Querida Comunidade!
Jesus nos conta uma parábola, para nos esclarecer sobre como funciona a política, sobre a relação entre sociedade e Estado e sobre a necessidade de lutar teimosamente pelo direito e pela justiça. Especialmente nós, cristãos de confissão luterana podemos aprender dessa parábola que orar está sempre ligado a lutar. Se essa parábola não tivesse sido escrita, há dois mil anos atrás, eu diria que foi escrita para nós. Na parábola aparecem dois protagonistas: um juiz e uma viúva. Vamos olhar mais de perto o que se desenrola entre eles.
O juiz não liga pra nada, não acredita em Deus e nem se importa com as pessoas. A parábola o descreve como alguém centrado em si mesmo. Podemos imaginar que ele tem poder, ganha um bom salário, tem estabilidade e não pode ser demitido, ninguém pode com ele, não deve respostas a ninguém pelo que faz ou deixa de fazer. A parábola não diz qual é a causa que a viúva lhe traz. Mas, sabe-se que, no tempo de Jesus, juízes individuais julgavam causas econômicas. Portanto, é muito provável que está em jogo o seu direito à herança, a uma hipoteca ou a receber algum dinheiro ainda devido ao seu falecido marido.
A viúva é pobre, não tem nem pra viver nem pra morrer, está na rua da amargura. No tempo de Jesus, as viúvas não tinham nada em seu nome, não tinham amparo previdenciário (pensão do INSS) nem qualquer espécie de assistência social. No AT e no NT elas são mencionadas geralmente junto com os órfãos e os estrangeiros como exemplos das pessoas mais vulneráveis e necessitadas de direitos da sociedade antiga. Os profetas chegam a fazer da sua vulnerabilidade um indicador, para se medir, se um reinado era justo ou não. Se a gente quer saber quem seria a viúva hoje em dia, é só olhar para os setores mais vulneráveis e empobrecidos da nossa sociedade.
O juiz não dá atenção à viúva, fica protelando a sua causa. Pra que se incomodar com gente que não tem onde cair morto? O adversário da viúva pode ser alguém de posses, influente... Indispor-se com essa gente desgasta e estressa. Na sua posição a vida tem que ser boa, tranquila. Nela não cabe uma viúva que vem fazer barraco todo o dia, onde ele atende.
A viúva teima, insiste, sua única arma é a perseverança. Afinal, ela não tem alternativa. Ficar em casa, esperando quieta e ordeira pela justiça, não enche barriga. O tempo corre e nada acontece. Ela sabe que sua única chance é lutar, não tem vergonha de ir atrás do seu direito. Não lhe resta outra coisa do que ficar enchendo a paciência do juiz. Ela não tem com que fazer um agrado ao juiz, para colocar seu processo mais em cima da pilha a ser julgada. Dá para imaginar que essa cena foi se repetindo por semanas, meses, quem sabe, anos! A demora já é uma injustiça! Na prática é uma condenação silenciosa das partes mais fracas num processo!
Até que um belo dia, o juiz fica pensando lá com os seus botões: “É verdade que eu sou eu e o resto não conta! Até gosto dessa fama de que “eu sou o cara” e não devo explicações a ninguém. Mas, essa viúva tá me enchendo o saco! E, pelo jeito, não vai parar de me azucrinar a vida. No fundo, eu sei que ela não pode desistir, caso contrário é o seu fim. Acho que eu vou atender o seu caso, pra me livrar desse nhém, nhém, nhém... Vai que, uma hora dessas, ela ainda me avance ou me cuspa na cara! Afinal, essa coisa vai dando nos nervos da gente! E isso também não é vida pra mim”.
Nesse ponto, a narração é interrompida. Não tem um fim, nem feliz, nem trágico. O final fica em suspenso. Para nós, ouvintes, o final fica projetado para o futuro, para o fim dos tempos, e depende da fé perseverante.
Jesus interrompe a cena para chamar a atenção dos seus discípulos e fazer uma comparação entre o juiz e Deus: Se um tal juiz, sem coração, sem escrúpulos, que nada lhe importa, acaba cedendo à teimosia de uma viúva sem eira nem beira, quanto mais o Deus justo pacientemente ouve os seus escolhidos que a ele clamam sem parar e cujas necessidades lhe cortam o coração! A parábola contrasta o juiz iníquo com o Deus justo que não tardará em atender os seus escolhidos. Contrasta a justiça humana - como muitas pessoas empobrecidas a experimentam - com a amorosa justiça de Deus. As pessoas vulneráveis podem não ser as escolhidas dos juízes, mas são as escolhidos de Deus! Se a perseverança consegue vencer mesmo um juiz ateu, quanto mais ela alcançará ouvidos junto a Deus.
