Prédica: Hebreus 10.16-25
Leituras: Isaías 52.13-53.12 e João 19. 16-30 (31-37)
Autoria: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 30/03/2018
Proclamar Libertação - Volume: XLII
1. Introdução
Sexta-Feira da Paixão é uma data central no calendário litúrgico cristão. Por fazer memória da prisão, morte e crucifi cação de Jesus, passou a concentrar as mais diferentes formas de atenção e devoção ao longo do tempo.
O texto indicado para a pregação trata de um aspecto da interpretação da morte de Jesus: o sacrifício. Ao tematizar a morte de Jesus e sua relação com o ritual de sacrifício praticado em Israel, o texto aponta para a relação entre a morte de Jesus e o perdão dos pecados.
Este texto já recebeu atenção na edição do Proclamar Libertação II e IX. Nesses volumes, o texto é recomendado para a pregação no 1º Domingo de Advento. Nesse caso, o acento está na segunda parte do v. 25.
2. Exegese
Hebreus 10.16-25 pode ser dividido em duas partes maiores. Os v. 16-18 são uma parte e os v. 19-25 são outra. Alguns autores inclusive agrupam os v. 16-18 na unidade maior, que vai de 9.15-10.18 (sacrifício de Cristo cumpre a promessa da nova aliança), inserida no conjunto que vai de 8.1-10.18 e que trata
do ministério de Cristo como sumo sacerdote. Os v. 19-25 começam a unidade (10.19-12.29) que trata das aplicações práticas da nova aliança. “A caminhada parte da obra salvífica de Cristo (v. 19-21) e leva, pelo caminho da fé, da esperança e do amor (v. 22-25a), à meta do dia que se aproxima, o advento de Cristo (v. 25b)” (PL II, 1977, p. 242).
v. 16-18: O texto de Hebreus sugerido como perícope começa com uma transcrição das palavras do profeta Jeremias. Os v. 16-17 reproduzem o que está escrito em Jeremias 31.31ss. Essa passagem já havia sido mencionada em Hebreus 8.10. Na ocasião, o texto de Hebreus explora um trecho maior do livro de Jeremias.
Em Hebreus 8.10, a lei é “posta na mente” e “escrita no coração”. Agora a ordem é invertida. A lei primeiro é “escrita no coração” e depois “posta na mente”. O que o autor procura destacar é a necessidade de uma nova lei e a transformação que ela opera. O que está em jogo na mudança de uma para outra aliança é o tipo de lei. Na primeira aliança vigora a lei da carne. Agora vigora a lei do espírito. Na nova aliança a transformação é de tal natureza que não somente é eliminado o pecado, mas são infundidos no ser humano o amor, a esperança e a fé.
v. 16-17: O texto começa falando da aliança. Trata-se do acordo firmado pelo próprio Deus com seu povo. A primeira aliança foi escrita em pedras. Ela tem a lei sua orientação central. Não se trata de uma mera legislação a ser cumprida pela disposição humana. Nessa primeira aliança o ser humano precisava se esforçar para cumprir a lei e suas condições.
A expressão “depois daqueles dias” aponta para o momento de instituição da nova aliança, depois do cumprimento da antiga aliança. A aliança é instituída por Deus mesmo. A iniciativa é divina e a determinação é de Deus. Aos humanos resta acolher, obedecer e cumprir. Por isso as leis precisam ser postas nos corações e nas mentes: Pondo as minhas leis nos seus corações e inscrevendo-as na sua mente.
Ao falar de coração, o autor está aludindo à dimensão emocional do ser humano. A expressão destaca o ser interior da pessoa. Coração diz respeito ao ser humano real.
O texto também fala em “mente”. Aqui se trata da dimensão racional do ser humano. Em Romanos 12.2 Paulo fala da renovação da mente. Está em jogo a dimensão cognitiva do ser humano. A função racional do ser humano não está dispensada na nova aliança. Coração e mente, juntos, querem expressar a totalidade do ser humano, sua integralidade, totalidade. Bondade e razão orientam a nova aliança.
