Amados irmãos, amadas irmãs,
como ter fé quando aparentemente o mundo ao nosso redor está desabando? Como ainda crer em Deus quando tragédias e mais tragédias se fazem cada vez mais presentes? Como ter fé quando enfrentamos crises emocionais? Como crer em Deus quando a doença faz parte da nossa vida? Como ter fé quando há conflitos na família? Como ter fé quando poderosos entram em conflito armado? Como perseverar na fé quando enfrentamos o luto? Enfim, como ter fé?
A grande verdade é que somos tentados diariamente em nossa fé. Todos os dias aparecem novos problemas que nos tentam à descrença e a acreditarmos que Deus, a Salvação e o céu não passam de uma mentira mitológica, assim como o Papai Noel e o coelhinho da Páscoa. O mundo está se tornando cada vez mais descristianizado. Por isso, torna-se cada vez mais difícil ter fé em meio a pessoas que convictamente não possuem fé. Esse é o problema do ateísmo, da descrença, da desistência da fé.
De outro lado, há o grave problema das “fés falsas” que manipulam, escravizam e abusam da mente das pessoas. Se de um lado enfrentamos a descristianização do Ocidente, de outro vemos acontecer uma espécie pseudocristianização1 onde os conteúdos da fé são manipulados para que pessoas sejam manipuladas e sirvam ao interesse de quem se aproveita da fé para encher seus bolsos. São “igrejas comerciais” onde há apenas negócios da fé e muita corrupção.
Portanto, como viver pela fé em um mundo que, de um lado, perdeu a fé e, de outro, tem fé demais em mentiras golpistas? Como viver a fé verdadeira em um mundo que tenta nos convencer a todo custo que todas as “fés” são válidas e igualmente salvíficas? – E aqui não estou falando da questão do respeito, mas das pessoas que já não sabem mais no que creem! Na pregação deste 9º Domingo após Pentecostes, convido a refletirmos em dois pontos: 1) as três mentiras e 2) as três verdades sobre a fé:
1ª MENTIRA: FÉ É CONHECIMENTO
Muitas pessoas confundem conhecimento com a fé. Acreditam que por conhecerem bastante da Bíblia, também possuem fé em abundância. Acham que entender intelectualmente a Palavra de Deus já é suficiente para a sua vida cristã. Entretanto, conhecimento Bíblico ainda não é a fé: Pilatos sabia que Jesus era inocente, mesmo assim não chegou a crer (cf. João 18.33—19.11); os soldados aos pés da cruz chegaram a reconhecer que Jesus era o Filho de Deus, porém, não chegaram a crer (cf. Mateus 27.54); os religiosos aos pés da cruz também fizeram uma confissão sincera sobre Jesus, mas em tom de deboche (cf. Mateus 27.2).
Ter conhecimento bíblico e teológico, por mais profundo que seja, ainda não significa ter fé. Até mesmo saber que Deus existe e que existe um único Deus também não significa ter uma fé verdadeira. Tiago, o irmão de Jesus, nos diz: “Você crê que Deus é um só? Faz muito bem! Até os demônios creem e tremem”. (Tiago 2.19). “Se você diz que acredita em Deus, poxa, que legal, até os demônios sabem fazer isso”. Portanto, conhecimento bíblico é importante, assim como o conhecimento sobre Deus é importante. Contudo, o conhecimento em si ainda não significa uma fé verdadeira.
2ª MENTIRA: FÉ É SENTIMENTO
Muitas pessoas confundem a fé com as emoções. Para estas pessoas, a fé é um êxtase advindo de uma experiência religiosa com Deus. Se a mentira do conhecimento é sobre algo racional, a mentira do sentimento é algo emocional. Para estas pessoas, a presença de Deus só será sentida quando o louvor for empolgante, quando a iluminação for inebriante e quanto a pregação falar aquilo que queremos ouvir.
Isso excluiria Deus do sofrimento. Se a presença de Deus está apenas onde podemos sentir, então como explicar a presença de Deus em meio ao luto, à dor e o desespero? Aliás, na Bíblia, a presença de Deus se manifesta justamente em momentos de sofrimento: os profetas foram perseguidos e alguns mortos; João Batista teve sua cabeça decapitada; Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, foi crucificado; Paulo foi apedrejado, preso e morto; todos os discípulos, com exceção de João, foram mortos pelo Império Romano. Mas, será que em todos esses sofrimentos Deus estava ausente? Ao contrário: Deus continua presente mesmo quando não conseguimos sentir a sua presença entre nós. Isso acontece quando decidimos tomar a nossa cruz e seguir a Jesus.
