500 Anos da Reforma
Luteranismo e Cultura nas Américas1
Vítor Westhelle
Escola Superior de Teologia – EST Lutheran School of Theology at Chicago – LSTC
A proposição deste artigo é apresentar a maneira como Lutero é ou poderia ser de importância para a América Latina. Para tanto, desenvolvo meu argumento em dois momentos. Um é puramente sociodemográfico e está vinculado à expansão do protestantismo e particularmente do luteranismo; o outro é de caráter teológico, em que a teologia luterana de fato oferece opções para entender e operar em um continente dependente que busca sua autonomia e o direito de dizer sua própria palavra. O que vincula a reforma protestante ao movimento da teologia da libertação é o primeiro tema que gostaria de tratar neste estudo de mútuas relações entre a Europa e a América Latina. Estas teologias que se formaram em pontos diametralmente distantes do planeta tinham em comum inícios modestos, tentativos, assim como também vigorosos e polêmicos que nasceram de um clamor do povo ouvido por Deus. Nesta descrição não poderia deixar de mencionar o catalisador em torno do qual o discurso teológico se arregimentou: a Bíblia. A razão do apelo à Bíblia decorre de dois fatores principais. O primeiro deve-se ao fato de que as escrituras marcam, na literatura ocidental, o momento em que classes subalternas (mulheres e homens nômades, migrantes, escravos, pescadores, carpinteiros, etc.) aparecem como protagonistas principais de uma literatura que adentrou o nível das grandes obras literárias. Não é de surpreender que estas vozes bíblicas ressoassem no consciente de grupos subalternos tanto na época da Reforma quanto na América Latina.
The proposition of this article is to present the way Luther is or could be of importance for Latin America. Therefore, I develop my argument in two stages. One is purely sociodemographic and is linked to the expansion of Protestantism and particularly of Lutheranism; the other is of theological character, where the fact of Lutheran theology offers options to understand and operate in a dependent continent that seeks for autonomy and the right to say its own word. What binds the Protestant Reformation to the movement of Theology of Liberation is the first theme that I would like to address in this study of mutual relations between Europe and Latin America. These theologies that were formed in diametrically distant parts of the world had in common modest ‘essay’ beginnings, as well as a vigorous and controversial begining from a cry of the people heard by God. In this description, I could not forget to mention the catalyzer around which the theological discourse enlisted: the Bible. The grounds of appeal to the Bible stems from two main factors. The first is due to the fact that the scriptures mark, in Western literature, the time subaltern classes (women and nomads, migrants, slaves, fishermen, carpenters, etc.) appear as the main characters of a literature that entered the level of great literature. It is not surprising that these biblical voices resonate in the consciousness of subordinate groups both at the time of the Reformation and Latin America.
Lutero e América Latina
Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. ... A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. ... Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. .... Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.
Walter Benjamin “Sobre o Conceito de História”
Inicio com esta citação de Walter Benjamin por dois motivos que gostaria de ressaltar. Primeiro é que todo passado que não é rememorado como um evento que interfere no presente é uma perda que nos distancia da felicidade (redenção). E este é o passado dos vitimados pelas barbáries de uma história acomodada ao silêncio. Por alguma conjuntura histórica, Lutero, perseguido como foi, escapou deste olvido e isto continua enriquecendo a humanidade, ainda que tenha sido ajustado à “tradição ao conformismo”. O segundo motivo é que neste rememorar o reformador insere-se no nosso presente como um “relampejo em momento de perigo” a favor dos que foram e são, como ele, perseguidos. Não se trata, portanto, de reverenciar uma figura monumental a ser estudada como se estuda um arquivo para estabelecer aquilo “como de fato foi”.
Quando o monge agostiniano Martim Lutero, no dia 31 de outubro de 1517 afixou na porta da igreja do castelo de Wittenberg suas 95 Teses sobre a venda de indulgências, desencadeando assim o movimento de reforma da igreja, os europeus celebravam um quarto de século de presença na América Latina. Não consta na imensa obra de Lutero qualquer referência à Conquista, muito embora as atrocidades cometidas pelo regime das encomendas, imposto pelas coroas ibéricas, não fosse segredo na Europa. Aliás, o único dos principais personagens da Reforma que denunciou virilmente os abusos foi o reformador de Strassburg, Martin Bucer. Mas existem algumas coincidências que vinculam de maneira curiosa Lutero à América Latina.
Em 1525 Lutero publica sua obra o Servo Arbítrio, defendendo a passividade da fé (ao contrário da atividade efetiva do amor) contra Erasmo de Rotterdam, que tinha simpatias pela Reforma, mas defendia o livre arbítrio em questões de fé. Erasmo, brilhante humanista de espírito gentil, não contestou a Lutero (até por suas afinidades com a Reforma). No entanto, quem escreve uma obra em resposta a Lutero é o dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, o infame defensor da guerra justa contra os indígenas na América Latina. A postura ética de Sepúlveda, tragicamente revelada na disputa de Valladolid de 1550-51, contra Ias Casas, acabou sendo decorrente de seu argumento dogmático de 1527 contra Lutero de que a fé pode ser efetivamente imposta, já que esta é, para Sepúlveda, de livre escolha. Aí está um dos “relampejos” de Benjamin, quando o que parece ser uma afetada disputa dogmática sobre o livre arbítrio acaba tendo consequências ideológicas de grande monta e alto custo humano ao justificar a guerra contra indígenas por sua fé.
