Quando olhamos algo na perspectiva correta
Filipenses 3.17-4.1
Muitas pessoas olham para si e não veem mais ninguém. O hedonismo — essa mania de fazer da própria vida um mero objeto e do prazer um alvo a ser alcançado sem qualquer barreira — faz com que as pessoas nem sequer sonhem que, um dia, houve um Criador e disse que somos todos sua imagem e semelhança (Gênesis 1.27). Para estas pessoas o texto bíblico evidentemente não passa de uma estória que reproduz um patriarcado dominador no passado e nos dias de hoje. “Morte ao patriarcado”.
Em uma linguagem patriarcal — forma de linguagem conhecida e difundida na época — o apóstolo Paulo faz observações a respeito da vida da Igreja. A despeito da sua imperfeição, e na falta justificada de melhor exemplo, o apóstolo convida para imitar por via indireta a Cristo (interessante ler Lucas 13.31-35, leitura para este domingo) e agir de forma unida como povo de Cristo.
Quando escrevi uma prédica em 2013 sobre este texto, citei um acontecimento daqueles dias sobre a questão do poder e da humilhação entre povos. Foi a visita de Yoani Sánchez, a jornalista e blogueira cubana em visita ao Brasil no início daquele ano. A sua liberdade de visitar um País e sua livre expressão foi impedida por funcionários do governo brasileiro, especificamente funcionário do Itamaraty, criando um impasse entre os poderes constituídos na nossa nação. Para o governo brasileiro no poder era interessante calar uma pessoa que vive em um País onde falar é trair.
Vou dividir esta pregação em duas perspectivas. Justifico:
Na segundo grau que frequentei precisei fazer um curso técnico – um modelo de ensino adotado com sucesso nos anos 70 – onde aprendia fazer desenhos em perspectiva. Não desenhávamos vasos nem abacaxis, mas peças da área de mecânica, aquilo que hoje se faz em autocad. Para chegar às perspectivas era necessário usar a régua, o transferidor, o compasso e muito cálculo. Era divertido e sempre me orgulhava do resultado.
Textos bíblicos também podem e devem ser visto de vários ângulos. Mas sempre é necessário ter o cuidado de ser fiel ao original. Ferramentas adequadas e empenho são requeridos para um bom resultado na interpretação bíblica. Podemos começar com um bom dicionário. Vamos tentar?
A perspectiva da imitação de Cristo
Paulo não fala que devemos imitar a Cristo Jesus. Ele convida a comunidade de Filipo – uma das principais cidades da Macedônia onde surgiu uma comunidade cristã a partir da sua segunda viagem missionária por volta dos anos 50 – a seguir o seu exemplo pessoal. Paulo, em um arroubo de humildade, se coloca como exemplo de Cristo.
Mas ele podia fazer isso!
A influência de falsos pregadores – aqueles que prometem falsas vitórias e fazem aquelas “profecias” que resolvem todos os problemas, inclusive os de saúde e os financeiros – era notória na comunidade. O único objetivo destes falsários era obter lucro e mais lucro. Paulo podia “puxar” o exemplo para si porque agia em amor para com as pessoas. Inclusive construía tendas (Atos 18.3) para não ser um peso para a comunidade.
Da mesma forma devemos ter cuidados para que não sejamos influenciados por pensamentos que queiram trazer desordem na vida comunitária. Partidarismos, doutrinas estranhas, fé individualizante, isolamento doutrinário são sintomas de quem não se dispõe a olhar no espelho da Comunidade Cristã.
Imitar a Cristo ou lideranças mais maduras jamais significa uniformização de pensamentos e formas de ações identicas – todos seguindo como um robozinho os passos do pastor, p.ex. -, mas respeito e consideração pelas opiniões que surgem de outra perspectiva e, acima de tudo, respeito pela outra pessoa.
Ouvir ao outro e observar suas ações no Corpo de Cristo, somente tende a enriquecer as experiências pessoas. Estas vão, por sua vez, enriquecer as experiências comunitárias. E, mais uma consequência, poderão poder transformações duradouras e bem fundamentadas para toda a sociedade. É viver a utopia do amor possível a partir do exemplo da Cruz.
A perspectiva do povo de Cristo
No Brasil não conseguimos perceber com tanta clareza a questão do pertencimento a um povo, a uma etnia. Somos brasileiros – de origem portuguesa, palestina, japoneza, árabe, africana, turca, alemã, chinesa, síria, suíça, iraniana – e nos sentimos brasileiros. O Amuda brinca com o João e nem se percebe, tamanha a discrição, que os pais do Amuda vão todos os anos para Meca fazer seus votos religiosos. Vão respirar o ar da família e da terra de seus pais, terra que lhes é santa. Cultivam seu pertencimento a um povo.
O texto do apóstolo Paulo aos filipenses coloca diante de nossos olhos também uma pergunta: qual é a nossa terra? Qual é o nosso país? Qual é a nossa identidade? Qual nosso pertencimento? O que nós defendemos? Nós corremos risco em favor de qual ideia? O que defendemos?
Exorta a igreja local. No caso, a que está reunida em Filipos. Embora estivesse preso – tolhido em sua liberdade cidadã – pergunta à igreja qual é o caráter que ela quer ter. Se sente na obrigação de dizer que Igreja de Cristo precisa ter caráter evangélico e como povo do Evangelho, agir responsavelmente mesmo contra os “cães”, como chama os fariseus em 3.2, ou como a rapoza velha, como chama Herodes em Lucas 13.
Ao que tudo indica, quando Paulo apela à cidadania da pátria celestial (v.20), está fazendo a crítica dos que defendem o império romano com seu culto ao imperador. Paulo não propõe o terrorismo – nem mesmo o terrorismo evangélico – mas sim um modo de vida diferenciado. Vida evangélica = vida de acordo com o evangelho do amor de Jesus. É isso!
Somos povo de Cristo
Desde quando somos cidadãos e cidadãs deste reino? As crianças batizadas — e todas as demais pessoas batizadas — hoje automaticamente estão dentro desta relação? João 1.12 nos responde a questão, bem como Marcos 16.16.
A cidadania para Paulo não se limita apenas ao fato de ter nascido num determinado contexto cultural e religioso. Vai mais além: imitar – mimetai. Fazer igual. Olhar e fazer o mesmo. Olhar para Jesus e fazer o mesmo que Jesus. Quem não o faz é inimigo da cruz. É antipatriota. É não cidadão ou não cidadã do Reino. É cidadão de si mesmo – no seu próprio estômago – ensimesmado.
Em nossa sociedade, quem não se preocupa consigo mesmo, tende a sofrer mais, porque afinal de contas “cada um pensa em si, só eu penso em mim”. Imaginemos a dor das multidões expatriadas. Em nosso continente sul americano este número aumenta a cada dia que passa. Ao nosso redor, aqui na praça Cruz Vermelha, temos inúmeros equatorianos, peruanos, sírios, venezuelanos, haitianos que procuram um sentimento de pertencimento a um povo. Podemos ajudar?
Se a nossa pátria está nos céus, quais interesses defendemos aqui na terra? Nossos? Ou precisamos também nós ouvir a acusação: inimigos da cruz de Cristo? Estes não têm pátria. Seu futuro é perdição e infâmia.
Amém.
Sugestão: leia A IMITAÇÃO DE CRISTO de Thomas A. Kempis (1441)