Prédicas e Meditações



ID: 2931

Livres para agradecer | Lucas 17.11-19

5º Domingo após Pentecostes | Ação de Graças | Comunidade Bom Pastor

10/07/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

como agradecer se cerca de 20 milhões de brasileiros estão passando fome? Como agradecer se 55% da nossa população apresenta insegurança alimentar? Como agradecer se nessa semana o Brasil voltou ao mapa mundial da fome? Será que temos pelo que agradecer?

Há muitos caminhos diferentes que podemos percorrer diante desta triste realidade. De um lado, podemos estar completamente alienados a ela, acreditando que essas informações não são verdadeiras; ou podemos fechar os olhos diante de tanta pobreza e injustiça; talvez, acreditamos que a pobreza é escolha ou culpa de quem vive essa realidade; quem sabe, creiamos que essa realidade só existe muito longe de nós e não “bem debaixo dos nossos narizes”.

Lentamente o mundo vai colocando a pandemia do covid-19 no passado. O avanço da vacinação juntamente com todas as doses de reforço contribui muito para isso. Mesmo assim, o mundo continua vivendo a guerra, o egoísmo, a ganância; continuamos vivendo problemas antigos como a fome, a miséria, o desemprego. Parece que é difícil avançarmos como humanidade sem precisarmos ‘atropelar’ ao outro com nosso progresso.

De um lado, temos muito o que agradecer. Após dois anos, em 2022 temos a oportunidade, a alegria e a bênção de celebrarmos presencialmente o nosso Culto de Ação de Graças da Comunidade Bom Pastor. Hoje é um dia de festa, de alegria e de comemoração. Deus tem cuidado da nossa comunidade e de todos nós nestes dois anos. Por isso, louvamos e engrandecemos o seu nome.

Porém, ao mesmo tempo em que agradecemos, não podemos ficar alienados ou distantes da realidade que nos cerca. Além de olhos e ouvidos bem abertos para ver e ouvir os sofrimentos ao nosso redor, precisamos ter também um coração disposto à paciência, empatia e cuidado. Ação de Graças não se faz apenas com a mente, mas também com o nosso coração quando está cheio de misericórdia para com todas as pessoas.

Aliás, também os dez leprosos do texto bíblico que ouvimos foram jogados para fora da sociedade. Como não havia tratamento para a doença na época, a única maneira de preservar a saúde e a vida da população era enviar as pessoas com esta doença para as margens da cidade, literalmente. Para compreendermos melhor as leis daquela época e as ‘entrelinhas’ desse texto bíblico, vamos ver o contexto do texto respondendo três perguntas essenciais:

1 Quais eram as leis quanto aos leprosos?

Em Levítico 13 temos uma declaração detalhada sobre o procedimento dos judeus em relação a uma pessoa diagnosticada com lepra. Por questão de tempo, não teremos como ler todos os versículos no culto. Porém, sugiro que você dê uma olhada em casa. Assim nos diz Levítico 13.45-46: “As roupas do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas, e os seus cabelos deixados sem pentear; com a mão sobre a boca, gritará: Impuro! Impuro! Será impuro durante os dias em que a praga estiver nele; está impuro, habitará só; a sua habitação será fora do arraial”. Além de ter a doença, por onde passavam, os leprosos precisavam sair gritando “impuro, impuro” para que as pessoas soubessem que aquela pessoa estava doente e não se aproximassem para serem contaminadas. Além do sofrimento físico, as pessoas com lepra vivenciavam também um grande sofrimento social. Assim diz Números 5.2: “ – Ordene aos filhos de Israel que expulsem do arraial todo leproso.”

