Paróquia Ferrabraz

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A roupa do cristão | Lucas 14.1, 7-14

12º Domingo após Pentecostes

28/08/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

o texto previsto para este 12º Domingo após Pentecostes é bastante provocativo. Enquanto o ser humano insiste em olhar para cima, Deus olha para baixo; enquanto o ser humano quer subir de posição, Deus desceu até nós; enquanto o ser humano quer aparecer, Deus age usando os anônimos; enquanto o ser humano quer glória, Deus foi para a cruz.

O ser humano gosta de ter todos os holofotes apontados para si, de ser elogiado, de ter seu ego acariciado. Até mesmo nas igrejas há hoje muitas “ovelhas que só faltam pedir para serem penteadas”. O ser humano quer ser elevado, estar do lado de “gente famosa”, ser reconhecido.

Já no Deus que desceu até o madeiro, encontramos a total inversão daquilo que pensamos sobre o próprio Deus. Ele se tornou como um de nós, mas sem deixar de ser ele mesmo – Deus. O rosto de Deus não está revelado na ambição ao poder, na glória de um “super” reinado ou em um grande “show da fé”; ao contrário, o rosto de Deus é revelado no crucificado nu, pobre, torturado e humilhado. O rosto de Deus não está no rosto dos poderosos deste mundo, mas no semblante dos fracos.

Por isso, a marca essencial do cristianismo ao longo da história foi fazer oposição ao Império Romano e na ajuda aos fracos do mundo. Na igreja primitiva, “os cristãos mudaram a história e a cultura ao conquistarem as elites e também ao se identificarem profundamente com os pobres”1. Celso, um autor erudito pagão que viveu por volta do ano 200 d. C., escreveu a respeito dos cristãos:

Mas se houver algum ignorante, insensato, inculto, uma criança, que se aproxime com coragem! Ao reconhecer que tais pessoas são dignas de seu Deus, eles mostram claramente que só querem, só podem convencer pessoas simplórias, vulgares, estúpidas: escravos, mulheres incultas e crianças.2

Ou seja, qual era o motivo do desprezo de Celso ao cristianismo? O motivo era a atenção que os cristãos davam aos pobres, fracos, ignorantes, enfim, aqueles que eram descartados pela sociedade romana. Deus não se colocou do lado dos sábios, dos poderosos, dos grandes, mas das pessoas consideradas “simplórias, vulgares, estúpidas”.

Por isso, o apóstolo Paulo nos diz em 1 Coríntios 1.18-20: “Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, ela é o poder de Deus. Pois está escrito: “Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes.” Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o questionador deste mundo? Não é fato que Deus tornou louca a sabedoria deste mundo?” E continua: “mas nós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios. Mas, para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana”. (1 Coríntios 1.12-14). Para concluir: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar as fortes. E Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são, a fim de que ninguém se glorie na presença de Deus”. (1 Coríntios 1.27-29).

O Deus cristão é o Deus que inverte a lógica do mundo. É o Deus que decidiu nascer de uma mulher humilde e simples chamada Maria em um pequeno paiol na periferia da cidade de Belém; ele não nasceu no palácio de Herodes com toda a pompa merecida a um Rei; ao contrário, é o Deus da periferia, não do centro; ele é o Deus que foi criado por um pai humilde chamado José, um carpinteiro; é o Deus que caminhava pelas aldeias e cidades sem um lar, dependendo completamente de outras pessoas; é o Deus que não entrou em Jerusalém em um grande cavalo branco, em um tanque de guerra, em um Rolls-Royce blindado ou com uma “motociata”, mas em um jumentinho, cria de jumenta; ele é o Deus que não foi assentado a um trono glorioso, mas pendurado numa cruz e com uma coroa de espinhos, não de ouro; ele é o Deus que ressuscitou ao terceiro dia e não apareceu primeiramente aos principais, mas às rejeitadas mulheres; é o Deus que não enviou pelo mundo as pessoas mais poderosas para que todos fossem convertidos à força. Ao contrário, enviou seus discípulos para pregarem o Evangelho até aos confins da terra.

Esse é o Deus cristão. A partir dessa reflexão inicial, o que mais podemos aprender sobre esse texto bíblico? O que mais esse texto diz a nós que vivemos no ano de 2022?

