de fé, mas também de fraqueza. Um exemplo de confissão de fé nos dão os antepassados que enfrentaram muitas adversidades na vida civil e jurídica, mas permaneceram firmes na confissão da fé. Sua firmeza na confissão nos legou à IECLB como Igreja de Confissão Luterana no Brasil. Daí a exortação: Conservamos firmes a nossa confissão nos aproxima dos irmãos que receberam o livro Hebreus.
Textos anteriores à nossa perícope têm formulações de exortação, vejamos: Importa que nos apeguemos, com mais firmeza, às verdades ouvidas (...) (2.1). Considerai atentamente o apóstolo e sumo sacerdote (3.1).
O conteúdo da confissão não é arrolado, mas Hebreus faz evidente que o caminho de Jesus Cristo é o caminho da salvação. Sua morte é o resgate para a reconciliação. Sua exaltação e sua penetração nos céus é o agir do Filho de Deus em nosso favor, é ação pro nobis. Esse predicado determina a cristologia em Hebreus. E é compreensível que o autor na fé em Jesus Cristo exorte os membros da comunidade: Conservemos firmes a nossa confissão. A firmeza na confissão dá alegria também no sofrimento; dá orientação nas dúvidas e tentações; transmite segurança no emaranhado de ofertas religiosas e filosóficas que dia a dia martelam nossos tímpanos.
A dimensão salvífica da ação do sumo sacerdote Jesus Cristo nos é apontada com o testemunho que ele penetrou os céus. Jesus Cristo não necessita, a exemplo dos demais sumos sacerdotes, repetir o sacrifício. Sua ação não foi simbólica. Ele entregou-se a si mesmo. Ela é única. O seu sacrifício aconteceu uma vez por todas. Daí o seu sacrifício é EPHAPAX, isso é para sempre (7.27).
V, 15: O versículo insiste no testemunho que o nosso sumo sacerdote se compadece de nossas fraquezas. Sofremos, sim, mas não estamos sozinhos. Ele sofreu como nós sofremos. Ele foi tentado à nossa semelhança e se envolveu com os problemas da vida humana, esteve exposto às mesmas situações que nos ferem. Uma diferença existe: Ele ficou sem pecado.
Sempre de novo deparamos com a pergunta do porquê da misericórdia do sumo. sacerdote para conosco. Hebreus responde em 2.17: para fazer a propiciação pelos pecados do povo, para socorrer os que são tentados.
O testemunho ser tentado, mas sem pecado sofreu muitas especulações. Foram feitos exames a partir da sociologia e não faltaram análises psicológicas. Nada disso contribui para a tarefa do pregador, antes confunde e desvia. No meu entendimento temos aí uma confissão de fé. E a ela não podemos esmiuçar e dissecar com uma sistemática da lógica humana, pois para essa a própria cruz continua escândalo.
O autor de Hebreus no seu testemunho do ser tentado, mas sem pecado se baseia na tradição apocalíptica do AT. Is 53.9 dá margem à compreensão que o Messias — o servo de Deus — de quem é dito: que nunca fez injustiça, nem dolo algum (...) é tentado à nossa semelhança, mas sem pecado. A tradição apocalíptica se traduz em 2 Co 5.21 e em especial em 1 Pe 2.22: o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca.
No Getsêmani Jesus não buscou a sua glorificação, e sim a do Pai que publicamente declarou: Tu é o meu Filho amado. O ser sem pecado não nos distancia de Jesus, antes sua solidariedade conosco nos aproxima de quem nos dias da carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa de sua piedade (5.7) se tornou o autor da salvação eterna de todos que lhe obedecem (5.9). O ser sem pecado nos aproxima do servo de Deus que veio a ser o cordeiro inocente e que levou o pecado do mundo. O ser sem pecado fez de Jesus o sumo sacerdote que derramou seu próprio sangue para fazer propiciação pelos pecados do povo (2.17), o levou a penetrar os céus (4.14) e abrir o acesso ao trono da graça (4.16).