O evangelista Lucas conta essa parábola para a sua comunidade com o objetivo de incentivá-los a serem persistentes na oração, lutarem por seus direitos e não perderem a confiança. A viúva não fica só fechada em casa, rezando pra Deus resolver sua questão. Isso ela certamente também faz, mas não deixa de trazer sua causa ao juiz, vai à luta! Quando a gente deseja algo ardentemente, quando a gente tem certeza de que a causa da gente é legítima, então a gente vai atrás, investe tempo, não mede esforços, energias para conseguir alcançar. Com isso, a gente aprende algo sobre a oração e a perseverança. Orar e lutar estão sempre ligados. Quando a causa é vital, a gente não desiste nunca! E pode-se ter a confiança de que Deus está ouvindo, e mesmo que tarde, de repente atende.
Daria para concluir a mensagem da parábola mais ou menos assim: Deus não vai falhar! Mas, como está a fé de vocês, a sua motivação para lutar por direitos? Fraquejar acontece, a comunidade ajuda a segurar, a refazer a confiança, a reforçar a persistência. Ou será que a nossa fé é apenas maquiagem quando a gente está bem de vida e que ao primeiro choro fica toda borrada? Terá sobrado alguma confiança e luta, quando Deus instalar definitivamente o Seu Reino?
Certamente ninguém de nós espera ter que apelar algum dia para algum advogado ou juiz, pois o que se observa hoje é muito parecido com o que a parábola conta: os mais ricos, em geral, têm os juízes do seu lado e inclusive usam o judiciário para os seus propósitos, têm advogados caros, podem sustentar recursos e mais recursos, vão ocupando o judiciário com seus assuntos de tal modo que não sobra mais capacidade para tratar das causas dos pobres; as causas dos mais fracos vão sendo proteladas.
Entrementes, existem muitas leis favoráveis aos mais fracos. Mas, se os empobrecidos não se juntarem e fizerem um movimento social de reivindicação, a lei não é cumprida. Muito pelo contrário: se os setores vulneráveis da sociedade não se unirem em torno de seus direitos, até mesmo as leis favoráveis serão modificadas, seus direitos lhes serão tirados. É isso que se vê na movimentação da bancada ruralista que já deturpou o código florestal e, desde abril vem atacando frontalmente os direitos de indígenas e quilombolas às suas terras tradicionais. É um atraso querer transformar o Brasil inteiro no fazendão do mundo sob controle do capital internacional. Além disso, os órgãos de Estado são lentos, seguidamente incompetentes, pois estão ocupados por apadrinhados políticos que estão ali, sem ter que se importar com quem quer que seja. Se não houver mobilização social, os direitos ficarão apenas no papel.
Essa parábola nos ensina que ter fé empurra a gente para lutar por direitos, nossos e dos outros, orando e confiando em Deus que atenderá a causa dos seus escolhidos. Se a causa for justa, ninguém segura, Deus ouve o clamor e acompanha as lutas, mais cedo ou mais tarde até mesmo um judiciário lerdo e um Estado corrupto vai acabar tendo que atender. Basta perseverar na confiança, e esse é o desafio mais difícil de manter aceso.
Muitos de nós não estão acostumados a manifestar-se publicamente, a ir para as ruas e lutar pelos direitos, como ocorreu em nosso país através das manifestações populares em junho e mais recentemente em início de outubro. Em geral, somos pessoas ordeiras, aprendemos a confiar na lei, a obedecer às autoridades, a ficar na espera... manifestações públicas, muitas vezes, viram palco para baderneiros e vândalos, aí vem a polícia... é aquele esparramo, e a gente não quer participar disso.
Especialmente, nós evangélicos de confissão luterana, que por muitas gerações vivemos nesse país, sem direitos civis e religiosos e por isso nos recolhemos para o âmbito privado, temos que aprender a lidar com o espaço público e a lutar por direitos dentro da sociedade. Nossos antepassados conseguiram conquistar muitos direitos que hoje são naturais para nós: liberdade religiosa, cidadania plena, direito de cultivar nossa cultura, direito de não sermos mais discriminados ou perseguidos por causa da origem e até mesmo por causa de nossa fé de confissão luterana. À medida que esses direitos nos são garantidos, nós podemos nos engajar na luta por direitos semelhantes também para aqueles que atualmente não os têm garantidos.
