O que é a Trindade? | Romanos 5.1-5

2º Domingo após Pentecostes | Domingo da Trindade

12/06/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

diz uma lenda que Agostinho de Hipona – um importante cristão e Pai da Igreja que viveu nos séculos IV e V – caminhava à beira-mar na praia do Mar Tirreno na Itália, quando encontrou uma criança que, insistentemente, com uma concha, procurava transportar a água do mar para um buraco que havia aberto na praia. Naqueles dias, Agostinho estava estudando a Santíssima Trindade. Ao se aproximar de menino, foi surpreendido pela criança que lhe disse: “Seria mais fácil colocar o mar inteiro dentro deste buraco na areia da praia do que para ti explicar o mínimo que seja sobre os mistérios da Trindade.” Repito a fala da criança: “Seria mais fácil colocar o mar inteiro dentro deste buraco na areia da praia do que para ti explicar o mínimo que seja sobre os mistérios da Trindade.1

Ao falarmos sobre o Deus-Trindade, nos encontramos diante de um grande mistério que só pode ser crido pela fé. Os cristãos não creem em três deuses; da mesma forma, não creem nas Pessoas da Trindade de maneira isolada. O Deus cristão é o Deus uno em três Pessoas. Não se trata, portanto, de três manifestações diferentes ou três versões distintas de Deus, mas o Deus que é sempre e ao mesmo tempo ele mesmo: a Trindade. E explicar esse mistério poderia ser até mais difícil que colocar o mar inteiro dentro de um balde. Aliás, que bom que não sabemos tudo sobre Deus; do contrário, haveria o risco de nós mesmos nos tornarmos o próprio Deus.

Neste Domingo, a Igreja Cristã Ocidental celebra o Domingo da Trindade. “O Domingo da Trindade se concentra explicitamente no mistério, poder e beleza das três pessoas da Trindade que existem juntas de eternidade a eternidade”2. Assim, desde o século X a Igreja Cristã Ocidental reserva o 2º Domingo após Pentecostes para celebrar aquilo que as Escrituras nos contam sobre o ser de Deus.3

Entretanto, precisamos falar também do ser humano. Desde a desobediência de Adão e Eva em Gênesis 3, estamos separados de Deus por causa dos nossos pecados (cf. Isaías 59.2). Pecado não é apenas um desvio de moral, mas uma grandeza trágica que nos torna criaturas separadas do Trino Deus. O pecado é o nosso destino: não podemos não pecar. O ser humano está naturalmente destinado a desobedecer a Deus e a se tornar rebelde diante de Deus. Buscando salvar-se, perder-se-á mais e mais. Enquanto Deus é Santo, o ser humano é naturalmente pecador.

Nós não nos tornamos pecadores porque cometemos pecados, mas cometemos pecados porque somos pecadores. Davi orou no Salmo 51.5: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu a minha mãe”. O apóstolo Paulo nos diz em Romanos 3.23: “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus”. A Escritura também nos diz em 1 João 1.8-10: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não cometemos pecado, fazemos dele um mentiroso, e a sua palavra não está em nós”.

Por isso, o pecado não é apenas uma imoralidade, mas uma grandeza trágica que nos destina a vivermos eternamente longe de Deus. No fim das contas, o pecado é a própria vontade do ser humano de ser ele mesmo seu próprio “Deus”. A intenção de ser humano é ser seu próprio deus e dominar sobre o seu próximo. Quando o ser humano ouviu a conversa da serpente, pensou que a Palavra de Deus estava errada e que o conselho da serpente era a doutrina correta. Porém, ao desobedecerem, Adão e Eva perceberam que o conselho da serpente era, na verdade, uma mentira e que agora diante da verdade de Deus, estavam nus – o pecado apareceu e não tinham como o esconder.

Essa é a tragédia do pecado. É a tragédia do ser humano que foi “pego” em seu erro e que procura se mostrar bom diante de Deus com suas folhas de figueira, como se nada tivesse acontecido. A tragédia do pecado é a contínua tentativa humana de querer se tornar bom por si mesmo o tempo todo, pois até o bem que fazemos está debaixo do sinal da desgraça do pecado.

Como pecadores, estamos diante do Trino Deus. Que boa notícia pode haver na Trindade a nós, pessoas marcadas pela tragédia e pelo destino do pecado? Com que olhar o Deus-Trindade nos enxerga? Quem somos nós diante do ser misterioso de Deus?