Hebreus, na tradição apocalíptica, mostra intencionalmente a semelhança de Jesus com as nossas fraquezas. As lágrimas, a dor, o sofrimento de Jesus se identificam exatamente com as situações da minha, da tua vida e com a da comunidade toda no seu dia-a-dia. É a expressão de solidariedade do sumo sacerdote conosco. Vencer o desânimo, não abandonar a confiança(10.35), restabelecer as mãos caídas e os joelhos trôpegos (12.12), vencer a incredulidade e perversão (3.12) são situações de tentação e de fraqueza que Jesus reparte conosco. A elas resistiu com dor e lágrimas, chegando a suar sangue e ficou sem pecado. A vivência de todas essas situações faz com que o sumo sacerdote Jesus Cristo tenha toda compreensão para a dimensão difícil do homem em sofrimento, em tentação e acometido de fraqueza.
V. 16: A perícope se concentra no v. 16 e chega no trono da graça ao seu auge. O testemunho que o sumo sacerdote é Filho amado de Deus que penetrou os céus, que sofreu e foi tentado à nossa semelhança, que ficou sem pecado, se concentra na mensagem do trono da graça. Todas as declarações sobre Jesus Cristo convergem na aberturado caminho para o trono da graça. Nascimento, vida e ação de Jesus Cristo desde a manjedoura até a cruz, sua morte, ressurreição e penetrar os céus têm a finalidade de nos levar ao trono da graça. É a obra da salvação de Jesus Cristo. É a reconciliação como transformação do velho homem em novo homem. Toda obra de Jesus Cristo tem por objetivo a propiciação dos pecados do povo e levá-lo ao trono da graça. O Filho amado de Deus é o servo que tornou-se o resgatador, derramando o seu santo e precioso sangue em sacrifício único. O seu sangue foi, usando um quadro conhecido no culto de Israel, aspergido no trono do santo Deus. Na cruz pagou a culpa dos homens e o trono do juízo de Deus veio a ser o trono da graça de Deus para os que crêem. Ali sempre de novo encontramos misericórdia.
O v. 16, na linha da exortação, nos convida: Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharemos graça para socorro em ocasião oportuna.
Lutero declarou: Quem estiver assustado com a sua condenação não tem outro refúgio senão na cobertura que Jesus Cristo lhe dá. Ele é o sumo sacerdote, somente em sua humanidade estamos salvos e defendidos do juízo (p. 75). Em outra passagem de sua preleção sobre Hebreus, para enfatizar a cobertura e proteção, Lutero traça paralelos da açâo de Jesus Cristo com o amparo de Deus citado no Salmo 91.4: Cobrir-te-á com as suas penas, sob suas asas estarás seguro. Lutero também menciona Ml. 4,2 na mesma linha de pensamento: Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas. Mateus 23.37: Quantas vezes quis reunir os teus filhos, como a galinha que ajunta os seus pintinhos... para Lutero se ressalta o pensamento da cobertura, proteção, de socorro contra a condenação que o sumo sacerdote assumiu em favor do povo.
Referente ao trono da graça, Lutero declara: Nós nos podemos achegar ao trono da graça porque temos o sumo sacerdote Jesus Cristo. Já que temos o sumo sacerdote, mesmo o escolhido entre os homens é constituído em favor dos homens (p. 77). Lutero ainda conclui: A disponibilidade para os outros e não para si mesmo é a natureza do sumo sacerdote (p. 79).
III — Meditação: Auxílios homiléticos para a prédica
1) Conceitos chaves do texto
2) Jesus Cristo, o sumo sacerdote, é o reconciliador
3) A compreensão da exortação em Hebreus
1) Conceitos chaves do texto: O texto gira em torno do conceito sumo sacerdote Jesus Cristo. Ele é o Filho amado de Deus, o Cristo pro nobis. Toda fundamentação teológica parte desta compreensão. É a mensagem central de Hebreus e deve ser levada no domingo Invocavit à comunidade. O conceito Cristo pro nobis quer ser desdobrado a partir da figura do sumo sacerdote. O pregador pode usar muito bem este quadro para informar os ouvintes do papel importante do sumo sacerdote exatamente na ânsia do povo por reconciliação. É válido lembrar que a ação do sumo sacerdote estava no sacrifício de animais cujo sangue aspergia no trono santíssimo, no dia da expiação ou festa da reconciliação. A festa, a mais importante entre os israelitas, era comemorada uma vez durante o ano com muito alarde e pompa. O povo participava em grande número. A festa se concentrava no templo de Jerusalém. O povo vinha de longe. O ponto culminante do acontecimento se dava com o aspergir do sangue do animal sacrificado no trono santíssimo, a parte mais íntima do templo e vedada aos demais sacerdotes e povo. Este ato, anualmente repetido, significava o perdão dos pecados do povo e o sumo sacerdote, em representação e em nome do povo, era o oficiante.
