Lutero e a música
A música era usada por civilizações antigas para chamar os bons espíritos e afastar os maus. Ela aparece nos mais antigos registros bíblicos, onde são citados instrumentos como a lira, a harpa e a trombeta. Por um longo período, saliente-se, os cantos serviram para unificar as comunidades. Com sua criação, a Igreja Cristã desenvolveu as missas e assumiu também as músicas.
Nesse contexto, Ambrósio de Milão desenvolveu o canto ambrosiano. Depois dele, no século VI, o papa Gregório Magno selecionou e compilou músicas da Idade Antiga, fazendo delas o limiar para a era medieval. Em razão disso, temos o que ficou conhecido como canto gregoriano: cantado em latim, por homens (sacerdotes ou em formação). De característica monofônica, excluía as vozes femininas e deixava de fora os leigos – estes por não entenderem latim.
No século IX, porém, já é possível perceber a presença da polifonia. No século XI, reaparecem os castrati. A escola de Notre-Dame, em Paris, onde se destacam Léonin e Pérotin, surge no século XII. Já no século XIV, passa a vigorar a Ars nova: novo tipo de notação musical. Guillaume de Machaut é o expoente desse modelo. É dele a autoria da Messe de Notre Dame.
A Renascença musical (período que vai de 1450 a 1600) dá destaque a um dos principais compositores da época: Josquin des Prez, bastante admirado por Lutero – que cresceu cercado de música. Segundo o historiador Martin Dreher, Lutero ouvia e cantava os hinos dos mineiros – profissão de seu pai. Depois, integrou o coral infantil na escola de Mansfeld. Participou também dos coros em Magdeburgo e Eisenach. Na Universidade de Erfurt, deu sequência aos estudos musicais. Sem professor, aprendeu a tocar alaúde. Com a flauta transversa era igualmente habilidoso. Lutero ainda cantava e compunha.
Como monge, pensou a música com função pedagógica: podiam os fiéis não lembrar da palavra lida na missa, mas as canções – de fácil apreensão – seriam recordadas. Por isso, não só retrabalhou as melodias medievais como valorizou a música contemporânea, usando, inclusive, as melodias das composições consideradas profanas para incluir textos sacros. Isso porque, assim, haveria aproveitamento do que já fora produzido e facilidade de memorização.
Tal como fez com a Bíblia, traduzindo-a para a língua germânica, Lutero acrescentou às missas cantos no idioma alemão. Ele fazia questão de que todos participassem, não só como ouvintes, mas fazendo suas preces com seus próprios lábios. Criou, então, o coral – com textos poéticos centrados no Evangelho. Nele, as mulheres foram incluídas. Lutero fez da música o elemento central das missas. Ele acreditava que, em sua época, ela atingia um ápice. Por isso, não mediu esforços financeiros ou intelectuais para propagá-la. Empenhou-se a ponto de torná-la novamente comunitária.
Por ter tido instrução musical, Lutero defendeu o ensino da música nas escolas. Em entrevista ao Jornal Evangélico Luterano, o doutor em Música Werner Ewald afirmou que Lutero tinha clareza que a música deveria ser uma parte integral da educação das crianças e da formação de professores e ministros e foi inflexível em acentuar essa importante tarefa”. Ele se percebeu dentro de um novo movimento teológico, mas também inserido em um novo ciclo musical. Foi crítico e chamou para trabalhar consigo grandes poetas e compositores da época. Valorizou a música contemporânea, estimando músicos como Ludovico Senfl. Uma síntese das mudanças provocadas por Lutero na música pode ser notada no hino Castelo forte é nosso Deus, baseado no salmo 46.
Saliente-se que são atribuídos a Lutero mais de 130 hinos – publicados inicialmente em folhas avulsas e depois reunidos em um livro de cânticos (graças à prensa de tipos móveis criada por Gutenberg). Ele, que dizia não trocar seus poucos dons de música por nada no mundo, acreditava que as canções eram capazes de alegrar o coração e funcionavam como remédio para quem estivesse descontente: Se queres confortar os tristes, aterrorizar os felizes, encorajar os desesperados, tornar humildes os orgulhosos, acalmar os inquietos ou tranquilizar os que estão tomados por ódio, que meio mais efetivo que a música poderias encontrar?.
Em suma, Lutero alterou os rumos da música sacra. Os reflexos disso se fazem presentes ainda hoje na herança deixada por ele próprio e também no legado dos que por ele foram influenciados. Johann Sebastian Bach, nascido dois séculos depois de Lutero, é um desses exemplos: não inventou, mas consolidou formas. A melodia do hino Castelo forte, por exemplo, fora usada como tema da cantata BWV 80 de sua autoria. Como declarou Lutero, “não pode haver má intenção onde houver companheiros cantando bem, ali não há zanga, briga, ódio nem inveja; toda mágoa tem que ceder, mesquinhez, preocupação e o que mais atribular não mais oprimem o coração”.