Onde estavam os leprosos do texto bíblico de Lucas 17? Eles não estavam nas cidades. Olhemos o que o texto nos diz: “De caminho para Jerusalém, Jesus passava pelo meio de Samaria e da Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram longe”. (Lucas 17.11-13a). Os dez leprosos não estavam nem na Samaria e nem na Galileia, mas entre as duas regiões, em uma aldeia. Viviam ali porque estavam completamente excluídos da sociedade. O mais interessante é que Jesus não fez uma curva na sua viagem para desviar desse “caminho perigoso”, mas decidiu passar exatamente onde aqueles homens viviam excluídos e sofriam com a sua doença. A cura para eles não significava apenas a eliminação da doença, mas a possibilidade de voltarem ao convívio social da família e outras pessoas.

2 Quem eram os samaritanos?

Já vimos que Jesus estava passando entre a Samaria e a Galileia. O texto bíblico também nos revela que o único que voltou dos dez para agradecer a Jesus era samaritano. Mas, quem eram os samaritanos?

Havia um grande conflito entre judeus e samaritanos. Eles eram povos inimigos desde 2 Reis 17 quando o reino do norte chamado Israel caiu e foi dominado pelos Assírios. A cidade de Samaria era a capital de Israel. A partir disso, o reino do norte começou a ter casamentos mistos e a diversificarem a sua cultura. Por causa disso, o reino do sul Judá acusava o reino do norte de impureza. Os judeus passam a enxergar os samaritanos como uma população impura e que perverteu a Lei de Deus. Os judeus consideravam os samaritanos uma raça impura. Eles basicamente “cancelaram” os samaritanos.

Havia uma grande inimizade entre os judeus e os samaritanos. “Se o ônibus da Samaria passasse por Jerusalém, certamente seria terrivelmente apedrejado”. Não havia tolerância e nem respeito entre estes dois povos. O melhor era cada um ficar no seu canto. Mesmo assim, as difamações dos samaritanos eram corriqueiras em Jerusalém. Os samaritanos eram odiados simplesmente por serem o que eram.

A grande questão é que, na verdade, os samaritanos não eram “outra raça”. Eles acreditavam no mesmo Deus que os judeus e confessavam os primeiros cinco livros da Bíblia como todo judeu de Jerusalém. Ambos também aguardavam o cumprimento da promessa da vinda do Messias. Mesmo assim, os samaritanos eram odiados pelos judeus.

Chama-nos a atenção que dos dez leprosos, um deles era samaritano. O que um samaritano estava fazendo pacificamente no meio de nove judeus? Ao que parece, a realidade da doença foi capaz de diminuir as diferenças entre aqueles homens ao ponto de não darem mais prioridade para elas. A triste e dura realidade da lepra foi capaz de unir aqueles nove judeus ao único samaritano.
O sofrimento tem um poder incrível de mostrar aos seres humanos o quanto são iguais. No sofrimento, não há maior ou menor, mais importante ou menos importante, melhor ou pior; no sofrimento, todas as pessoas são tornadas igualmente humanas e necessitadas de cura, companhia e empatia.

3 Por que só o samaritano voltou para agradecer?

Na história descrita por Lucas, todos os dez leprosos foram curados. Eles pediram a Jesus: “ – Jesus, Mestre, tenha compaixão de nós!” (Lucas 17.13). Eles olham para Jesus e o reconhecem como Mestre. Então, Jesus respondeu a eles: “ – Vão e apresentem-se aos sacerdotes”. (Lucas 17.14). Talvez a resposta de Jesus tenha os ‘pegado’ de surpresa. Eles queriam a cura e não ir novamente aos sacerdotes que já os condenaram a viverem longe das suas cidades.

A partir de Levítico 13, os leprosos que acreditavam estar curados deveriam procurar os sacerdotes para que eles pudessem verificar a situação e ‘dar alta’ aos pacientes. Se a doença estivesse realmente curada, os sacerdotes iriam autorizar a pessoa a retornar para a sua cidade e para a sua família.

Portanto, ao recomendar aos leprosos a irem aos sacerdotes, Jesus está sutilmente sugerindo aos leprosos que quando chegarem lá, já não estarão mais doentes. O pedido de Jesus a eles contém uma surpresa: eles acham que só precisam ir aos sacerdotes, mas, então... “Aconteceu que, indo eles, foram purificados”. (Lucas 17.14). Surpresa! Agora é que eles podem ir aos sacerdotes com alegria, sabendo que serão liberados das leis que os mantinham longe de casa.