O texto quer ressaltar que Jesus Cristo, o sumo sacerdote por excelência, é incomparável e único sumo sacerdote em todos os tempos, pois ele não sacrificou um animal para aspergir o seu sangue no trono santíssimo, não buscou nem usou algum substituto, mas entregando-se a si mesmo, derramou o seu próprio sangue para o perdão dos pecados do povo. Com o derramamento do próprio sangue Jesus aplacou a ira de Deus, pagou a culpa dos homens. Não se trata, a exemplo do procedimento dos demais sacerdotes, de um ato simbólico a se repetir, mas de um ato único, uma vez por todas e por isso para sempre. O derramamento do seu sangue na cruz é reconciliação EPHAPAX, isto é, para sempre (7.27).
A prédica necessariamente esclarece à comunidade que Je¬sus Cristo, o sumo sacerdote por excelência, entregou-se, derramou o seu sangue na cruz, uma vez por todas, para trazer a paz, a reconciliação, a graça de Deus para o povo. Com o sacrifício de Jesus todos os tipos de sacrifícios, tentativas de conquista da reconciliação perderam seu sentido, são nulos, inúteis e constituem um menosprezo de quem derramou o seu sangue para nos abraçar com a sua graça.
2) Jesus Cristo, o sumo sacerdote, é o reconciliador
a) A estrutura pecaminosa do homem suscita, sempre de novo, a dúvida, a insegurança e a desconfiança. Ela se apresenta sutilmente como tentação para nos seduzir a atitudes que não só prejudicam a nós mesmos, mas também a terceiros. Com isso a pergunta que Lutero definiu com as palavras; Como hei de encontrar um Deus misericordioso? surge como uma constante de geração em geração. Ela perpassa com as mais diversas variantes a história da humanidade.
No culto de Israel o sacrifício de frutos da terra e de animais, desde a pomba até o animal de grande porte, visava aplacar a ira de Deus e buscar no seu perdão o beneplácito de Deus. As religiões da época, veja o gnosticismo, tinham na oferta do perdão pelo sacrifício de animais o seu momento alto. Era a oferta da libertação do sofrimento e do medo com a promessa de perdão e de paz. Para conseguir esse objetivo, os homens usaram expedientes dos mais cruéis e tresloucados. Não faltaram, como nos conta a história da religião e cultura dos povos, orientações religiosas que partiram para o sacrifício de vidas humanas. Escavações em construções da velha Babilônia acusam que em porões se encontraram crianças que foram colocadas nas paredes de edifícios. Crianças, oferecidas como sacrifício vivo aos deuses para apaziguá-los, morreram de fome e por asfixia. A busca de garantias para a paz, perdão e segurança pessoal fez com que pessoas se tornassem criminosas. Em nome da paz pessoal, pessoas praticaram crimes horríveis.
b) Cito, para caracterizar a atitude evangélica, duas experiências que se contam do escritor Dostojewski. O escritor, cristão confesso, fez o que o superior do Convento Staupitz recomendou ao monge Lutero: Deves olhar para o homem Jesus Cristo. E Dostojewski colocou sua esperança em Jesus Cristo. Conta-se que ao morrer, o escritor russo manifestou dois pedidos:
1. Pediu que lhe lessem a história do batismo de Jesus. Nela reconheceu a humildade de Jesus que sem alarde vai com o povo à magem do Rio Jordão para receber como os demais o batismo. O acontecimento lhe mostrou como Jesus se integra no povo, assume e participa da vida do povo. A humildade e a sujeição de Jesus à fraqueza dos homens significavam para o moribundo sua identificação com os homens, que sua humildade de servo enalteceu Jesus como Filho de Deus.