O objetivo da citação do v. 17 é mostrar que não há mais necessidade de qualquer sacrifício. O sacrifício perfeito já foi realizado. Na nova aliança a mente de Deus nem se lembra mais dos pecados, razão pela qual não há nenhuma necessidade de sacrifício. Na antiga aliança, cada sacrifício relembrava os pecados. Agora, na nova aliança, os pecados são esquecidos, não havendo necessidade de novos sacrifícios (Champlin, 1982, p. 600).
v. 18: Este versículo destaca o sacrifício da nova aliança. Visto que o perdão dos pecados é perfeito, fica eliminada toda e qualquer necessidade de sacrifícios. Desta forma fica sacramentada a superioridade do ministério sumo sacerdotal de Cristo: uma única vez e por todos os pecados de todas as pessoas em todos os tempos. A oferta de Cristo foi completa e final. Nada há que possa ser acrescentado para a salvação do ser humano. O perdão dos pecados é a característica da nova aliança.
v. 19-25: Os v. 19-25 tratam do privilégio de acesso à presença de Deus. A unidade pode ser subdividida em duas partes. Os v. 19-21 falam dos irmãos na casa de Deus. Os v. 22-25 trazem uma série de exortações fundamentadas na fé, na esperança e no amor.
v. 19-21: O v. 19 começa apelando para a ousadia. A palavra grega parresia, aqui traduzida por ousadia, fala de pessoas tomadas de coragem. O aspecto da iniciativa está presente. Como em toda a Carta aos Hebreus, o pano de fundo é o culto israelita. Nesse culto, o templo e o papel nele desempenhado pelo santo dos santos, como lugar considerado santíssimo pelos judeus, são fundamentais para o perdão dos pecados. Esse recinto não acessível a qualquer pessoa, nem mesmo a qualquer sacerdote, era visitado somente uma vez por ano pelo sumo sacerdote (cf. Lv 16.11-14) para entregar a Deus os pecados do povo, por meio da aspersão do sangue do cordeiro no propiciatório (Rm 3.25). O sangue era o passaporte do sacerdote para entrar no santo dos santos. Agora, por causa do sangue de Jesus, o acesso ao santo do santos, portanto, a Deus mesmo, está liberado. Todo acesso a Deus está liberado e em todo tempo. Não há mais restrições. Qualquer dia, qualquer lugar e qualquer hora é tempo de acessar Deus.
v. 20: O acesso é denominado de “novo e vivo caminho” (Jo 14.6). Jesus abriu um novo e vivo caminho por meio de sua morte e ressurreição. “Novo, porque foi recentemente aberto por Cristo”. Também é novo em relação ao antigo. Substitui o antigo. “Vivo, porque está ligado à pessoa de Jesus, que vive. Por isso este caminho não pode ser percorrido de modo independente ou desligado da pessoa de Cristo” (PL IX, 1983, p. 120). Nesse novo caminho todo crente é um sumo sacerdote (Rm 1.6). Tem acesso direto, catraca livre. Nada impede de chegar a Deus. Quem deseja pode se achegar à presença de Deus.
v. 21: Fala do grande sacerdote. Para falar da autoridade maior, o normal é empregar a expressão sumo sacerdote. Ao falar de Jesus como grande sacerdote, o texto distingue Jesus dos sacerdotes comuns, que tinham menor autoridade e, ao mesmo tempo, destaca a natureza da autoridade de Jesus. Ele não é um sumo sacerdote, como eram os sacerdotes da antiga aliança. Jesus é o sacerdote.
A expressão “sobre a casa de Deus” tem um duplo sentido. Por um lado, trata dos crentes como uma casa, um templo vivo, lugar onde habita o Espírito Santo. Por outro lado, casa de Deus também pode ser entendido como morada de Deus, lugar celestial (Ef 1.3), a casa onde os crentes se encontram com Deus, o templo. Três aspectos são destacados nessa unidade: ousadia para estar na presença de Deus, um caminho novo e vivo, e a presença do grande sacerdote Jesus.
v. 22-25: Discorrem sobre a fé, a esperança e o amor. Esses são os ingredientes fundamentais para uma vida espiritual. Aqui são apresentadas várias exortações, a saber: devemos nos aproximar; devemos nos apegar à profissão de fé; devemos promover a prática do amor; devemos apostar na mútua edificação; devemos continuar na comunidade.
v. 22: A expressão “aproximemo-nos” é retomada em diferentes momentos da carta (4.16; 7.15; 11.6). Por meio do novo e vivo caminho, podemos nos aproximar de Deus. Além de convite, a declaração expressa a possibilidade. O caminho está livre. A expressão “com coração verdadeiro” aponta para a sinceridade. Ninguém precisa fingir ou fazer de conta. Autenticidade é a palavra de ordem. Novamente é mencionado o coração, sede da decisões humanas. A palavra grega traduzida por “cheios” é pleroforia. Um coração autêntico e pleno de fé é o que precisamos para nos aproximar de Deus. Embora sendo dom de Deus, a fé também é expressão desse acolhimento. Não basta Deus doar a fé se não há quem a abrace.