1 TRINDADE E CRIAÇÃO

Antes de tudo, precisamos confessar que a criação é boa obra do Deus Triúno. O Pai criou tudo o que existe por meio do Filho e na força do Espírito Santo. Jesus e o Espírito Santo não apareceram apenas no Novo Testamento, mas já estavam presentes na criação do cosmos. Assim nos diz João 1.1-5 sobre Jesus: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz, resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” Quem estava no princípio com o Pai? O Verbo! E o Verbo é Jesus. Paulo nos diz em Colossenses 1.15 sobre Jesus: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação. Pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele.”

Da mesma forma quanto ao Espírito Santo. Assim nos diz Gênesis 1.2: “A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre as águas”. Portanto, também o Espírito Santo já se movia na criação de todas as coisas. Antes da Criação, Deus era tudo o que existia. O Filho não é criatura do Pai. O Filho não foi criado, mas foi gerado: “Você é meu Filho; hoje eu gerei você” (Salmo 2.7; Atos 13.33; também João 3.16); também o Espírito Santo não foi criado, mas é procedente do Pai e do Filho. Jesus disse, conforme João 14.26: “Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse ensinará a vocês todas as coisas e fará com que se lembrem de tudo o que eu lhes disse”. Portanto, o Filho foi gerado do Pai e o Espírito Santo é procedente do Pai e do Filho; já o Pai é o mistério abissal das Escrituras.

Portanto, a criação do cosmos não é obra do Pai somente, mas obra do Pai, por meio do Filho e na força do Espírito Santo. A Trindade esteve envolvida na criação de todas as coisas que existem, visíveis e invisíveis. Tudo o que foi descoberto e ainda não foi descoberto é obra do Trino Deus. A Trindade não é apenas uma doutrina que apareceu no Novo Testamento, mas o Deus em três Pessoas que já está presente desde o início do Antigo Testamento. Assim, o Deus do AT é o mesmo Deus do NT; e o Deus do NT é o mesmo Deus do AT.

2 TRINDADE E REDENÇÃO

Assim como a criação é obra do Trino Deus, também a redenção é uma obra trinitária. O teólogo luterano Euler Renato Westphal diz: “O Deus criador é o mesmo Deus que salva, pois é o Pai do Filho, Jesus Cristo”4. Jesus Cristo – o Verbo por meio de quem tudo o que existe foi criado – foi enviado à terra pelo Pai e foi concebido pelo Espírito Santo. A encarnação de Jesus Cristo é obra do Deus-Trindade.

No batismo de Jesus Cristo – o que marcou o início do seu ministério de três anos – o Pai diz dos céus: “– Você é o meu Filho amado; em você me agrado”. (Lucas 3.22). Também o Espírito Santo estava presente no batismo de Jesus. Nos diz a Palavra: “o Espírito Santo desceu sobre ele, em forma corpórea de pomba”. O batismo de Jesus é um evento trinitário onde estão presentes o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O Pai enviou o Filho ao mundo na força do Espírito Santo para que o Filho redimisse o mundo da tragédia do pecado e para que o ser humano perdido e o cosmos sejam salvos. Jesus é enviado como o substituto da nossa condenação. Ele, que não pecou, assumiu os nossos pecados para que sejamos aceitos pelo Pai e tenhamos a presença do Espírito Santo. O apóstolo Paulo nos diz em 2 Coríntios 5.21 sobre Jesus: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”. Jesus não pecou, mas na cruz ele foi tornado o pecado para que nós recebêssemos da sua justiça. Paulo afirma também em Gálatas 3.13: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar – porque está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro”. Cristo assumiu a nossa maldição para nos tornar benditos; ele sofreu a tragédia do pecado para que recebamos da sua infinita graça; ele pegou para si a maldição dos nossos pecados para nos oferecer da salvação eterna.

Na cruz, Jesus sentiu o que é ser abandonado por Deus, pois ele foi abandonado pelo seu Pai. Eis o misterioso plano de salvação onde o próprio Filho é abandonado pelo seu Pai na sua maior angústia e sofrimento. E então, o Deus-Filho, a 2ª Pessoa da Trindade, morreu na cruz, fazendo-se fraco com os fracos e abandonado com os abandonados.

Contudo, Jesus não permaneceu nas amarras da morte, mas foi ressuscitado no terceiro dia pelo Pai na força do Espírito Santo. A ressurreição também é obra do Deus-Trindade. É por isso que o Jesus ressurreto nos prometeu a vinda do seu Consolador, o Espírito Santo que é procedente do Pai e do Filho.

Assim, Paulo nos diz em Romanos 5.1-2: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus [o Pai] por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual obtivemos também acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes;”. A justificação do ser humano é uma maravilhosa obra do Deus-Trindade. Somos reconciliados com o Pai por meio do Filho e na força do Espírito Santo, o Consolador.