2. O filho pródigo foi a segunda história bíblica que Dostojewski no leito de morte queria ouvir. Ele se concentrou na confissão do filho: Pai, pequei contra o céu e diante de ti. Na confissão se espelha a pergunta pelo Deus misericordioso. O filho não recorre a artifícios, chegou ao fim e reconhece que o único caminho que o pode salvar da miséria é voltar ao Pai. Ele vai ao Pai, marcado pela humildade e pelo arrependimento. Ele se lança nos braços do Pai que em Jesus Cristo nos abraça com o seu amor.
c) A nossa vida de fé está sujeita a dúvida e tentações. A impaciência se pretende instalar como companheira. Insegurança nos desequilibra. O autor de Hebreus nos vem a ser um exemplo de pessoa que conhece de perto essas situações de sufoco e provas de fogo. Ele recorre ao trono da graça. Não perde tempo com promessas humanas, mas vai para junto do homem da redenção. Nele está a resposta para todos que perguntam pelo Deus misericordioso. O trono da graça é a misericórdia e o socorro em tempo oportuno.
Hebreus, em sua linha clara do Cristo pro nobis, nos exorta constantemente para não perdermos tempo nem prendermos nossa esperança em promessas humanas. Somos convidados a manter firmes nossa confissão. As promessas humanas desmoronam e caímos na solidão e no abandono. Mas, olhemos para o homem Jesus Cristo, o sumo sacerdote que nos leva ao trono da graça!
d) Os homens constroem artifícios para alimentar sua esperança. A entidade internacional conhecida como Clube de Roma, composta dos maiores experts da ciência, prendeu a atenção e a esperança do mundo assustado com o rápido consumo das reservas naturais, com uma verdadeira explosão demográfica que provoca fome crescente para a humanidade. A esperança que muitos mantinham no Clube de Roma, que devia apresentar soluções para os diversos problemas, se frustrou. O Clube de Roma nos pintou um quadro assustador e carregado de desesperança. Mudar o quadro somente é possível com a superação da ganância, da exploração do homem pelo homem. É evidente que os homens corruptos, opressores e exploradores nada têm a oferecer como solução em situação de desespero. Muitos, desiludidos com o Clube de Roma, foram buscar esperança e soluções na filosofia de Marx e Engels. Novamente prenderam sua esperança em promessas humanas.
A teoria nos induz a crer que o homem é capaz de criar uma sociedade onde reina paz, justiça e fraternidade. Onde algo parecido acontece? Isso não ocorreu em nenhum país do mundo marcado e orientado pela doutrina de Marx e Engels. À semelhança dos países governados pelo conceito económico do capitalismo, a discriminação e a exploração do homem pelo homem são marcas deploráveis. A tese do lucro discrimina, divide e marginaliza e gera miséria, pelo menos o faz na América Latina. Não vejo na ideologia de Marx e Engels nem na promessa do capitalismo esperança de paz e de justiça social. A esperança por novo céu e nova terra a partir da ação humana está fadada ao desastre. O esquecimento que o homem é pecador, deixando de lado a verdade que o apóstolo Paulo resume nas palavras: Porque não faço o bem que eu quero, mas o mal que não quero, esse faço (Rm 7.19) nos lança no emaranhado da autojustificação, dos méritos próprios, da busca da glória e coloca o germe da corrupção.