Outra conexão entre Lutero e o Novo Mundo é ainda mais curiosa. Nos autos de fé que eram promulgados contra os assim chamados heréticos nas Índias Ocidentais é que constava, de 1520 até 1555, o seguinte veredito contra os indígenas pagãos e outros infiéis: “Deixaram este reino para se tornarem luteranos”. Praticamente nada se sabia da teologia luterana nestas latitudes, no entanto o nome de Lutero já era uma metonímia para rebeldia, revolta e heresia. A figura de Lutero foi transfigurada para denotar rebeldia.
Tal transfiguração, mas por motivos opostos, aconteceu, mais recentemente, na América do Norte, quando um rapaz batista chamado Michael King Junior decidiu, já adulto, mudar seu nome para Martin Luther King Jr. Seguiu sendo batista (ainda que concluísse um doutorado sobre um teólogo Luterano, Paul Tillich).
O que me interessa apresentar é a maneira como Lutero é ou poderia ser de importância para a América Latina. Então desenvolvo meu argumento em dois momentos. Um é puramente sociodemográfico e está vinculado à expansão do protestantismo e particularmente do luteranismo; o outro é de caráter teológico, em que a teologia luterana de fato oferece opções para entender e operar em um continente dependente que busca sua autonomia e o direito de dizer sua própria palavra. O que vincula a reforma protestante ao movimento da teologia da libertação é o primeiro tema que gostaria de tratar neste estudo de mútuas relações entre a Europa e a América Latina. Estas teologias que se formaram em pontos diametralmente distantes do planeta tinham em comum inícios modestos, tentativos, assim como também vigorosos e polêmicos que nasceram de um clamor do povo ouvido por Deus. A voz profética se fez ouvir nas incipientes articulações com a ousadia de dizer a verdade em sua plenitude, o que no Novo Testamento é designado pela palavra parrhesia. Mas trata-se mais do que profecia. Esta palavra descreve com precisão a transição entre o profeta e o apóstolo, aquele que não apenas anuncia julgamento e promessa, mas que também se atém firme à palavra revelada do messias e a enuncia. Enquanto o profeta anuncia um futuro, o apóstolo é um enviado a dizer que este futuro se realizou e está a se realizar. A parrhesia, o falar com ousadia, vem da urgência apocalíptica de anunciar não o fim dos tempos, mas o tempo do fim. Esta urgência apocalíptica se encontra tanto no conteúdo quanto no estilo que constituiu o berço natal tanto da Reforma quanto da teologia da libertação.
Uma olhada retrospectiva aos imensos volumes produzidos e compilados de um Lutero, ou de um Zwinglio, Melanchthon, Bucer, Calvino, etc., nos distrai do fato de que assim não foram produzidos nem intencionados nas suas origens. Surgiram de um confronto com os poderes que fez um monge dizer à custa da própria vida: “Aqui estou; de outra maneira não posso”. E, assim, quem também conhece as publicações internacionalmente renomadas de um Juan Luis Segundo, Gustavo Gutiérrez, Joseph Comblin, Jon Sobrino, Leonardo Boff, não se dá conta de que estão edificadas em um movimento apocalíptico que começou por dizer: “Deus acampou entre nós”, “Deus ouviu o clamor de seu povo”.
Lutero, antes de tudo, era um teólogo ocasional e panfletário (Alves), mormente no período decisivo da Reforma, isto é, a década que se seguiu à divulgação das 95 Teses. Isto significa que era um teólogo contextual. Em suas próprias palavras, “só a experiência faz um teólogo” (TR #46), em meio às suas tribulações (Anfechtungen). Assim, como lembra Melanchthon na oração funeral de seu amigo, ele tampouco estava livre de virulentas investidas que, diga-se, nem sempre foram muito felizes. O próprio Lutero mencionava o fato de seus escritos serem considerados pelos literatos da época como indoutos e panfletários, sem a grandeza das sumas e dos compêndios dogmáticos – em suma provocantes, irresponsáveis e irrelevantes – e ria-se disso. O próprio Melanchthon, achegado aos escritos sistemáticos da época, fazendo referência a tais críticas, responde com as palavras do humanista Erasmo: “Quando a enfermidade é tão severa, Deus, nestes últimos tempos (eis o motivo apocalíptico!), nos deu um médico ríspido”.
Diferente não o foi com os primórdios da teologia da libertação em que se produziam localmente inúmeras publicações. Por exemplo: folhetos impressos com mimeógrafo para o uso ocasional das comunidades de base, em folhetins de protestos do movimento estudantil e em cartazes que se afixavam em lugares públicos, ou ainda em faixas em marchas de protesto. E assim, como na Reforma em que as gravuras em litografia proviam desenhos sarcásticos sobre as condições vigentes, a proliferação de desenhos e caricaturas humorísticos descrevendo com sarcasmo a realidade latino-americana foi um fator a não ser desprezado no desenvolvimento da teologia da libertação. Estes recursos gráficos eram tanto um motivo de humor que refletiam e criticavam condições sórdidas, como um recurso pedagógico para populações que, tanto na Alemanha da Reforma como na América Latina, não liam com muita desenvoltura, se é que liam. Então era esta cultura panfletária, que no mundo literato é recebida com desdém, que marca um vínculo a ser enfatizado entre a teologia da América Latina e a da Reforma europeia.