Na sequência, o versículo fala de “coração aspergido”. A expressão alude à aspersão do sangue no propiciatório. O sentido da expressão é de um coração perdoado, limpo, purificado. Purificado da má consciência. A palavra grega suneidesis, aqui traduzida por consciência, é usada para distinguir o bem do mal. É empregada como se fosse um disposto ético presente no ser humano. Em outras palavras, Jesus permite que nos aproximemos para sermos libertados.
Por fim, o versículo ainda fala do “corpo lavado com água pura”. Aqui cabe lembrar que os sacerdotes levitas deviam passar por um banho de imersão antes de servir em seu ofício nas abluções batismais. A água pura alude à limpeza prática. Somente a água limpa pode limpar. Agora esse ritual serve como símbolo para expressar um novo estar na presença de Deus. Segundo o livro de Levítico (8.6,24), aspersão e lavagem fazem parte da consagração dos sacerdotes. A condição para estar na presença de Deus passa apenas pela pessoa convidada. Não há mais obstáculos rituais ou arquitetônicos. As exigências da antiga aliança estão defi nitivamente superadas.
v. 23: O texto grego emprega a palavra katecho. O termo significa “manter”, “conservar” ou “reter”. Manter firme a confi ssão da esperança. Aqui a perseverança está sendo invocada. A homologia da fé é a própria confi ssão da esperança. É preciso manter firme a confissão da esperança. Ao que parece, o autor está desafi ando seus ouvintes a manter a bandeira da resistência hasteada. Os leitores da Carta aos Hebreus haviam mantido firme a esperança, em palavras e ações, não obstante as adversidades e hostilidades de pagãos e judeus.
v. 24: Para expressar a ideia de que é preciso dar atenção ao bem-estar dos outros, o grego se vale da palavra katanoeo, que significa “notar, olhar para, contemplar, considerar”. O verbo comunica um interesse atento e contínuo. No “uns aos outros” ou “pelos outros” está presente a ideia da reciprocidade e mutualidade.
“Para nos estimularmos”, expresso com eis paroksusmon no grego, significa “visando à incitação”. O autor chama a atenção de seus ouvintes para a natureza das relações com os outros. Essas devem ser de estímulo e encorajamento mútuo, visando ao amor e às boas obras.
Deus é amor (1Jo 4.8). O amor é dom do Espírito Santo. O amor é um dos frutos do Espírito (Gl 5.22). Sem amor, prevalece o ódio e a violência. O amor de Deus começa pelo serviço prestado aos outros (Mt 25.35ss). Deve ser esse o princípio normativo das relações na família de Deus.
Também as boas obras precisam ser estimuladas. Boas obras são as obras da fé (Ef 2.8-10). As boas obras são expressão da graça. As boas obras dão testemunho da fé. As boas obras são as obras do amor. Elas têm como alvo o próximo. O amor ao próximo que equivale ao amor a Deus se dá a conhecer pelas boas obras. O bem-estar e o bem viver começa onde pessoas são incitadas ao amor e às boas obras.
v. 25: O último versículo da perícope dá continuidade ao processo de estímulo mútuo. Ao contrário do que vem acontecendo, é preciso continuar apostando na comunidade como espaço da nova aliança, espaço de resistência. Aqui não há lugar para indiferença. Há um grau de intensidade a ser cultivado. Quanto mais o dia se aproxima, maior deve ser o comprometimento mútuo na comunidade. A urgência é real, mesmo que a vinda seja demorada. Não é possível ficar indiferente. Para a tradição rabínica, a separação da comunidade equivale à destruição.
“Não vos separareis da congregação, e nem confieis em vós mesmos até o dia da morte” (Pirke, Aboth 2.5). Para o Talmude, quem se mostra negligente não terá parte no mundo vindouro (Champlin, 1982, p. 607).
A palavra grega parakalountes expressa esse compromisso de chamamento mútuo. Uma tradução possível seria: chamemo-nos mutuamente, convoquemo-nos. Na expressão “vedes se aproximar o dia” há uma alusão à parúsia, à vinda de Cristo. O “dia” é termo técnico para falar da vinda do Senhor (cf. Mc 14.25 e 1Ts 5.4). Quanto mais o dia se aproxima, maior deve ser o compromisso recíproco.