1    RENUNCIAR AO EGOÍSMO

Jesus nos convida a sermos felizes fazendo outras pessoas felizes. No ensinamento de Jesus, a felicidade não é uma conquista própria e egoísta, mas algo que se vive na relação com outras pessoas – a comunidade. É reconhecer a importância do outro ao invés de competir pela importância. O filósofo brasileiro Mário Sérgio Cortella fala sobre isso, dizendo:

Existe uma obsessão consumista, uma ideia de que eu sou aquilo que eu tenho, e não é verdade. Eu sou aquilo que faço, relaciono, convivo com outros. Afinal de contas, o que vale na vida é ser importante. Não necessariamente ser famoso. Importante é aquela pessoa que é importada por outra. Isto é, que a pessoa leva para dentro. Isso significa importar. Tem muita gente na tua vida que é importante, mas não é famosa. A pessoa importante faz falta.3

O convite de Jesus é a sermos importantes dando importâncias às pessoas que estão ao nosso redor. Isso significa “portar” elas dentro de nós, em nossos corações e querer que elas possam prosseguir bem em suas vidas: “quando alguém convidá-lo, vá sentar no último lugar, para que, quando vier aquele que o convidou, diga a você: “Amigo, venha sentar num lugar melhor”. Isso será uma honra para você diante de todos os demais convidados”. (Lucas 14.10).

No Reino de Deus, a felicidade é algo que se vive em conjunto e não de maneira individualista ou hedonista. E não há maior alegria que fazer o bem ao próximo, tratar as pessoas com importância, cuidado e amor. Essa é a maneira de liderar nos moldes de Jesus: uma liderança que não é servida, mas que serve!

Talvez seja muito fácil praticar isso dentro da família (ou não). Porém, o convite de Jesus se estende para além da família, da comunidade e dos amigos; o convite de Jesus nos faz enxergar com dignidade aqueles para quem a sociedade desvia o olhar, aqueles que a sociedade joga para fora das cidades, obrigando-os a viver nos morros que desabam sobre suas casas, nas favelas, na restinga, aqueles que já estão a dias sem comer ou tomar um banho com dignidade. Por isso, vamos à segunda prática importante:

2    COMBATER A POBREZA E NÃO O POBRE

Quem vem de família simples sabe o que é viver na pobreza, a dor que é não ter comida na mesa, a dor que é sentir fome. Não é fácil. Porém, em nossa sociedade parece estar se disseminando um ódio aos pobres. Muitas vezes se combate o pobre ao invés de combater a pobreza para que todos tenham condições de uma vida digna. A meritocracia joga no lixo humanos de carne e sangue como nós com a desculpa de que não conseguiram o sucesso porque foram preguiçosos, não trabalharam corretamente, entre outras.

Isso me lembra muito de uma das melhores séries de televisão já produzidas. Estou falando do seriado Chaves. Você lembra? O seriado fala de uma vila pobre. Vamos pensar um pouco sobre ela. Quem são seus moradores? O Sr. Madruga, um desempregado que não consegue pagar suas dívidas e o aluguel, mas que sempre tem alguns centavos para que sua filha Chiquinha possa comprar um doce; a dona Florinda, uma mulher pobre, mas que vive de aparências por ser viúva de um marinheiro; a dona Clotilde, uma idosa que deve viver da sua aposentadoria; e o Chaves, um menino pobre e órfão que depende da ajuda dos moradores da vila para sobreviver. E, claro, o Sr. Barriga, o dono da vila que, mesmo cobrando o aluguel dos devedores, tem um coração que não cabe no peito.4

O seriado Chaves é um grande retrato de como são as pobres vilas da América Latina. Talvez, por isso mesmo o seriado tenha se tornado tão famoso no Brasil. Há uma identificação dos pobres da vila com os pobres da realidade. O mais interessante é que embora haja conflitos na vila todos os dias, todos estão sempre dispostos a ajudar ao próximo e a se unirem quando necessário, desde dando um sanduíche de presunto ao Chaves até ao próprio Sr. Barriga levar toda a vila para passar o natal em sua casa.

Isso tem tudo a ver com o ensinamento de Jesus: “Quando você der um jantar ou uma ceia, não convide os seus amigos, nem os seus irmãos, nem os seus parentes, nem os vizinhos ricos; para não acontecer que eles retribuam o convite e você seja recompensado. Pelo contrário, ao dar um banquete, convide os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”. (Lucas 14.12-13). Que desafio, hein? Esse é um convite de Jesus à comunidade! É um convite a não procurarmos uma fé que nos aliena do mundo, mas que nos faz ter pé-no-chão para conseguirmos enxergar bem toda a realidade de sofrimento que nos cerca. Quais são as realidades de sofrimento ao nosso redor, aqui nos bairros Sete de Setembro e Amaral Ribeiro? Quem são as pessoas mais necessitadas aqui dos nossos bairros? Como podemos ajudar? É isso que significa amar ao pobre e lutar contra a pobreza.