No caso da Reforma a proliferação dos panfletos está documentada desde 1518 (Laube, Flugschriften) e compraz não apenas libelos de religiosos, mas de muita “gente simples” (gemeine Mann), trabalhadores manuais organizados em grêmios de artesãos (Zünften), espécie de sindicatos. Estes contribuíram com panfletos de sua autoria à causa protestante (Arnold, Handwerker aIs theologische Schriftsteller). Na América Latina um processo similar se desenvolveu. A isto se chamou de “pequena literatura” (Kleinliteratur: Brandt, Gottes Gegenwart), que aos poucos foi recebendo articulações mais elaboradas e publicações que receberam, então, a designação de teologia da libertação. Assim como na Reforma houve um avanço desta literatura seminal de panfletos a disputas e já então a tratados mais elabora-dos e extensos, também na literatura teológica latino- americana dos panfletos vieram debates, ensaios, até chegarmos aos livros que hoje encontram um mercado global. A tendência é de uma literatura fragmentada de origem e estilos diversificados para uma cuja unidade se forma aos poucos; dizendo de outra maneira, de uma literatura popular, contextualmente enraizada na particularidade a uma mais abstrata, sistemática, que busca universalizar-se, certamente a custo de um “elitismo” que corre sempre o risco de perder contato com suas origens.
Nesta descrição não poderia deixar de mencionar o catalisador em torno do qual o discurso teológico se arregimentou: a Bíblia. A razão do apelo à Bíblia decorre de dois fatores principais. O primeiro deve-se ao fato de que as escrituras marcam, na literatura ocidental, o momento em que classes subalternas (mulheres e homens nômades, migrantes, escravos, pescadores, carpinteiros, etc.) aparecem como protagonistas principais de uma literatura que adentrou o nível das grandes obras literárias (Auerbach, Mimesis). Não é de surpreender que estas vozes bíblicas ressoassem no consciente de grupos subalternos tanto na época da Reforma quanto na América Latina. A tradução da Bíblia e a sua releitura pelos desfavorecidos Ihes deram uma voz que se chocou com os interesses das classes dominantes, eclesiais ou seculares. O segundo fator é que a linguagem que a Bíblia avalizou rompeu a crosta ideológica dos grupos dominantes que se propunham como intermediários dos desígnios humanos. Afirma-se, assim, o direito de cada pessoa constituir-se, em última instância, em senhora de seu destino, tendo só Deus a quem prestar contas diretamente; afirma-se o sujeito livre! Daí a importância da crítica ao Magistério romano durante a Reforma (que foi o ponto nevrálgico da Sola Scriptura) e do controle dos meios de comunicação das oligarquias e burguesias latino-americanas, apoiadas em larga medida pela hierarquia eclesiástica (maiormente Católica Romana, mas também protestante: Alves, Protestantismo e Repressão).
O uso da noção de liberdade na Reforma acerca-se, assim, do emprego do conceito de libertação na América Latina exatamente por esta constituição da subjetividade. A dificuldade de ver a proximidade desta conexão deve-se à tradição no entendimento de liberdade como conceito negativo (que surge com o iluminismo escocês no século XVIII): ser livre é não ter o espaço privado do indivíduo transgredido por outrem. Mas, na definição que Lutero provê da liberdade em “Da Liberdade Cristã” (“Livre de tudo e servo de todos”), o pressuposto não é o liberalismo do século XVIII que faz a afirmação soar um paradoxo. Mas este paradoxo é possível entender considerando-se a estrutura estamentária do medievo. Liberdade definia-se em relação a quem está abaixo no status social, enquanto dever é a obrigação inerente devida a quem está acima. Portanto, o paradoxo se resolve nesta simples paráfrase: o cristão é livre em relação a quem está acima (que lhe demanda servidão) e servo em relação a quem está abaixo (que lhe são serviçais). O conceito de libertação, por sua vez, refere-se à liberdade do oprimido em relação a quem lhe sujeita e também do opressor que é livre para servir a quem oprimia (Freire, Pedagogia). Assim há uma quase identidade entre os conceitos. A diferença, no entanto, consiste no fato de libertação ser entendida como um processo coletivo, enquanto liberdade para os reformadores ainda é vista primariamente em termos individuais.
Procedimentos Metodológicos
1. O projeto colonial europeu recrutou a teologia para seus fins e alguns de seus melhores teólogos a isso se serviram, enquanto o caráter de marginalidade da teologia saxônica de Lutero no início do século XVI foi ofuscado com o passar dos séculos e ajustado ao conformismo tradicionalista da ortodoxia protestante.
Há dois séculos Schleiermacher, o aclamado pai da teologia protestante moderna e patrono do liberalismo teológico, escrevia em sua Doutrina da Fé (Glaubenslehre): “... nada de herético pode ainda surgir. De fato, a igreja inteira-se a si mesma e a atuação de fés estranhas não têm importância alguma.
Mesmo nos limites da igreja e nos seus campos de missão, no que toca à formação da doutrina, nem sequer contam. Se nos novos convertidos o que Ihes resta da antiga piedade, somente assim se viesse à consciência como doutrina, seria considerado como heresia”2. Mas desnecessário é dizer que para o teólogo berlinense esta hipótese não existe.