Aqueles que detêm o poder econômico e político, ao longo da história, sempre jogaram os mais fracos uns contra os outros. O grande lema desde a antiguidade é: divide et impera. Ou seja: quando você consegue dividir o povo, você consegue governar e controlá-lo. Está em nossas mãos mudar isso! Precisamos formar uma consciência política clara, perpassada pela solidariedade cristã com os segmentos mais vulneráveis de hoje, para reivindicar direitos diante de um Estado que se comporta como aquele juiz da parábola: não se importa com nada, é autosuficiente e só funciona sob pressão. Oração e luta por direitos! Direitos sociais de meninos e meninas de rua, de mulheres, de indígenas, de pequenos agricultores, de atingidos por barragens, de expulsos da terra pelo agronegócio, de quilombolas, de ribeirinhos, de aposentados/as, de jovens e idosos/as... Já há leis favoráveis a esses grupos, mas se não houver mobilização social, o Estado não vai cumprir as leis e os grandes ainda tentarão mudá-las. O Estado brasileiro vem acumulando injustiças ao longo da história e não quer enfrentar a solução dos conflitos de direitos que esses erros criaram, age como o juiz da parábola, vai protelando, desviando... Da viúva podemos aprender a perseverança e a teimosia, pois o Estado nada vai resolver, senão por pressão. É assim que também se expressou uma liderança indígena Macuxi nas recentes mobilizações em início de outubro: “Nossa arma é a teimosia e nossa força é a esperança!”.
Muitas pessoas pequenas em muitos lugares pequenos estão dando passos pequenos e estão transformando a cara do mundo! (Viele kleine Leute, an vielen kleinen Orten, die viele kleine Schritte tun, können das Gesicht der Erde verwandeln). E por quanto tempo tem de haver mobilização social, confiança nos direitos, fé em Deus? Até que Jesus volte! O Reino de Deus ainda pode demorar, mas vem vindo. Podem apostar nisso! Amém
[Alternativa ao texto em itálico acima.]
O Estado brasileiro, desde o seu início aqui no Brasil há 500 anos, está em dívida com os povos indígenas. Ao longo da história mais recente, também contraiu dívidas muito sérias com pequenos agricultores. Por longos anos, em nome de uma idéia de desenvolvimento e progresso, muitos agricultores foram jogados contra os povos indígenas, usados para converter indígenas simplesmente em trabalhadores rurais, foram assentados em suas áreas, para forçar mudanças culturais nos indígenas ou simplesmente para ocupar seus territórios e para empurrá-los mais para o sertão. Isso não foram ações isoladas, isso foi política de Estado!
Hoje, os descendentes dessas famílias agricultoras, por força da constituição federal, têm de desocupar as terras indígenas, para as quais o Estado equivocadamente lhes expediu títulos. O Estado errou! A política de extermínio dos povos indígenas foi equivocada! As lideranças políticas responsáveis por esses erros já se foram, mas o problema sem solução ficou e está causando sofrimento tanto para indígenas como para famílias agricultoras. Cabe ao Estado mediar e resolver esse conflito. Mas, por não cumprir as leis, sucessivos governos inviabilizaram o Estado como mediador. O Estado tanto errou que atualmente não merece mais a confiança de nenhum dos lados do conflito de direitos sobre a terra. Esse Estado é como o juiz da parábola. Só uma viúva teimosa para fazê-lo mudar de atitude!
A justiça protela as causas dos pequenos. Só resta a eles juntar-se e bater à porta do Estado brasileiro e de sua justiça, até que os governos e juízes de plantão se encham tanto, que deem uma solução ao assunto. Isso só acontecerá, quando indígenas e pequenos agricultores entenderem que ambos estão sendo ludibriados historicamente pelos governos, que ambos estão do mesmo lado e que, ao invés de se deixarem jogar uns contra os outros, devem somar forças, para exigir uma solução que atenda de forma justa os direitos de ambos. As leis estão aí, dinheiro também tem que chega. A vontade política só virá por pressão quando não por tragédias. Indígenas e pequenos agricultores têm de entender que a sua luta por direitos não é um contra o outro, mas juntos reivindicando seus direitos do Estado brasileiro. A confiança, de que um dia se alcançará uma solução é que deve alimentar a perseverança nessa luta. Essa é a lição que podemos aprender da viúva na parábola. Essa seria uma mudança de atitude que honra e celebra os 25 anos da Constituição Federal, chamada de Constituição da Liberdade, Constituição Cidadã. O que está em jogo não são apenas os direitos de indígenas, pequenos agricultores, quilombolas, mas sim toda uma concepção de país, sua diversidade social e cultural e sua sustentabilidade.