Considero perigoso que o pregador, mesmo imbuído da melhor das intenções, faça declarações semelhantes a que li na circular do Bispo Izidoro Kosinski, de Três Lagoas, de 21.12.84: Depositamos a nossa esperança na organização do povo, unidos nos seus sindicatos, associações, comunidades, etc...., único caminho para a construção de uma sociedade onde reinará a paz, a justiça e a fraternidade. Tais declarações provocam a compreensão como se a solução dos problemas sócio-políticos dependessem somente da organização e das estruturas. Não é simplesmente a organização do povo, mudança de sistemas e de estruturas que nos trazem uma sociedade onde reinará a paz, a justiça e a fraternidade. Temo que declarações como a acima citada iludam o povo, cimentando a compreensão que a simples organização do povo, mudanças de estruturas e sistemas já tragam justiça, paz e fraternidade para a sociedade. O problema não é muito mais grave e profundo? Tais colocações não prendem o povo em promessas humanas? E as promessas humanas, exatamente na compreensão da perícope, não são falhas? A esperança por justiça, paz e fraternidade nos vem do Evangelho da salvação em Jesus Cristo. O homem, marcado pelo pecado, não faz o bem que quer, mas o mal que não quer, esse ele pratica. O verme do pecado derrota o homem quando põe a sua esperança na conquista humana. A segura e certa esperança vem do centro do Evangelho de Jesus Cristo que a teologia luterana expressa na doutrina da justificação por fé. O homem reconciliado com Deus é compromissado com o serviço em amor. Entendo que as estruturas, o sistema e a organização do povo devem expressar a reconciliação e saber-se a serviço da verdade, justiça e da paz de Deus. Jamais podemos esquecer que neste mundo caído toda a organização, estrutura e sistema sofrem o impacto da realidade do homem que é justo e pecador ao mesmo tempo. Não a organização, nem as estruturas, nem o sistema em si, mas o Cristo pro nobis é a esperança para a justiça, a paz e a fraternidade. Isso deve estar muito claro para o pregador da Boa Nova da salvação em Jesus Cristo e deve ser colocado por ele na sua incumbência de atalaia e na sua atividade pastoral, quando participa da organização do povo, da formação de sindicatos e entidades congêneres.
e) Tal vez o prezado leitor pense que estou chovendo no molhado, que este procedimento é normal. Cuidado, meu caro colega! Tenho muitos contatos com as comunidades das mais diversas áreas geográficas da IECLB e mais e mais me confronto com a acusação que estamos embaralhando a mensagem; que o óbvio, o normal não está sendo pregado; que o engajamento da comunidade em questões da vida pública, nos problemas da sociedade pertence ao mandato do Evangelho de Jesus Cristo não é devidamente esclarecido e, consequentemente, surge a pesada acusação que se difunde hoje na IECLB uma mistura de Evangelho-social-político. Alerta, meu prezado colega. Sê atalaia contigo mesmo. Examina o teu posicionamento teológico. Levas a Comunidade a confiar em promessas humanas ou estás evangelicamente apontando para Jesus Cristo, o sumo sacerdote que penetrou os céus e que abriu para os que nele creem o aceso ao trono da graça? Pois a nossa esperança está no Filho de Deus que se compadeceu de nossa fraqueza; que derramou o seu sangue pela propiciação dos pecados do povo.
Exatamente nessa situação Hebreus nos alerta para não prendermos nossa confiança e esperança nas promessas humanas. Essas, por mais promissoras e bem intencionadas que sejam, estão marcadas pelo pecado do homem. Olhemos, portanto, para Jesus Cristo, o sumo sacerdote que entregou-se a si mesmo pela propiciação dos pecados do povo, penetrou os céus e abriu o caminho para o trono da graça!
3) A compreensão da exortação em Hebreus:
1) A exortação em Hebreus deve ter seus motivos. Quais poderão ser as razões para tanto? Pensamos, obviamente, na existência de certos riscos para a comunidade. No contexto vivencial surgiram perigos, dificuldades e tentações que ameaçavam a caminhada da comunidade. Hebreus não cita os motivos. Mesmo que a falta de registro dos perigos existentes deixe a situação um tanto vaga, a época em que Hebreus foi escrito nos dá algumas dicas para interpretar e entender melhor as circunstâncias devida que provocaram a situação tensa para os membros. Aceita-se na literatura que os cristãos na época de Hebreus eram perseguidos pelo estado romano; que o culto ao imperador, exigido de todos os cidadãos, representava um dos grandes entraves e ameaça. Havia, portanto, um profundo choque entre a mensagem evangélica e a religião pagã oficial do estado romano, consequentemente os cristãos eram preteridos e perseguidos. Enquanto que uns sofriam o martírio, outros membros se refugiavam ou até renegavam a confissão de Jesus Cristo. Nesta situação o conforto espiritual foi indispensável. Entendo que a exortação foi uma atitude pastoral para fortalecer os cristãos na fé e na esperança.