Esta passagem me parece muito interessante e reflete uma postura que, ainda que não confessionalmente luterana (Schleiermacher era um teólogo Reformado, i.e. de tradição calvinista), era também compartilhada por luteranos nesta época de colonialismo triunfante ao início do século XIX. A igreja vive de seus próprios recursos dogmáticos e nada mais tem a aprender, ainda que resíduos de superstições permaneçam por longo tempo, mas não afetam a doutrina. Este é um primoroso resumo do que poderia ser chamado “Manifesto do Colonialismo Missionário”. O Terceiro Mundo, o campo de missão, não conta, exceto como objeto de missão e território de expansão colonial. Um século depois de Schleiermacher a situação não havia mudado muito, embora date do início do século XX a emergência do pentecostalismo no norte do Brasil, que eventualmente iria transformar a demografia eclesiástica tradicional da América Lati- na e expandir-se pelo mundo. Mas então ninguém levou isso muito a sério. O cristianismo, particularmente o protestantismo, mantinha sua cidadela intacta no eixo norte-Atlântico, e cristãos abaixo do Equador eram numericamente uma minoria, e insignificantes quanto ao acesso ao poder eclesial e teológico. Meio século depois, quando da formação da Federação Luterana Mundial – FLM (1947) e do Conselho Mundial de Igrejas (1948), os participantes do Terceiro Mundo eram mal representados. Quanto aos luteranos, estima-se que, então, seu número no Terceiro Mundo não chegasse a 10%. Hoje, pelos dados da FLM, aí já se encontram cerca de 45%; e o número continua a crescer. Os luteranos estão um pouco atrás de outras famílias confessionais, como católico- romanos, batistas, episcopais, presbiterianos e metodistas (sem mencionar os pentecostais). Estes já migraram em massa. Hoje 60% ou mais dos membros das igrejas cristãs têm seus rebanhos em pastos abaixo do Equador. Os luteranos estão seguindo, com um pouco mais de lentidão, a mesma migração.
Por que introduzi o assunto com a citação de Schleiermacher? Porque importam as perguntas que surgem de contextos e conjunturas específicas e não apenas as respostas, os dogmas, os sistemas. Para a Reforma, a igreja não é apenas a ecclesia docens, a igreja docente, mas é sempre também a ecclesia discens, a igreja discente, sempre a aprender de novos contextos, novos lugares.
Lutero, no início do século XVI, estava ciente de que pregava e escrevia teologia das margens de um império político e eclesial. Esta consciência de marginalidade selou sua teologia e nutriu sua rebeldia. Desde seus primeiros escritos públicos, o que o marcou foi levantar questões que lhe pareciam óbvias, mas não eram perguntadas: Por que indulgências? Por que não comungar com ambos os elementos?
Por que centralização eclesial? Por que o magistério quando temos as escrituras e a razão? Por que o povo não pode escolher seus líderes? Por que usura? Por que não um Deus misericordioso? E assim por diante. Perguntas tais são hoje aceitas como óbvias, mas a seu tempo poucos viam que o rei estava nu. Há uma história que talvez vocês conheçam. Por volta de 1990, quando se reestruturava a geopolítica mundial com o fim da guerra fria, havia um grafite nos muros da Universidade de Bogotá, Colômbia, que dizia: “Quando teniamos casi todas Ias respuestas, se nos cambiaron Ias preguntas”. De fato, é a emergência de novas e inusitadas perguntas que desestabilizam as respostas dadas a velhas perguntas que já não estão mais em pauta.
2. À medida que o luteranismo segue outras famílias confessionais na migração ao sul, Lutero, o teólogo contextual por excelência, oferece traje- tórias a seguir e uma força motivadora que Hegel, que se dizia luterano modelar, chamou de “espírito protestante”; este “espírito” não descreve um corpus doutrinal, um cânone, um magistério, mas um procedimento, uma postura, um evento.
Novos contextos trazem novas perguntas e uma disposição de procurar novas e imaginativas respostas. Todos os regimes de verdade têm seus “cânones. Assim também os têm os luteranos, como os textos de Lutero, os escritos confessionais, ou interpretações celebra- das como autorizativas, traindo assim o próprio espírito protestante. Novas perguntas serão julgadas ilegítimas pelos curadores do “cânone” e as novas respostas serão consideradas heréticas. Novas perguntas tendem a ser excluídas pelos regimes de verdade tacitamente aceitos. Esta, então, é a tarefa que nos legou o movimento protestante que desponta com Lutero: inquirir estes textos “canônicos” da perspectiva de outros contextos não hegemônicos, não dominantes, mas que se fazem necessários já pelo simples fato demográfico de uma presença significativa, quando não majoritária, de fiéis em outros e novos contextos.
E talvez as perguntas mais instigantes não surjam somente do fato de que a maioria numérica de cristãos venha a estar em contextos que a academia europeia ou norte-americana amiúde não sabe ler, e a religiosidade, impregnada por elementos contextuais, é considerada apenas resíduo de uma piedade passada. O fato ainda mais importante, no entanto, é que esta maioria de cristãos em outros e novos contextos encontra-se nestes como minoria! Aqui a América é a exceção, assim como o sul da África. Tome-se a Índia, por exemplo. Cristãos, de todas as denominações, representam por volta de 3% da população (ainda assim há mais cristãos na Índia que em todos os países escandinavos somados!), ínfima fração num contexto de pluralismo religioso incomparável.