Entretanto, um deles voltou. Quem foi? Justamente o samaritano. Por que só ele voltou? Os outros nove eram judeus. Eles poderiam se apresentar aos sacerdotes sem sofrerem nenhum tipo de preconceito. Os nove judeus têm a liberdade de ir aos sacerdotes para serem liberados e voltarem às suas casas. O samaritano, porém, não tem essa possibilidade, pois os sacerdotes não o aceitarão. “Ah, ele é samaritano”, dirão eles.

Então, o que ele fez? Ele simplesmente voltou para a Samaria? Não! Ao contrário, ele foi em direção ao sacerdote Jesus: “Um dos dez, vendo que estava curado, voltou dando glória a Deus em alta voz e prostrou-se com o rosto em terra aos pés de Jesus, agradecendo-lhe. E este era samaritano”. (Lucas 17.15-16). Quando ele não tinha sacerdote para ir, ele escolheu ir em direção a Jesus, nosso sumo sacerdote: Jesus: “Você é sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”. (Hebreus 5.6).

O samaritano enfrentou de frente os preconceitos e o sistema religioso injusto do seu tempo ao voltar glorificando a Jesus. Tanto, que o próprio Jesus declarou: “ – Não eram dez os que foram curados? Onde estão os nove? Não se achou quem voltasse para dar glórias a Deus, a não ser esse estrangeiro?” (Lucas 17.17-18). Aqueles que eram do próprio povo da qual se esperava a gratidão, sumiram, preferindo se voltarem ao seu sistema religioso escravizante; já o estrangeiro samaritano, da qual os judeus não esperavam nada de bom, foi o único que lembrou de voltar para agradecer antes de seguir seu caminho à Samaria.

Que lições aprendemos nesse texto bíblico sobre a gratidão?

1 A GRATIDÃO NOS TORNA IGUAIS

Jesus não faz uma desumanização dos estrangeiros, tratando-os como animais ou como baratas que precisam ser envenenadas, eliminadas, queimadas e excluídas. Ao contrário, Jesus torna as pessoas iguais. Não há diferenças entre elas. Não poderão mais ser escravizadas por sistema algum, quer religioso ou não. Para Jesus, os estrangeiros são iguais aos do próprio povo.

Essa palavra é poderosa para um mundo em que pessoas que dizem crer em Deus querem levantar muros entre pessoas e nações, como se muros pudessem resolver todos os problemas da humanidade. Em Jesus, todas as pessoas são tornadas exatamente iguais, não importando cor, gênero, raça, nacionalidade, idioma, bens etc. Roger Scruton, um falecido filósofo inglês diz: “Nossas sociedades foram erigidas sob o ideal judaico-cristão de amor ao próximo, segundo o qual os forasteiros e os locais merecem igual atenção. Exige de cada um o respeito pela liberdade e pela soberania de cada pessoa”1. A gratidão nos torna iguais. Somos todos humanos. Isso nos leva ao respeito.

Já a ingratidão nos torna desiguais. O ser humano ingrato quer ser melhor que o outro, diminuindo ou até desumanizando a outra pessoa. O ingrato quer ser seu próprio deus. Por isso, ele não respeita a ninguém. O preconceito e a intolerância são frutos de uma sociedade ingrata que não enxerga para além do próprio consumo e do próprio umbigo. A pessoa ingrata não vê as belezas da vida; também está cega para a beleza das diferenças humanas; não contempla a diversidade como boa. A pessoa ingrata faz de tudo para ser diferente dos outros ao não se alegrar com o que tem, seja pouco ou muito. A ingratidão gera a cultura do cancelamento, do ódio e da discriminação.