O problema é que há muita gente combatendo o pobre ao invés de combater a pobreza. Muitas cidades removem a força moradores de rua de lugares centrais porque são um “incômodo visual” aos turistas das cidades; ou seja, lutam contra o pobre, mas não contra a situação que coloca as pessoas pobres e vulneráveis nas ruas das cidades.

Os ensinamentos de Jesus nos convidam a olhar com misericórdia para com todas as pessoas para que elas tenham a chance de viver com dignidade e para que o “pão nosso de cada dia” seja de fato nosso e não apenas meu. A ninguém deveria faltar água tratada e uma alimentação saudável. É de doer o coração quando situações assim ainda acontecem – e como acontecem – em nossos dias. Assim nos diz o teólogo luterano Euler Renato Westphal:

Nos primórdios do cristianismo, o povo de Deus era missionário porque testemunhava a mensagem contagiante da salvação em Cristo, que trouxe dignidade aos excluídos e às pessoas consideradas inúteis, como escravos, mulheres, crianças, velhos, doentes, pobres, prostitutas, estrangeiros, ou seja, aqueles que eram considerados pessoas inferiores, sem dignidade (...). A partir dessas pessoas consideradas inúteis, muitas pessoas foram convencidas do testemunho de que Deus veio para a humanidade e que ele é o único Senhor e Salvador para todos os povos.5

Portanto, não há como sermos cristãos sem o amor aos pobres, fracos, desprezados, excluídos. O amor aos fracos é a marca essencial do cristianismo, pois o próprio Deus se fez pobre e desprezado ao se deixar ser pendurado em uma rude cruz. Em Jesus Cristo, Deus “aparece no seu contrário” e “se esconde na fraqueza e na miséria”6. É o Deus que Lucas Cranach – o pintor da reforma Luterana – retratou com um rosto amoroso.

Amados irmãos, amadas irmãs,

temos muitos desafios pela nossa frente. Se formos viver de fato o Evangelho em nossas vidas, famílias e comunidades, muitas coisas precisam mudar. O Evangelho torna os nossos corações mais humanos, empáticos, simpáticos; através do Evangelho, somos transformados em pessoas amorosas, misericordiosas e com compaixão, assim como o nosso Senhor.

Renunciemos ao egoísmo. Sejamos importantes fazendo outras pessoas serem importantes. Você não precisa estar em primeiro lugar o tempo todo; você não precisa aparecer o tempo todo; você não precisa estar no palco o tempo todo. No Reino de Deus, há lugar para todos e o único que realmente deve aparecer é Cristo. Ele deve crescer para que nós diminuamos. O Centro do Reino de Deus não é você, mas o Cristo crucificado e ressuscitado. Portanto, humildade diante do Senhor, assim como ele mesmo se humilhou obediente até a morte e morte de cruz (cf. Filipenses 2.5-8).

Concluo a pregação de hoje, contanto uma pequena história que não está na Bíblia, mas que é uma interessante reflexão:


 

A fé cristã nos faz vestir o avental para que coloquemos as mãos à obra no mundo. É assim que nos dispomos a servir a todas as pessoas. Como Deus se esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo, semelhante a nós e humilhando-se à morte de cruz, o Evangelho nos chama a vestirmos o avental e carregarmos as cargas uns dos outros, até mesmo daqueles que já estão com a cruz arcada.

Que Deus nos ajude a cuidarmos uns dos outros. Deus ama os fracos e eles não são excluídos. Fé cristã é o cuidado para com o próximo, bem como para com a Criação de Deus, o meio ambiente que este ano está gritando em seus gemidos por socorro!

E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.


12º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO C

28 de Agosto de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 KELLER, Timothy. Igreja Centrada. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 179.

2 ORÍGENES. Orígenes contra Celso. Coleção Patrística, v. 20. São Paulo: Paulus, 2004. p. 210.

3 CORTELLA, Mario Sergio. Viver em paz para morrer em paz. São Paulo: Planeta, 2007. p. 12.

4 Cf. MATOS, Luís (ed.). Chaves: a história oficial ilustrada. São Paulo: Universo dos Livros, 2012. 89-122.

5 WESTPHAL, Euler Renato. “Missão de Deus: uma tarefa da comunidade”. in: SCHWAMBACH, Claus (ed.). Revista OrientAção. n. 7, Jan-Jun. São Bento do Sul: Faculdade Luterana de Teologia, 2017. p. 35.

6 A Máscara Índia de Deus. Documento Final do 1º Encontro de Obreiros do Comin. apud: WESTHELLE, Vitor. “15º Domingo após Pentecostes”. in: KILPP, Nelson; WESTHELLE, Vítor (Orgs.). Proclamar Libertação. v. XVII. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1991. p. 199.

 

 


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 14 / Versículo Inicial: 7 / Versículo Final: 14
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67923
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