Mas neste quadro os luteranos são a minoria da minoria, e isto vale também para a América Latina. Este dado demográfico é de importância para uma teologia que surgiu em um contexto de marginalidade política e econômica como era a Saxônia do início do século XVI, quando uma maneira diferente de fazer teologia surgiu como opção marginal e minoritária, algo muito distinto do que surgiu com as igrejas territoriais na Alemanha depois da Paz de Ausburgo (1555) com seu cuiús régio, eius reliqio, ou das igrejas nacionais luteranas dos países escandinavos ou da Igreja da Inglaterra. Com a chama- da Paz de Ausburgo acabou-se a heresia (não é coincidência que desapareça dos autos de fé na mesma data a acusação de serem “luteranos” os infiéis na América).
Então, reencontrando seu caráter minoritário, e por isso também revolucionário, a potencial idade da teologia luterana volta a ser nutrida, por razões de sua genealogia, como movimento minoritário e marginal. Aí encontramos elementos libertadores. Por exemplo, o sincretismo é uma necessidade tática de uma posição minoritária que queira ser contextual e que surge em contextos de pluralismo. É típico luterano, desde o século XVI, o debate sobre assuntos que são adiaphora (dispensáveis) como sendo algo que pode ser bom (bene esse) ainda que não da essência (esse)? Como ritos ou práticas culturalmente enraizadas e religiosamente distintas. Perguntas assim que destes contextos nos vêm são sérias e não raro inusitadas. No entanto, podem ser elaboradas e examinadas dentro de uma diferente leitura, diferente dos textos canônicos que se endure- ceram no forno do tempo. Em todas estas conjunturas – na Ásia, na África, na América Central, no Caribe e na América do Sul – grupos se reúnem e buscam assessoria para formular a relevância da teologia para seus lugares e seus desafios. Há uma afinidade com o luteranismo nestes grupos de base. De minha experiência com esses grupos, não se trata de se a teologia tem ou não uma fachada confessional ou vinculação institucional. Mas trata-se de uma busca de linguagem para expressar a fé contextualmente relevante. E toda teologia é contextual; a realidade vem junto com o texto. Como disse o poeta Vinicius de Moraes, “ninguém é universal fora de seu quintal”.
3. Contextualização: A teologia tem a tarefa de detectar no presente coisas que guardamos das representações do passado e sua relevância para o momento e onde este se situa. Esta é uma lição de contextualização de que Lutero era um mestre. Ele disse: “Somente a experiência faz o teólogo”.
A tarefa da teologia é exatamente a de ver como a Bíblia e a tradição se confrontam com uma dada conjuntura. Certamente não é a tarefa prioritária fazê-lo por motivos antiquários ou arquivais, ou seja, descobrir origens e classificá-las. Isso se pode fazer de qualquer parte onde se tenha acesso às fontes e à medida que se as têm. Isso é o que se tem chamado de “mal de arquivo” (mal d’archive: Derrida), quer dizer, usar o passado para autenticar o presente. E isso implica um desprezo do presente e dos lugares que ocupa (e o presente sempre ocupa lugar, ou não é presente/dádiva). Isso é o que fazemos quando usamos categorias que outros contextos elegeram como centrais e por mímica os repetimos em completa abstração do presente situado em um lugar, nosso presente. Isso sucede com a linguagem tipicamente luterana sobre justificação, sobre os dois reinos, sobre lei e evangelho, etc. E, o que uma vez foi libertador, agora emudece, cala a linguagem local, suprime o vernáculo, fica engessado.
A importância do luteranismo me parece ser outra. É conhecer táticas e estratégias do passado para iluminar lutas do presente. Explico-me. É preciso, por exemplo, fazer com que aquele que ousou traduzir a mensagem da Palavra de Deus ao vernáculo seja ele mesmo rendido aos vernáculos. Um texto de 1525 sobre “Como Cristãos deveriam considerar Moisés” que é escrito em meio a sua luta com alguns anabatistas, que como alguns fundamentalistas, hoje, citavam as escrituras dizendo: “Esta é a Palavra de Deus”, revela um Lutero contextual como pouco se ouve. Ele diz: “Certamente esta é a palavra de Deus, mas vocês não são o povo a quem ela está proferida”. Há que escutar a palavra de Deus dirigida a um povo específico, a uma situação particular. Nisto Lutero, de fato, já está começando a falar outras línguas: português, espanhol, mandarim, finlandês, suaíle, inglês, malayalam, e assim por diante, tentando ter sempre mais fluência em cada vernáculo. Como bem colocou o bispo Pedro Casaldáliga, “A Palavra universal só fala dialeto”. Esta então é uma das tarefas: aplicar nos contextos, nas distintas conjunturas sociais e eclesiais a própria prática que definiu culturalmente a reforma luterana, e fazê-lo de maneira compreensível. Minha opinião é que é isso que intencionava dizer o bispo sueco Anders Nygren quando, em sua palestra na abertura da primeira assembleia da FLM, disse: “Não de volta ao passado, mas avante a Lutero” [forward to Luther].
4. Transfiguração: Não é a repristinação confessionalista, mas a “transfiguração” de Lutero que importa ao luteranismo quando fora de seu berço natal.