3ª MENTIRA: FÉ É ENERGIA POSITIVA
Uma das mentiras mais recentes sobre a fé é quando a fé é confundida com a “emanação de energias positivas”, a “modinha” do momento. Artistas de várias emissoras de televisão tem colocado a doutrina da “energia positiva” para dentro das nossas casas. Parece ser algo bonito. O que a gente esquece é que a isca é bonita para o peixe. No momento em que a armadilha se torna vidente, ninguém cai nela.
Fé não é energia positiva ou pensamento positivo; fé não é a convicção de que de eu tanto pensar em algo, querer algo e torcer por algo, aquilo vai acontecer. É assim que diz a propaganda “enquanto houver 1% de chance, teremos 99% de fé” do site betfair.com.
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Esse tipo de propaganda me assusta porque faz as pessoas confundirem futebol com fanatismo. E quando os “pensamentos positivos” e as “energias positivas” não foram suficientes, aí parte-se para as “energias de fato” através da agressão física daqueles que possuem um time diferente. A torcida é válida; querer muito algo é válido; esperar por uma vitória é válido; porém, isso ainda não é a fé.
Mas, então, o que seria a fé se ela não é conhecimento, sentimento ou energia positiva? O que é a fé segundo a própria Palavra de Deus? Quais deveriam ser as nossas convicções sobre a fé enquanto pessoas cristãs? Vamos às três verdades sobre a fé:
1ª VERDADE: FÉ É DÁDIVA
A fé verdadeira não é uma construção humana, mas um presente dado por Deus. Ninguém pode crer em Deus a partir do seu próprio esforço. Esse é um dos grandes problemas das três mentiras sobre a fé: todas elas dependem do esforço humano!
O apóstolo Paulo nos diz conforme Efésios 2.8: “Porque pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isto não vem de vocês, é dom de Deus”. Ou seja: a fé é um dom de Deus e não uma produção humana. Assim nos diz o prof. Dr. Euler Renato Westphal:
Fé é dom de Deus que renova o ser humano. Pela fé, morre o velho homem, aquele que se fundamenta nas suas possibilidades e nos seus recursos. Quem vive é Cristo e não mais o eu piedoso, que quer fazer por merecer a graça e os favores de Deus. Por meio de Jesus, somos, ao mesmo tempo, pecadores e justificados.2
Portanto, ninguém pode crer em Deus se antes o próprio Deus não nos conceder o dom da fé. Lutero diz no seu Catecismo Menor:
Creio que por minha própria inteligência ou capacidade, não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem chegar a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé.3
2ª VERDADE: FÉ É CONFIANÇA
A fé verdadeira é confiança na honestidade de Deus: ele prometeu algo e sempre cumpre aquilo que promete. Portanto, a fé não é o “pensamento positivo” sobre as coisas que queremos ou precisamos, mas a confiança na própria vontade soberana de Deus; no “pensamento positivo”, é o meu desejo que está em questão; na fé, é a vontade de Deus que está em questão.
Por isso, o desconhecido autor da carta aos hebreus faz uma lista de personagens bíblicos que confiaram em Deus, a exemplo de Abraão que obedeceu a Deus a ponto de estar disposto a entregar o seu próprio filho Isaque em sacrifício no monte Moriá. Aquele não era o desejo de Abraão, mas era a vontade de Deus. Abraão confiou em Deus! No fim das contas, Isaque foi poupado e um cordeiro foi sacrificado em seu lugar, assim como Jesus é o Cordeiro que veio para ser morto em nosso lugar. Portanto, fé é confiança.