2) Sabemos também que o gnosticismo era muito difundido no Oriente-Médio e tinha larga penetração no Império Romano. A confrontação com essa orientação filosófica representava uma ameaça para muitos e, provavelmente, começou a perturbar membros da comunidade. Os gnósticos afirmavam que a vinda do Salvador quebraria em definitivo o poder da morte, que a libertação do corpo representaria a libertação da alma. E Hebreus enfrenta esta situação com a mensagem da ação de Jesus Cristo em favor dos pecadores. Daí entendemos a linha clara de Hebreus com a sua ênfase sobre o conceito do Cristo pro nobis. Jesus Cristo é o resgatador. Um outro toma o nosso lugar. Um outro sofreu por nós o juízo. Jesus Cristo entrou por nós na brecha.
Com esta compreensão Hebreus sublinha uma linha mestra da mensagem evangélica. Jesus assume o juízo da morte como consequência do pecado humano e liberta o homem todo—corpo e alma, na reconciliação acontecida na cruz, onde ele, aceito por Deus como resgate, morreu em favor de todos. A libertação, portanto, é dádiva e não conquista de um pretendido aperfeiçoamento humano.
3) O fato da insistência na exortação (13.22) nos leva a admitir que os irmãos daquela época entraram numa fase de cansaço e desânimo (12.13). Também a incredulidade se apresenta como entrave na vida comunitária e no testemunho (3.12).
A realidade de hoje mostra paralelos significativos com a situação enfrentada por Hebreus. Isso não nos deve servir de consolo, muito menos de justificativa. Registramos em nosso meio muito cristianismo de interesse, de status social. Não faltam o cansaço, o desinteresse nem a incredulidade. Antes, isto sim, nos deve servir de alerta. Devemos admitir que este estado de coisas indica velhos inimigos da fé. São os responsáveis pela letargia que se instalou em muitas comunidades. Encobrem a verdadeira compreensão e chamado para a missão da comunidade. Prejudicam a vivência do serviço cristão e afastam o membro da comunidade, o que prejudica a comunhão. Os membros desaparecem dos cultos, das reuniões e deixam de participar ativamente na comunidade. A lei do menor esforço ganha muitos adeptos. Mesmo que haja motivos para críticas, essas são usadas, seguidamente, para justificar o afastamento. Por isso deixam de ser críticas construtivas de quem, engajado na comunidade, visa o bem, a união, o testemunho da comunidade.
4) Há uma enorme escala de motivos. Contudo o pregador deve ter o cuidado para náo cair no legalismo. É importante que se veja isso e que o pregador leve a comunidade a entender o desfecho perigoso para o membro e a comunidade que uma conduta alienada traz consigo.
A exortação em Hebreus não tem o sentido de uma ordem, de comando. A atitude do autor não é a de um sargento que exercita soldados sob o seu comando. O texto é uma pregação carregada de sensibilidade poimênica. Antes, a exortação vem a ser expressão da mais profunda gratidão e de alegria que explodem no desejo ardente que outros saibam, entendam e recebam a mensagem da misericórdia de quem penetrou os céus e abriu o caminho para o trono da graça. A exortação conclama para que todos recebam e participem da dádiva da graça. Vejo na exortação de Hebreus o chamado à participação e a oferta de integração de fazer uso da dádiva da graça. A exortação quer ser convite para que confiadamente nos acheguemos ao trono da graça. No trono da graça encontraremos misericórdia, teremos socorro nas tentações, no sofrimento e angústia.
A exortação é oferta de graça para que todos tenham vida. Sinto a dimensão pastoral da exortação como se Hebreus nos dissesse: Gente, vocês se debatem com a pergunta pela salvação, onde encontrar perdão! Aí está o caminho da verdade e da vida, aí está a libertação; aí, em Jesus Cristo, o sumo sacerdote, que penetrou os céus, nos é dado o trono da graça. Vamos para junto de Jesus Cristo e teremos misericórdia, perdão, socorro e vida nova.