3 TRINDADE E ESPERANÇA

A vitória de Jesus sobre a morte se torna a nossa esperança de vitória da nossa própria morte. Assim como o Pai e o Espírito Santo ressuscitaram Jesus, também nós seremos ressuscitados corporalmente no último dia. Somos animados em nossa esperança através do Espírito Santo, o Consolador, por meio de quem o Pai e o Filho se fazem presentes em nossas vidas e em nossa comunidade.

Paulo nos diz em Romanos 5.2b-5: “e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança, a perseverança produz experiência e a experiência produz esperança. Ora, a esperança não nos deixa decepcionados, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Assim, só é possível ter esperança a partir da memória dos sofrimentos de Cristo. O Espírito Santo é a memória que continuamente relembra os cristãos da morte de Cristo na cruz e sua ressurreição.

Desta forma, podemos crer que o Espírito Santo nos anima em nossos sofrimentos, trazendo-nos à memória os sofrimentos de Jesus. Em meio aos males do mundo, o Espírito Santo nos lembra que a criação não pecou e que o ser humano é chamado à reconciliação com a criação. A esperança cristã também é obra do Deus-Trindade na vida da Igreja Cristã.

Amados irmãos, amadas irmãs,

este é o Deus cristão: Santo, belo, misterioso... Só conseguimos falar de Deus a partir daquilo que as Escrituras falam de Deus. Onde as Escrituras silenciam, devemos também nós silenciar. Há muito mistério no Deus-Trindade. Há muitos aspectos que não compreendemos. Mesmo que tenha se revelado, o Deus-Trindade continua profundamente misterioso. Isso nos impede de queremos aprisionar Deus através da nossa razão e de queremos dissecá-lo com nossos métodos científicos para explicar como ele funciona. Deus só é conhecido conforme nas Escrituras. Já o rosto amoroso e misericordioso de Deus pode ser visto no Jesus Cristo crucificado somente.

Assim, vivamos alegres na presença de Deus. O Deus cristão é o Deus que age na História da Salvação. Ao mesmo tempo, o Deus-Trindade é o Deus-Comunidade, pois não há solidão para os sujeitos trinitários; também não há hierarquia entre eles. O Pai não é o Filho e não é o Espírito Santo; o Filho não é o Pai e não é o Espírito Santo; o Espírito Santo não é o Pai e não é o Filho; entretanto, o Pai está no Filho e no Espírito Santo; o Filho está no Pai e no Espírito Santo; e o Espírito Santo está no Pai e no Filho. Eis o Deus em quem cremos de todo o nosso coração.

A boa Criação é obra do Deus-Trindade, com a atuação do Pai; a redenção é obra do Deus-Trindade, com a atuação do Filho; a esperança é obra do Deus-Trindade, com a atuação do Espírito Santo. Que a própria Trindade sirva de consolo em meio à nossa solidão e sofrimento. Da mesma forma como não há hierarquia na Trindade, vivamos as nossas relações com o fundamento do amor fraternal. Onde há amor, não pode haver opressão, preconceito e discriminação. A Trindade é um bom modelo de relações humanas. A comunhão da Trindade critica em si mesma a organização social fundamentada no poder, na ambição e no egoísmo, visto que o Deus-Trindade é Deus-Doação.

Portanto, é preciso cuidar para não se falar genericamente de Deus, pois a palavra “Deus” pode se referir a muitas divindades diferentes. Quando os cristãos falam de “Deus”, eles estão se referindo ao Deus-Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, em seu círculo de solidariedade, fraternidade, alteridade e amor. O Deus Cristão é o Deus-Trindade e nenhum outro.

Amém.


2º DOMINGO APÓS PENTECOSTES - TRINDADE | VERMELHO | TEMPO COMUM | ANO C

12 de Junho de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 Cf. AGOSTINHO, Aurélio. A Trindade. Coleção Patrística. Vol. 7. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. p. 469, nota de rodapé nº 10.

2 DE LIMA VIEIRA, Daniel (Coord.). Lecionário. Uberlândia: Lecionário, 2022. p. 15.

3 As igrejas ortodoxas orientais não observam esta festa, mas concentram-se na doutrina da Trindade nos textos litúrgicos de Pentecostes.

4 WESTPHAL, Euler Renato. O Deus Cristão: um estudo sobre a Teologia Trinitária de Leonardo Boff. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 300.

 


 


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 5 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 5
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67293
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O maior erro que se pode cometer na cristandade é não zelar corretamente pelas crianças, pois, se queremos que a cristandade tenha um futuro, então, precisamos preocupar-nos com as crianças.
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