Outra tarefa que se impõe a minorias contextuais é curar-se do “mal de arquivo” que diz que só temos legitimidade se o fizermos como os alemães, ou suecos, ou norte-americanos o fazem e têm feito. Lutero precisa ser “transfigurado”. Isso é o que acontece na história bíblica da transfiguração (Mt 17) quando Jesus aparece a alguns dos seus discípulos falando com Moisés e Elias. Jesus nunca foi Elias nem Moisés e até discordou deles, mas foram eles que se transfiguraram em Jesus sem que esse rendesse sua identidade. É preciso ver o Lutero transfigurado nos “Luteros” de hoje sem que isso os tire de seus próprios desígnios e seus próprios lugares, sem que sejam contaminados pelo mal de arquivo. A passagem de Mateus sobre a transfiguração é precedida pela confissão de Pedro: “Tu és o Messias”. A próxima cena é Jesus contando de seu destino, e Pedro intervém, ao que Jesus responde: “Arreda! Satanás”. Pedro havia lido Jesus com o catequismo ou o cânone que tinha (Moisés, Elias e os profetas): Jesus deveria ser como Moisés ou como Elias. Pedro fez a correta confissão, mas não soube ler o contexto. Isso é a definição teológica do demônico: correta dogmática e inepta contextualização. A transfiguração é a história de como o passado deve se metamorfosear (metamorphethe, esta é a palavra traduzida como “transfiguração”) para dentro dos contextos presentes, e não o contrário. Lutero também metamorfoseou Paulo e Agostinho, mas não se fundiu a eles; vestiu o manto deles, mas na sua própria pele. É assim que Lutero se transfigura em quem hoje ainda diz como ele diante do imperador que exigia que recantasse seus ensinos: “Se não me convencem pelas escrituras ou por argumentos da razão, não renuncio. Isto sustento, de outra maneira não o posso. Que Deus me ajude”.
5. Inovação: A verdadeira posição luterana não está na letra, mas no espírito. A letra sustém, mas o evangelho renova. As obras de Lutero devem ser lidas e examinadas com cuidado para que então os livros possam ser fechados, e o evangelho, aberto.
Então há uma terceira tarefa programática. É preciso ter coragem de inovar ainda sem destruir o velho. A parábola de Jesus é pertinente à nossa tarefa: “Todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira de seu depósito coisas novas e coisas velhas”. (Mt 13:52) Os arquivos serão mantidos e sempre haverá entre nós versados escribas que deles sacarão relíquias preciosas. Mas há também que ousar. Esta é a herança de Lutero, que sabia da distinção entre tradição e tradicionalismo. “Tradição é a fé viva dos que já morreram, tradicionalismo é a fé morta dos que vivem” (Pelikan, editor geral das obras de Lutero em inglês). Com todos os defeitos que o reformador tinha e admitia, falta de ousadia não era um deles. Ainda não somos luteranos até ousarmos perguntas que nos remetem além dos cânones dominantes com suas respostas antiquadas. Estas respostas são como se alguém encontrasse uma chave na rua, mas não tivesse a menor ideia de que fechadura ela abriria. E este alguém achasse que a chave/resposta é tão importante que resolveu construir uma fechadura em que a chave funcionasse. Ela funcionou, mas não abriu absolutamente nada. Assim são os tradicionalistas e confessionalistas: construtores de fechaduras para chaves obsoletas.
Na América Latina esta opção teológica minoritária foi assumida por muitos teólogos da libertação. Entre estes, destaco o jesuíta uruguaio Juan Luis Segundo, que transfigurou Lutero ao propor que uma teologia libertadora deveria libertar a teologia. Ele sabia o que também Lutero sabia quando, ao início do movimento da Reforma, foliando com seu nome, assinava cartas e escritos como eleutherios, que em grego significa o libertador liberto.
Estas são as tarefas programáticas que nos lega a teologia luterana como uma postura minoritária e libertadora: contextualização, transfiguração e inovação. E esta é uma tarefa que se incumbe apenas a minorias que se encontram às margens dos saberes e poderes.
6. A teologia de Lutero está para a contextualização, transfiguração e inovação assim como a agricultura está para a colheita ou o casulo para a borboleta. O desafio está quando a colheita fracassa ou o casulo sufoca a larva.
O segundo objetivo é precisamente de desenvolver linhas de pesquisa que ofereçam abordagens prioritárias a temas da teologia luterana, particularmente de Lutero, de relevância para a América Latina e ao Brasil em particular. Esta me parece que seja a tarefa principal para o ocupante da cátedra. De momento presumo, em base ao que conheço da teologia de Lutero e da realidade latino-americana, que há três eixos temáticos a serem inicialmente desenvolvidos.
Eixos Temáticos
7. Justificação e escatologia estão intimamente relacionadas nas obras de Lutero, mas pouco foi feito para decodificar as dimensões espaciais e sociais destas doutrinas.
O primeiro eixo temático parece ser bastante óbvio à primeira vista. Trata-se do tema central da Reforma, a justificação por graça mediante a fé. Mas esta deve ser tratada não como outro tema (locus) dogmático, mas vista radicalmente sob uma perspectiva escatológica. A justificação neste sentido não é uma “doutrina”, mas descreve uma experiência limítrofe que é ao mesmo tempo “morte” e dádiva. Lutero costumava usar esta linguagem paradoxal e extrema ao se referir à justificação. E o fazia em termos muito realistas. Ela mata para dar vida e dá vida quando mata. Mas como entender isso sem espiritualizar? Lutero mesmo vivia e respirava um clima apocalíptico que é sempre uma situação existencialmente limítrofe, assolado pelas epidemias. Sociedades opulentas têm dificuldade de se relacionar com isso, o que hoje se compara à AIDS, especialmente na África subsaariana.