O trono da graça é a resposta para a pergunta que vai de geração em geração e que foi formulada pelo reformador Martim Lutero: Como hei de encontrar um Deus misericordioso?
5) Hebreus deve ter sido escrito por um homem rico na experiência de fé que passou pelo sofrimento, sentiu e avaliou o terror da tentação. E, por isso, é tão significativo e tem sua ampla validade para nós hoje. Hebreus é atualíssimo em seu testemunho. Ele fala a mim e a ti, se refere aos meus e aos teus problemas, é um exemplo de fé nas minhas e nas tuas angústias. Depende somente de nós dois agarrar a dádiva da graça que nos é oferecida. Deus fez tudo. Jesus Cristo sofreu tudo e espera por nós no trono da graça. Hebreus não desenvolve uma teoria, mas prega a salvação em Jesus Cristo como verdade evangélica. Agarremo-nos a ela onde estivermos. Não percamos tempo, assim a exortação nos alerta, nos chama e convida.
IV — Subsídios Litúrgicos:
1. Confissão dos pecados: Santo Deus e Pai, Jesus Cristo, o teu Filho amado participou e assumiu a nossa fraqueza. Na tentação e no sofrimento solidarizou-se conosco. Tu o fizeste o sumo sacerdote que uma vez por todas, derramando na cruz o seu próprio sangue pela propiciação dos pecados do povo. Ele penetrou os céus e nos leva à presença do teu trono da graça! Assim, Deus e Pai, sabemos da oferta de socorro em tempo oportuno, quando tristeza, medo e culpa nos castigam. Pecamos, Deus e Pai, contra ti. Mas, em nome de teu Filho amado, achegamo-nos ao trono da graça e buscamos contigo o nosso auxílio. Confiamos na tua Palavra da misericórdia e rogamos: Tem piedade de nós, Senhor! Amém!
2. Oração de coletas: Iniciou-se, Senhor, a época de tua paixão. Escolheste e seguiste o caminho do sofri mento e do sacrifício. Assumiste este caminho por amor a nós. Ele te levou à cruz. O teu sangue veio a ser resgate e propiciação dos pecados do povo. O Pai, em sua misericórdia, aceitou o teu sacrifício e nos libertou da condenação. Agradecemos-te e louvamos o teu santo nome. Dá-nos agora, o silêncio e a atenção necessários para ouvir a mensagem da tua Palavra que nos ensina o caminho da verdade e da vida. Pai, a tua Palavra fortalece nossa confiança em ti e alimenta a esperança que tu, abrindo o acesso ao trono da graça, nos dás o socorro em tempo oportuno. Amém!
3. Oração final: Senhor Deus, Pai celeste, te agrademos de todo coração por nos teres dado o sumo sacerdote Jesus Cristo e com ele o Mediador. Na tentação e sofrimento se solidarizou conosco. Esta certeza nos anima a viver e nos é compromisso para servir aos que sofrem e são carentes. Ajuda-nos, também no amanhã, a ver as dificuldades dos irmãos. Lava-nos mente, coração e olhos para enxergarmos o sofrimento silencioso dos humildes e de tantos outros que no confronto com a dor, a culpa, divergências, omissões e egoísmo estão abalados. Deixa-nos praticar o serviço cristão como resposta obediente da fé no sumo sacerdote Jesus Cristo que nos trouxe a propiciação dos pecados. Fortalece nossa confiança em ti para que não nos desviemos da tua Palavra, seguindo promessas humanas. Anima-nos na esperança que há em ti como Senhor e Salvador do mundo. Sustenta mãos que ajudam e pés que nos levam ao encontro de pessoas. Une mãos em oração de intercessão em favor dos que o sofrimento silenciou, que a doença transformou em pessoas amargas e que a morte de um ente querido levou a emudecer. Renova, dia após dia, a confissão que tu és a nossa esperança na vida e na morte. Amém!
V — Bibliografia
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- MICHEL, O. Der Brief an die Hebraeer. IN: Kritisch-Exegetischer Kommentar ueber das Neue Testament. v. 13.6.ed. Göttingen, 1966.
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