3ª VERDADE: FÉ É RELACIONAMENTO
A verdadeira fé terá o seu centro em Jesus Cristo enquanto revelação de Deus na história. Por isso, a fé não é apenas o conhecimento intelectual sobre Cristo, ou o saber de Cristo, mas ter um relacionamento com Cristo. Assim, haverá exclusividade sobre a fé. Quando dizemos que cremos em Cristo e buscamos um relacionamento com ele, percebemos que nem todas as “fés” combinam com aquilo que é testemunhado nas Escrituras. Assim, as múltiplas filosofias de vida darão lugar a fé, a meditação enquanto “esvaziar a mente” dará lugar à meditação enquanto “encher a mente com a Palavra de Deus”, a reencarnação dará lugar à esperança da ressurreição, as generalizações sobre Deus darão lugar à crença no Deus-Trindade, assim por diante.
Não há como ser cristão e ter fé sem que Jesus faça parte de nossas vidas diariamente e não apenas em alguns domingos quando viemos ao culto cristão. Aliás, como nós luteranos somos muitas vezes preguiçosos neste assunto... Pessoas de outras “fés” talvez sejam muito mais comprometidas com o culto cristão que a gente que esporadicamente aparece na igreja...
Relacionamento pressupõe confiança e compromisso. Ou você de fato faz parte do Reino de Deus e vive o seu batismo com alegria, buscando da Palavra e da oração todos os dias, participando com alegria de todos os cultos, ajudando nos serviços do Reino de Deus, ou somos apenas “fiéis” nominais com aparência cristã, mas sem essência alguma da Palavra de Deus. Vir em todos os cultos não é fanatismo, mas relacionamento com Deus. E só esse fato já demonstra se estamos buscando primeiramente o Reino de Deus em nossas vidas e famílias ou não.
Amados irmãos, amadas irmãs,
busquemos a verdadeira fé cristã. Em toda a História da Igreja os verdadeiros cristãos precisaram combater ventos de doutrinas contrárias à Palavra de Deus. Hoje não é diferente. Há muitas “fés”, muitas doutrinas, mas também muito abuso, muita lavagem cerebral, muita manipulação da Bíblia e das mentes... Estejamos atentos! O diabo tentou Jesus através da própria Palavra. Porém, tenhamos tamanha confiança em Deus para que, assim como Jesus, saibamos responder às mentiras do inimigo com a Palavra.
Além disso, a fé não é um fenômeno apenas individual como o mundo prega hoje; ao contrário, a fé é um fenômeno coletivo: exige a vida em comunidade. A popular frase “já leio a Bíblia e oro em casa” não condiz com a verdadeira fé cristã, pois não há como viver a fé cristã senão na Igreja e na comunidade, junto a outros irmãos que confessam a mesma fé. Embora a solitude tenha seu lugar na espiritualidade cristã, a comunhão também é uma marca fundamental de quem crê em Jesus.
A fé também não deve nos alienar do mundo. Justamente por crermos em Deus devemos fazer diferença no mundo, auxiliando os pobres, incluindo os excluídos, animando os desanimados, orando pelos enfermos, sepultando os mortos, dando esperança aos desesperados, assim por diante. A fé não pode ser uma experiência que me leva para longe da realidade; a fé de verdade tem pé no chão!
Por isso, ter fé pressupõe a esperança e o amor. Enquanto a fé é olhar para o passado e ver aquilo que Deus já faz, a esperança nos faz olharmos e nos movimentarmos para frente, em direção ao futuro. A fé sem a esperança é inerte, morta; a esperança sem a fé é vazia, volátil. A fé dá sentido à esperança e a esperança dá sentido à fé. E o vínculo das duas é amor que une o passado (fé) e o futuro (esperança) como ação presente (amor). Teremos a oportunidade de demonstrarmos a nossa fé e a nossa esperança sempre que agirmos diante do próximo com amor, seja quem for. Sem o amor, a fé estará presa ao passado e a esperança se tornará um futuro impossível. Só o amor une a fé e a esperança: o amor de Deus pelo ser humano: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João 3.16).
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
9º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO C
07 de Agosto de 2022
P. William Felipe Zacarias
1 Pseudo = falso; ou seja, uma falsa pregação da fé cristã.
2 WESTPHAL, Euler Renato. Existência sob a cruz – Somos justos e pecadores. Jornal Evangélico Luterano. São Leopoldo, p. 8 - 9, 02 ago. 2012.
3 LUTERO, Martim. Catecismo Menor – 1529. 17. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2012. p. 11.