A justificação é, hoje, em muitas teologias ditas luteranas, espiritualizada e desencarnada, e a escatologia, deferida/postergada para uma data incerta no calendário ou para um místico nunc eternum (agora eterno). A palavra eschaton no Novo Testamento leva três significados distintos que nos textos originais são mesclados. Pode referir-se a um limite espacial como a fronteira de um território ou a mítica concepção do fim do mundo depois dos mares; pode também referir-se ao tempo e seus limites; assim como pode ser usado para designar o último em uma escala de classificação. Mas o sentido temporal é o único que tem sido usado na modernidade ocidental.
Mas, para a América Latina (assim como outras partes do Terceiro Mundo onde massas vivem este apocalipse), este tema assume um significado especial e muito real. Questões de vida e morte, dádiva e passagem estão inscritas em cada passo da existência cotidiana de agricultores sem-terra, de crianças de rua, de favelados, de povos indígenas em que o eschaton está na cerca da fazenda ao lado, na próxima esquina, ou na arma assassina; aí a morte é real e a celebração da vida é contagiante. Refletir a justificação sob esta perspectiva significa tomar conhecimento da importância de experiências escatológicas hodiernas. A saber: questões que vão desde enfermidades por contágio (como vírus e bactérias que transgridem os limites [ta eschata] epidérmicos do corpo, assim como também o fazem medicamentos que trazem saúde, soteria, salvação), até questões pertinentes à migração em espaços geopolíticos, fronteiras são transgredidas e aí há morte e há vida. É preciso explicar justificação na vida cotidiana. Estas são experiências escatológicas em que justificação e condenação, libertação e submissão são os polos da experiência. Pensar justificação como dádiva e morte assume, portanto, relevância peculiar nos contextos de vida subalterna característicos da realidade de opressão e marginalização.
8. A doutrina dos dois reinos ou regimentos é uma das doutrinas características do jovem Lutero que foi assimilada e difundida por outros reformadores (p. ex., Bucer, Melanchthon, Calvino), mas ela não chega a enfocar a distinção que Lutero mais tarde faz entre economia (oeconomia) e política (politia). Aí reside a sua contribuição especialmente a sociedades, como do Terceiro Mundo, onde estas esferas da vida real são claramente discerníveis, ao contrário da modernidade ocidental onde estas se imbricam a ponto de se confundirem.
O segundo eixo temático trata do outro assunto fundamental da Reforma que desde há um século tem sido chamado de “doutrina dos dois reinos” [Reiche/ Regimente] (o que prefiro traduzir como “regimes”). Mas o tratamento que este tema tem recebido na Europa e nos EUA vai desde enquadrar o problema como uma relação de lei e evangelho, até fé e política, ou mesmo igreja e estado. Mas a distinção de regimes se refere a uma questão mais ampla que é a distinção entre fé e amor, o que se recebe e o que se dá, entre recepção e ação, ou como Lutero insistia, entre bem- aventurança ou beatitude (pela qual nada fazemos) e santidade (que resulta de nossas obras de amor). Mas o que é importante nestas reflexões que Lutero produziu é a sutil e a precisa distinção que ele, nos anos 30 do século XVI, faz entre política e economia, avançando um tema que só será retomado séculos depois por Hegel, Marx e no século XX por Hannah Arendt e Gayatri Spivak. A importância disso para a América Latina já foi enunciada pela distinção que Paulo Freire faz entre conscientização e produção e, mais recentemente, na tipologia que o antropólogo Roberto DaMatta elaborou com as metáforas da “casa” e da “rua”.
O nascedouro desta questão pode ser remetido a Aristóteles com sua distinção de duas das três faculdades humanas: praxis e poiesis (a terceira sendo theoria) que está na raiz dos conceitos de política e economia desenvolvidos por Lutero. Na patrística grega (p. ex., em Basílio de Cesareia) esta distinção ainda é mantida, mas desaparece no período medieval para ser então retomada por Lutero ao distinguir com precisão entre oeconomia e politia, que corresponde à distinção entre desejo e interesse. Esta é uma distinção de extrema importância para o pleito teológico latino-americano. Os outros reformadores seguiram Lutero na distinção de regimes, o espiritual e o secular, mas nenhum outro chegou, como Lutero, a descrever a igreja como este evento que sucede entre a política e a economia (nos sentidos clássicos dos termos), na adjacência de ambos e emprestando de ambos, mas não se rendendo a nenhum. A igreja se demoniza quando se rende à política, com seus interesses, e se idolatriza quando se adapta à economia, na busca por atender e mitigar desejos. Mas a igreja, que para Lutero não possui um procedimento próprio enquanto é o espaço do ócio, do Shabat hebreu, precisa emprestar procedimentos da política na sua pregação e da economia na sua sacra mentalidade enquanto subsiste neste mundo.
9. “Somente a cruz é nossa teologia” é o mais sucinto e claro manifesto da reforma luterana (desde 1517-18) e continua sendo para quem a cruz é o símbolo da vida cotidiana. Mas a interpretação deste manifesto é devidamente escorada pelo maior consenso ecumênico jamais alcançado – O Concílio Ecumênico de Calcedônia (451).