3. Meditando sobre o texto
Na antiga aliança, a função do sacerdote era fazer o encontro entre Deus e o povo por meio dos sacrifícios. Nos ritos e rituais, mediados pelo sacerdote, o povo não tinha acesso a Deus. A missão do sacerdote era reconciliar o povo com Deus. Em cada ação de reconciliação o sacerdote era agente de libertação da escravidão do pecado.
Na nova aliança, Jesus, de uma vez por todas, realiza o sacrifício que abre caminho direto à presença de Deus. Como cordeiro de Deus imolado, Jesus passa a ser o sumo sacerdote, superior a todos os demais. Ele entrou na presença de Deus e exerce seu ministério sacerdotal nessa presença. Esse caminho novo e vivo permite acesso direto a Deus a todas as pessoas. O ministério sacerdotal de Jesus nos dá confiança para nos aproximarmos do trono de Deus.
O caminho aberto por Jesus nos coloca em conexão com nosso próximo. Ninguém que tenha tomado conhecimento do sacerdócio de Jesus pode abrir mão do princípio do amor, da fé e da esperança na relação com seus semelhantes. O comprometimento e a instigação mútua se tornam visíveis nas obras do amor.
4. Pistas para a pregação
O texto de Hebreus dá margem para diferentes abordagens. A Sexta-Feira Santa convida a falar do sacrifício de Jesus. Graças à fidelidade de Jesus até a morte, e morte de cruz, o véu que separava as pessoas da presença de Deus foi rasgado. Agora o acesso está liberado. “A mensagem do acesso livre a Deus, sem intermediação de uma instituição com seu pessoal, será uma boa nova. A mensagem de Cristo, o grande sacerdote, isto é, mediador entre Deus e os homens, é libertadora, porque convida a tratar Deus como Pai. Esta autorização custou caro. Para conquistar-lhe a posição de filhos, foi necessária a obra redentora de Cristo, o sacrifício do próprio sumo sacerdote. Mas agora são filhos!” (PL IX, 1983, p. 123)
Num mundo onde cada vez mais pessoas dizem “Deus sim, igreja não”, somos chamados a ressignificar o sentido de ser comunidade. Como na Carta aos Hebreus, a sustentabilidade da comunidade passa pelo estímulo recíproco. A confissão da esperança precisa ser mantida viva. Como discípulos e discípulas de Jesus também nós estamos a caminho. As exortações do texto também cabem em nossa vivência comunitária. Também nós precisamos ser incitados ao amor e às boas obras. Solidariedade e partilha nunca são demais.
Um ponto a ser explorado na pregação diz respeito ao aspecto da reciprocidade e mutualidade. O “uns aos outros” é de uma densidade teológica pouco explorada na tradição cristã. Em geral, a fé é entendida na direção vertical – eu e Deus. O texto convida-nos a destacar a relação horizontal – eu e o próximo e vice-versa. Aqui a simbologia da brasa, que somente se mantem acesa em meio a outras brasas, pode servir de ilustração.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor, confessamos envergonhados que não temos nos incitado mutuamente na confissão de nossa esperança. Em nossa vida, em nosso culto, nem sempre seguimos pelo caminho novo e vivo. Também para estar em tua presença temos nos acovardado. Arrependidos, te pedimos: Perdoa-nos, e tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta: Agradecemos-te, Senhor Jesus, porque nos permites orar em teu nome. Assiste-nos, para que nosso encontro de irmãos e irmãs nos comprometa mais e mais mutuamente. Abre nossos ouvidos e mentes para recebermos e praticarmos o amor e as boas obras. Amém.
Assuntos para a oração final: agradecer pelo sumo sacerdote Jesus e pelo sacrifício da paixão e morte, pelo perdão dos pecados; pedir para que Deus nos acolha em sua presença e nos mantenha firmes na confissão da esperança; pedir para despertar na comunidade a reciprocidade no amor e nas boas obras; interceder para que a comunidade efetivamente seja sal da terra e luz do mundo, comprometida com o caminho novo e vivo; pedir perseverança pelos que lutam na linha de frente em favor da pessoa humana e de seus direitos; pedir resistência e alegria para quem trabalha em hospitais e instituições de assistência; recomendação de todos à proteção e cuidado de Deus.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 5.
EHLERT, Heinz. Meditação sobre Hebreus 10.19-25. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1983. v. 9.
FISCHER, J. Meditação sobre Hebreus 10.19-25. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1977. v. 2.
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