Portanto, sejamos gratos. Estamos vivos; em nossas veias corre o mesmo sangue; viemos e vivemos todos e todas na mesma terra; habitamos a mesma casa comum chamada terra; ser grato é saber que não sou melhor ou pior que ninguém, mas humanamente igual, assim como Jesus que olhou de modo igual para os nove judeus e para o único samaritano.

2 A GRATIDÃO NOS TORNA IRMÃOS

Além de iguais, somos todos irmãos e irmãs. Somos membros da mesma família. Aquilo que afeta a um de nós, afeta a todos nós. Quando vemos notícias tristes ou trágicas na televisão ou internet, não são pessoas alienadas de nós que estão sofrendo, mas são gente da nossa família humana. Havia dez leprosos. A partir do momento em que estavam sofrendo, a questão das diferenças entre os judeus e samaritanos foi gentilmente esquecida. A irmandade entre eles era mais importante que tudo naquele momento de sofrimento.

Já os ingratos são todos descendentes de Caim que não foi capaz de suportar ver a alegria de seu irmão Abel ao ponto de assassiná-lo. A pessoa ingrata não aceita seu irmão como é. Ao contrário, procurará eliminá-la por ser diferente. Ou a pessoa se adequa, ou será excluída. Muitas vezes, bastam alguns cliques na internet para excluir alguém, como se aquela pessoa nunca tivesse existido.

Quem não é grato pelo que tem, terá inveja daquilo que os outros tem. A inveja e a ingratidão são lobos que caminham juntos. Quem os alimenta, corre o risco de também ser devorado.

Portanto, como irmãos e irmãs, sejamos unidos e gratos pelo que temos e por aquilo que outros tem. Ao mesmo tempo, sejamos gratos na solidariedade com quem menos tem.

3 A GRATIDÃO NOS TORNA LIVRES

A gratidão é um atributo de pessoas livres. O escravo não agradece ao seu escravizador; o oprimido não irá agradecer ao seu opressor; o excluído não irá agradecer ao seu exclusor; só pode agradecer quem é realmente livre!

Nove voltaram para seu sistema religioso escravizante após serem curados. Já o samaritano, ao descobrir o que é liberdade, ofereceu-a primeiramente ao Senhor que o curou. Sendo livre da doença, do sofrimento e da exclusão social, voltou com alegria, glorificando ao Mestre. A liberdade o levou à gratidão.

Portanto, ao sermos pessoas livres, não nos submetamos a nenhum jugo de escravidão. Sejamos livres para agradecer – na prática: livres para ofertar, livres para contribuir, livres para a solidariedade, livres para acolher, libres para compartilhar, livres para escutar quem tem muito a falar, livres para abraçar, livres para cuidar... Enfim: livres para amar a Deus e as pessoas. Tudo isso é ser livre para agradecer.

Amados irmãos, amadas irmãs,

o texto bíblico termina com Jesus dizendo estas palavras: “Levante-se e vá; a sua fé salvou você”. (Lucas 17.19). Aquele samaritano pôde levantar a sua cabeça e seguir a sua vida com liberdade e gratidão. Ele não poderá ser escravizado por nenhum tipo de preconceito ou discriminação, pois compreendeu o poder do amor. Ele foi salvo pela fé. O critério para pertencer ao povo de Deus já não é mais o território, a família, o sangue ou a raça, mas crer e confiar nos ensinamentos de Jesus.

Em nossa liberdade, ergamos as nossas cabeças com dignidade. Vamos agradecer com alegria e disposição. A fé nos salvou. A fé em Jesus nos torna pessoas iguais. Assim como aquele samaritano, desejo que possamos neste culto de Ação de Graças usarmos da nossa liberdade para nos voltarmos inteiramente a Jesus para glorificá-lo com nosso tempo, talento e tesouro. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.


5º DOMINGO APÓS PENTECOSTES - AÇÃO DE GRAÇAS | VERMELHO | TEMPO COMUM | ANO C

10 de Julho de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 141.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 11 / Versículo Final: 19
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67545
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