ÉPOCA DA PAIXÃO III – Salmos 130.4 – Kjell Nordstokke
Contigo, porém, está o perdão, para que te temam
I — Contexto
O Sl 130 tem provavelmente como pano de fundo o sofrimento ou a angústia muito profunda de uma pessoa. Sendo um cântico de arrependimento e penitência só é imaginável dentro do contexto da comunidade que se reúne no templo (v.7). Não é possível identificar a razão da angústia ou do sofrimento; o v. l fala das profundezas na quais o salmista se encontra, o que pode ser tido como uma indicação do temor diante da morte pois o reino dos mortos (SE'OL) é o lugar em baixo da terra onde não há luz e onde só resta uma sombra da existência do homem.
Esta angústia está claramente ligada ao sentimento de culpa diante de Deus; a descida ao reino das trevas não é motivada pela falta de sorte ou ocasionada por poderes e destinos ocultos, mas é a consequência de ter-se o homem afastado de Deus e de sua vontade.
A fé, porém, ainda espera e aguarda a misericórdia de Deus, mesmo nas angústias das profundezas. E, partindo desta fé, o salmista confessa tanto a sua perdição quanto também a confiança na forte e poderosa mão de Deus que pode salvá-lo das profundezas e da sua culpa.
II - O perdão leva ao temor
De nosso ponto de vista é um pouco estranho que o perdão anteceda o temor. Talvez poderíamos esperar o contrário: o temor daquele que ainda não foi perdoado. Geralmente gostamos de anunciar palavras como não temas!, pois ligamos o temor ao medo, e achamos isto contrário ao espírito confiante do cristão que clama Abba, Pai.
Sem dúvida é importante considerar este ponto de vista, mas ao mesmo tempo observamos que a Bíblia sempre fala de um temer a Deus no sentido positivo: sempre é bom temer a Deus. São os ímpios e os injustos que não temem a Deus (Sl 36.1 ;Pv 1.29).
Nisto não encontramos apenas uma confirmação do que Rudolf Otto diz no seu ensaio sobre a experiência religiosa do homem: o Santo se manifesta como mysterium tremendum et fascinans, isto é, como algo que ao mesmo tempo atrai e faz temer. Encontramos também a convicção da fé mosaica e cristã de que Deus é o totalmente diferente, e um relacionamento com ele só é possível baseado no temor e no amor.
Não é por acaso que Lutero, no Catecismo Menor, introduza as explicações aos Dez Mandamentos com as palavras devemos temer e amar a Deus ...., pois a vontade divina nunca pode se tornar importante para mim se não nascer de temor e de amor a Deus. Assim também o perdão que Deus nos dá na sua misericórdia só se toma valiosa onde o mesmo temor e amor revela a profundeza, tanto da nossa culpa quanto da compaixão de Deus.
Nesta mesma linha encontramos textos bíblicos que nos apresentam o temor como uma grande virtude do povo redimido e renovado por Deus (Jr 32.29-40; At 2.43; I Tm 6.11 - aqui Almeida traduz EUSEBEIA, por piedade).
É importante, porém, sublinhar que o verdadeiro temor não é como o medo que tem a sua razão de ser na ira e no castigo do outro. O temor a Deus se baseia na grandeza de Deus (Dt 10.17). na sua graça (I Sm 12.24) e no seu perdão assim como afirma o salmista.
III - No contexto da Semana Santa
Não é difícil ligar este versículo e todo o SI 130 aos acontecimentos da Semana Santa. Jesus entra na situação do salmista e vive a sua angústia e o seu horror. Ou, dito numa linguagem ainda mais concreta: Jesus dá carne e sangue ao sofrimento. Entre marcas de dor como a traição, a condenação, a tortura, a crucificação, destaca-se a luta no Getsêmani, onde a consciência de um caminho doloroso a ser andado levou ao suor de sangue, mas onde também o temor a Deus se manifestou na oração faça-se a tua vontade.
Nisto vemos a solidariedade absoluta daquele que não conheceu pecado e que Deus fez pecado por nós (2 Co 5.21), e que se identificou conosco até as últimas profundezas.
IV - A teologia da cruz
A teologia da cruz vê no sofrimento e na derrota de Jesus a sua vitória. Esta teologia não procura um triunfalismo da fé que só sabe relatar fe¬licidade e alegrias. Ela também está ciente e tem a coragem de testemunhar os sofrimentos, as dores, as dúvidas - todo tipo de profundeza. Pois a fé sabe que a ação de Deus em favor de nós não depende de esforços nossos, nem de sinais visíveis de felicidade e segurança em nossas vidas. Mesmo nas profunde- zás e sob a cruz temos a esperança de perdão de Deus para que o temamos, e esta esperança está ligada exclusivamente à sua palavra (v.5).
O 5º. artigo da Confissão de Augsburgo afirma isto, quando fala do Deus gracioso que faz nascer a fé naqueles que ouvem o evangelho, e isto onde e quando lhe aprouver. Este onde e quando encerra toda a situação humana, até a mais desgraçada e menosprezada, e liga a salvação de angústia exclusivamente à boa vontade de Deus.
Isto é temer a Deus: esperar nele em toda situação de angústia e dor, pois em Cristo ele manifesta a sua compaixão e o seu perdão para com todo ser humano; uma atitude que ainda hoje nos é anunciada por meio da palavra e dos sacramentos.
V - Bibliografia
- FRÖR, K. A Confissão de Augsburgo. São Leopoldo, 1965.
- KRAUS, H.-J. Psalmen II. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. Vol 15/2 3.ed. Neukirchen/Vluyn, 1966.
- OTTO, R. Das Heilige. 15a.ed. München, 1926.