O terceiro eixo a ser desenvolvido e que permite relacionar os dois primeiros é a cristologia de Lutero, sua interpretação do Concílio Ecumênico de Calcedônia (451) e sua intrínseca vinculação com a teologia da cruz. Este tema, para a América Latina, não carece de mais justificação senão a já produzida por vários teólogos/as das mais diversas origens confessionais que se voltam a Lutero quando este é o assunto, como o fazem Jon Sobrino e Leonardo Boff, por exemplo. Mas implicações desta cristologia vão muito além e são muito mais relevantes do que até agora tem se tido e são ainda mais radicais. O que tem Cristo a ver com o sofrimento? Exemplo de persistência? Lição sobre o sentido vicário da dor? Perdão dos pecados? Solidariedade com o povo sofrido? Na verdade Lutero é mais radical. Já em 1528 quando escreve sua “Confissão”, o Reformador desenvolve o que ele chamou de o terceiro modo de presença de Cristo (além do Jesus histórico e da presença real no sacramento).
Em resumo, o que ele diz é que a união hipostática da Fórmula de Calcedônia exige a afirmação de que Cristo está, segundo a carne (senão a nossa fé é falsa, o afirmou), transcendendo tudo, mas estando mais perto de cada coisa que cada coisa está de si mesma, quer dizer, mesmo na morte, ou acima de tudo na morte. Então à minha pergunta acima sobre a relação de Cristo com o sofrimento existe uma simples resposta: essencial identificação. É o próprio Cristo que sofre na carne do sofredor. É o próprio Cristo que está enterrado na tumba de quem morreu. E para Lutero isso não era uma metáfora. Era literal. A segunda consequência é que se Deus está em Cristo segundo a carne em todas as coisas, toda natureza também se faz corpo de Cristo. Isto tem implicações para a questão ambiental que não são apenas morais e éticas, mas profundamente vinculadas à questão da revelação e, sobretudo, da revelatio sub contrariis, a revelação no seu oposto. E a terceira implicação disso é que, para Lutero, como ele desenvolve em “Dos Concílios e da Igreja” (1539), a realidade de Deus em Cristo é híbrida. Não há uma essência ou uma identidade que possa ser isolada, muito menos manipulada. O híbrido é o que transita entre identidades. Não é uma nem outra e ao mesmo tempo as duas, ou mais de duas. A literatura pós-colonial define o hibridismo como caraterística mais relevante dos povos subalternos. Então esse é o Cristo: Deus, um criminoso condenado e executado em uma cruz, tudo de acordo com as 14 leis e autoridades da época. E assim transita entre céu e inferno enquanto faz sua morada entre os mortais.
Conclusão
Não me iludo. Quando cruzarmos o quinto centenário da Reforma, talvez a maioria dos Luteranos já se encontre no sul do planeta. Mas a hegemonia teológica tem uma inércia que levará muito mais tempo para que o sul tenha sua leitura de Lutero respeitada e validada, mas ela está ocorrendo onde teologias são contextualizadas, transfigurações subversivas ocorrem e surge a coragem de inovar. Esta leitura não é nem em conteúdo, nem em método o que hoje se faz no mundo norte-Atlântico. É algo híbrido transitando entre o resultado da pesquisa em Lutero que se tem feito por séculos e sua transfiguração em novos contextos sem medo de ousar vestir o manto de Lutero, mas na nossa própria pele. Um filósofo alemão do início do século XIX que se declarava Luterano de boa cepa, com o nome de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em um de seus axiomas disse: “Quando o absoluto cai na água, vira peixe” (Wenn das Absolute ausgleitet und aus dem Boden, wo es herumspaziert, ins Wasser fällt, so wird es ein Fish, ein Organisches, Lebendiges. HW 2: 543). Parafraseando: quando Lutero cai no Brasil, vira brasileiro. E assim se dirá para toda América Latina, África e Ásia.
Notas:
1. 1 Este artigo é a íntegra da conferência proferida pelo Prof. Dr. Vítor Westhelle no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 30 de ou- tubro de 2014.
2. 2 Glaubenslehre § 69
Vítor Westhelle é graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, de São Leopoldo, e mestre e doutor em Teologia pela Lutheran School of Theology at Chicago – LSTC. Leciona Teologia Sistemática na LSTC, assim como na EST e participa em comissões editoriais de 8 publicações de três continentes. Suas pesquisas concentram-se sobre a teologia contemporânea a partir de uma perspectiva latino-americana.
Algumas obras do autor:
WESTHELLE, Vitor. Theology of the Cross: A theology of revelation and a Lutheran understanding. The Lutheran, v. 25, p. 18-19, 2012.
____________ . Eschatology and Space: The Lost Dimension in Theology Past and Present. 1. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2012. v. 1. 207p.
____________ . After Heresy: Colonial Practices and Postcolonial Theologies. 1. ed. Eugene, OR/EUA: Cascade Books, 2010. v. 1. 181p.
____________ . O uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2008.
WESTHELLE, V. (Org.); SCHAPER, V. G. (Org.); OLIVEIRA, K. L. (Org.); GROSS, E. (Org.). Deuses e Ciências na América Latina. 1. ed. São Leopoldo:
OIKOS, 2012. v. 1. 392p.
OLIVEIRA, K. L. (Org.); SCHAPER, V. G. (Org.); WESTHELLE, V. (Org.); GROSS, E. (Org.); REBLIN, I. A. (Org.). Religião, política, poder e cultura na América Latina. 1ª ed. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2012. v. 1. 566p.
Outras contribuições: