Reflexão pastoral

22/06/2007

 

Nos tem preocupado, na IECLB e, também por vezes em nossa Comunidade, uma certa tensão existente entre pessoas ou grupos que defendem uma renovação da Igreja, principalmente em seus cultos, e ainda em demais atividades, e pessoas que não admitem nenhuma renovação na Igreja. Como pastores da Comunidade e como Presbitério, na responsabilidade de oferecer uma orientação pastoral sobre o assunto, queremos partilhar nossa reflexão. Ela não é a única possível e aceitável, mas quer ser uma contribuição para o amadurecimento desta questão.

Vivemos numa sociedade plural. Isto significa que temos que conviver - e cremos que isto é bom - com diferentes maneiras de interpretar o mundo, de viver a vida e organizar a sociedade. E na Igreja não é diferente. Nela também, desde seu início e por toda sua história, houve maneiras diversas de se viver a fé, interpretar as Escrituras, organizar comunidade. E esta pluralidade é algo que deve enriquecer a Igreja através do diálogo entre tendências e posicionamentos teológicos, litúrgicos e espirituais diferentes. O contrário disso seria uma ditadura de estilo e interpretação, que abafaria e suprimiria o diferente. Porém, a própria Bíblia mostra diferentes formas teológicas e espirituais em seu interior, testemunhando que Deus é maior que nossos horizontes de interpretação e que Ele não se esgota ou deixa aprisionar em apenas este ou aquele modelo deste ou daquele grupo.

O cristão, portanto, é o sujeito que, movido pelo Espírito Santo, está aberto ao diálogo com o diferente, antes de tudo em sua própria comunidade. Agostinho, teólogo da Igreja, dizia: no essencial, unidade; no secundário, diálogo e tolerância; e em tudo amor. Sem essa postura a paz se torna impossível, pois é forçoso o viver em meio à pluralidade, às diferenças. Quem não souber dialogar, aprender que o outro, o diferente, também tem coisas positivas e algo a ensinar, acabará nas trilhas da intolerância fanática, que demoniza o outro, o que, aliás, cada vez mais tem feito vítimas nas Igrejas, inclusive na IECLB.

Há Igrejas - e são, infelizmente, muitas no meio evangélico - que têm desprezado e esquecido grandes riquezas da tradição cristã. Não oram mais o Pai Nosso, não professam publicamente os Credos, não dão importância a símbolos, arte, músicas, liturgias e gestos litúrgicos (até os condenam), etc. Páscoa, Natal, Quaresma, Advento, tudo isso faz parte da tradição celebrativa do mistério de Cristo. Mas o rolo compressor de abolir tradições faz com que muitas Igrejas já não celebrem tais tempos litúrgicos de espiritualidade. Isso tudo significa um empobrecimento das expressões de fé, da espiritualidade e da doutrina, em nome de se exorcizar as tradições e querer fazer tudo novo. Esquecem, porém, que o novo, em termos de fé, espiritualidade e doutrina, não se faz com o abandono e o desprezo da tradição. É justamente esse desprezo da tradição que tem produzido formas doutrinárias e cúlticas suspeitas ou estranhas em muitas Igrejas que, cada vez mais, se assemelham a seitas. E mesmo interior de Igrejas podem se constituir grupos com perfil de seita [1]. Nós não podemos cair na tentação de dizer não à tradição em nome da renovação.

Enterrar a tradição é levar ao esquecimento todos os cristãos que vieram antes de nós e que, com sangue e fidelidade, foram edificando a Igreja cristã, dando forma à teologia, à doutrina, à espiritualidade. Parece haver um mal estar geral com tudo que tenha aspecto de tradição. Os prejuízos são enormes. No lugar da tradição se colocam, por vezes, teologias que vêm e vão conforme os ventos de modismos cúlticos, geralmente com fortes apelos às emoções e êxtases, acompanhados, quase sempre, por um cristianismo fundamentalista [2] e puritano [3], que, embora respeitemos, constatamos que pouco ou nada têm de afinidade com a teologia e espiritualidade luteranas, pelas quais optamos enquanto membros da IECLB.

Cremos que negar a tradição é negar a própria Bíblia, que é fruto da tradição de séculos e de gerações que, entre si, transmitiram a fé dos patriarcas e as maravilhas de Deus. A Bíblia é obra da tradição, assim como a Igreja cristã se mantém há 2000 anos também devido às tradições cúlticas (como os sacramentos e suas formas de oração, pregação, ensino), doutrinárias e espirituais que passaram de geração à geração. E nisso tudo há o toque de Deus a sustentar a Igreja. Por outro lado, Igreja também experimenta renovação. A Bíblia também é fruto de amadurecimento de fé e teologia em meio às gerações, que foram lapidando, cada uma ao seu tempo e circunstâncias, e com o auxílio do Espírito de Deus, as formas de perceber a Deus e de se relacionar com Ele. O que importa em tudo isso, portanto, não é o antagonismo entre renovação e tradição, mas a circularidade destes elementos, a complementação, a dialética convivência entre preservação e inovação.

Esta convivência pacífica entre renovação e tradição nem sempre é fácil, como também nem sempre é fácil o diálogo entre gerações no seio de uma família. Mas é uma convivência complementar necessária e que deve ser buscada no espírito de diálogo em humildade. Igreja não se deve edificar no grito do mais forte, ou do majoritário, ou no oportunismo de se querer mudar tudo na primeira fresta aberta. Nada disso edifica. Igreja é fruto de mutirão dialogal entre diferentes e entre renovação e tradição.

Quem não consegue ver sinais de Deus na tradição não tem olhos para enxergar todo sustento que Deus deu à Igreja através de séculos. É como se Deus só estivesse presente e atuante agora, nas inovações. Todo o resto é negado como pouco espiritual, como ultrapassado ou como religiosidade, dito assim de forma negativa. Em outras palavras: nega-se a ação do Espírito Santo naquelas formas de piedade, culto, espiritualidade e teologia que não estão de acordo com as novidades ou com jeitos de ser cristão modernos ou pós-modernos. Formas de julgamento - e condenação - de pessoas que são rotuladas como menos espirituais por terem uma vivência de fé diferente da nossa podem ser, contudo, um ato de prepotência espiritual que não cabe ao cristão. Neste sentido temos dificuldade quando se distingue um culto como avivado e outro como não avivado. Cremos que, conforme a palavra do Senhor, onde dois ou três estão reunidos em Seu nome, Ele está presente, dando vida, bênção, orientação e santificação. Esta promessa é dele e não depende do estilo de culto que se faça, de quais músicas se toquem ou de que tipo de orações e de emoções - ou falta delas - se tenha. Portanto todo culto feito em Seu nome, seja de que estilo for, é avivado por seu Espírito Santo. É promessa dele. Não é a nossa percepção sensorial que faz um culto ser abençoado, mas o crer na promessa da presença de Jesus.

Por outro lado os que pretendem sufocar novas maneiras de se viver a experiência de fé e de se celebrar o louvor a Deus também podem estar se fazendo surdos e cegos aos sinais de Deus para uma Igreja que fale a linguagem dos contextos atuais. O que hoje é tradição também foi novo um dia. As tradições não surgem do nada, não são eternas. Elas também nascem em contextos específicos.

Queremos terminar dizendo da nossa apreensão com os rumos da IECLB, que experimenta um cisma lamentável. Tememos os que não conseguem dialogar desarmados, sejam adultos ou jovens; os que se fecham em uma única e determinada interpretação da Bíblia (fundamentalismo bíblico, o que não é e nunca foi teologia de nossa Igreja), numa única forma de missão, de culto e de fé como sendo válidos e, neste fechamento, como donos da única interpretação verdadeira, se tornam intolerantes ou olham para os que vivem e pensam sua fé de forma diferente como se fossem menos evoluídos ou menos instruídos espiritualmente na fé, ou pior, como se lhes faltasse o Espírito Santo que, é claro, os que se julgam donos da verdade pensam possuir em maior abundância. Temos receio daqueles que vêem no diferente um inimigo a ser combatido ou convertido, e não um companheiro de caminhada que pode acrescentar coisas positivas.

Cada vez mais estamos convictos que a grande graça que Deus deve conceder a nós, cristãos, é a da humildade que leva ao diálogo com o diferente, dentro e fora da comunidade. Intolerâncias e senhorios sobre a verdade sempre causam prejuízos. Infelizmente, pessoas e grupos na IECLB têm experimentado esse tipo de espírito que, cremos, não é de Deus, embora possa ter aparência de piedade e zelo.

Não deveria haver uma rivalidade entre renovação e tradição, mas uma complementaridade. A concepção, muito difundida no meio evangélico brasileiro, de se combater as tradições da Igreja leva, tantas vezes, ao sepultamento de belas, relevantes e necessárias expressões de fé, espiritualidade e culto, inspiradas por Deus. E a intransigência em relação às renovações, à formas novas de expressão de espiritualidade, pode engessar a Igreja que não se beneficia de novos ares que respondem a contextos atuais. Renovações, acentue-se, que estejam de acordo com a espiritualidade e teologia luteranas. Afinal, é nessa Igreja que decidimos ser membros ou fomos chamados a servir. Que Deus conceda a todos sabedoria, discernimento e humildade espiritual e dialogal para a edificação de Sua Igreja.

1 - Seita: termo latino que significa facção ou cisão. Refere-se ao subgrupo de uma corporação maior, identificado por lideranças, ensinos e práticas que tendem a se distanciar da instituição oficial. A tendência é a de se separarem das corporações religiosas onde estão inseridas. Em outro sentido, refere-se também à crença de que um determinado grupo é a verdadeira Igreja ou tem a exclusividade da verdade e fé autênticas. Tais grupos costumam se caracterizar por fortes vínculos afetivos entre seus membros, o que os torna impermeáveis à críticas, acrescentando-se ainda a submissão a líderes tidos como especialmente inspirados. Fonte: Dicionário de Teologia (Editora Vida, 2001); Dicionário Histórico do Cristianismo (Editora Vozes, 2005).

2 - Fundamentalismo: se refere, modernamente, à uma forma literal de ler a Bíblia e dela tirar ensinamentos, sem um juízo histórico-contextual e interpretativo da Bíblia. Também pode se referir à atitude de rejeitar ou condenar tudo que não esteja expressa e literalmente contido na Bíblia.

3 - Puritanismo: modernamente o termo se refere à ênfase em uma vida ascética, de virtuosismo e exigências rigorosas para diversas condutas de vida, tidas como sinal de restauração espiritual. O perigo deste tipo de atitude está em, mesmo inconscientemente, se fazer do estilo de vida uma obra que queira agradar a Deus

P. Zulmir Ernesto Penno,
P. Rodrigo Portella
e Presbitério da Comunidade de Juiz de Fora


Autor(a): Zulmir Penno, Rodrigo Portella e Presbitério de Juiz de Fora
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Juiz de Fora (MG)
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6782
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