João 17.1-11 - 7° Domingo da Páscoa - 21/05/2023

Auxílio Homilético

21/05/2023

 

Prédica: João 17.1-11
Leituras: Salmo 68.1-10, 32-35 e 1 Pedro 4.12-14, 5.6-11
Autoria: Werner Wiese
Data Litúrgica: 7° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 21/05/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII

 

Uma oração conecta tempo e eternidade

1. Introdução

No ministério de Jesus, oração ou orar foi assunto central. Por exemplo: Jesus deu orientações claras sobre o orar e como orar (Mt 6.5-8); incentivou a orar (Lc 11.5-13; 18.1-8) e inclusive o que orar (Mt 6.9-15), dando, dessa forma, diretrizes essenciais para a oração. Aliás, o próprio Jesus orou e orou em circunstâncias distintas umas das outras (Mt 11.25-27 [cf. Lc 10.20-21]; Mt 14.23; Mc 1.35; 6.46; Lc 3.21; 5.16; 6.12; 9.18, 28; 22.39ss; Jo 11.41-43; 17.1ss). No entanto, a maioria desses textos silencia sobre o conteúdo das orações de Jesus. Exceções são: a oração dominical, momento em que Jesus ensinou a orar; à vista de incontestável incredulidade de pessoas que tinham ouvido as suas palavras (Mt 11.25-27); por ocasião da ressurreição de Lázaro; em Jo 17; no Getsêmani, antes de ser preso e condenado; e na cruz antes de morrer.

O capítulo inteiro de João 17, do qual foi selecionado o texto para a pregação no 7º Domingo da Páscoa, é uma oração. É a mais longa de todas as orações de Jesus registradas no Novo Testamento. A delimitação do texto para a pregação não é óbvia. Seria possível fazer ainda delimitações diferentes que, inclusive, poderiam ser utilizadas para outros momentos no calendário litúrgico da comunidade de fé em Jesus Cristo.

No que se refere aos três textos previstos para leitura no culto, é possível relacioná-los entre si a partir de duas questões centrais: a vinculação de Deus com seu povo e o povo de Deus que vive em meio a perigos. No texto de João 17.1-11, Jesus se dirige a Deus – seu Pai celeste – e pede que esse o glorifique com a glória que (o Filho) tinha antes de o mundo ter existido. Além disso, Jesus pede nessa oração pelos seus discípulos e pelas pessoas que Deus lhe deu e ainda dará através do testemunho dos discípulos.

O Salmo 68 é uma oração composta de um misto de confissão e louvor a Deus e conclamação para que se reconheça quem Deus é: Pai dos órfãos e juiz das viúvas... Faz que o solitário more (habite) em família... tira (livra) os cativos. Nesse salmo, inclusive, se convida para que reinos da terra cantem louvores a Deus. Dito em outras palavras: nos versículos destacados do Salmo 68 convida-se para que Deus seja reconhecido como Deus e, como tal, ele seja glorificado na terra.

Por fim, 1 Pedro 4.12-14 e 5.6-11 elucida os sofrimentos presentes por causa do seguimento a Jesus Cristo no horizonte da manifestação plena do reino de Deus como esperança que não ilude nem confunde. Aqui é possível fazer a ligação principalmente com o texto de João 17, mas também com o Salmo 68, como expressão de reconhecimento de quem Deus é.

De uma ou de outra forma, as três leituras bíblicas nos aproximam do mistério de Deus que quer relampejar para dentro da realidade humana, tantas vezes desprovida de sentido, principalmente por conta de sofrimentos. Não por último, sofrimentos causados por causa do compromisso com o evangelho que a comunidade de fé em Jesus Cristo assumiu e do qual não quer abrir mão.

2. Exegese

2.1 Notas gerais

Uma comparação com os evangelhos sinóticos demonstra diferenças. Algumas dessas diferenças dizem respeito a momentos cruciais na reta final do ministério terreno de Jesus, por exemplo: João 17 não tem paralelos diretos nos sinóticos, exceto de ser uma oração. O Evangelho de João não contém a oração dominical (que também não consta no Evangelho de Marcos). Além disso, João também não registra o episódio da transfiguração de Jesus, omite as palavras clássicas da instituição da Ceia do Senhor e também a oração no Getsêmani registrada nos sinóticos. Inversamente, os sinóticos não trazem o lava-pés, os discursos de despedida com menção destacada ao parákletos (que é fundamental para a compreensão do Evangelho de João). Os sinóticos não possuem da mesma forma a oração sacerdotal. Sobre a razão de todas essas diferenças pode-se fazer apenas suposições, nada mais. Por outro lado, há quem diga que por trás de João 17 esteja a oração dominical sem que isso estivesse explícito, e que o Evangelho de João pressupõe que seus leitores tenham conhecimento da existência dos sinóticos (Cf. Wilckens, 2005, p. 213-216).

2.2 Notas de contexto e de estrutura

O texto está inserido entre os blocos que compõem os “discursos de despedida” de Jesus (João 13 – 16) e a traição e prisão dele no jardim do Getsêmani, que culminou com sua condenação à morte (João 18 – 19). Entre pesquisadores há quem afirme que João 17 hoje não se encontra no seu lugar original, e há também quem afirme o contrário (Voigt, 1982, p. 173). O capítulo inteiro forma uma unidade perpassada pela intercessão pela unidade entre o Pai (Deus), o Filho e a comunidade de fé. Para fins didáticos, é possível dividi-lo como segue:

a) v. 1-5 – Jesus ora e pede por sua glorificação.

b) v. 6-19 – Jesus intercede a favor de seus discípulos. Aqui não é mais tão simples destacar um assunto central apenas, até porque há redundâncias de pensamentos, o que é típico do estilo joanino e sobressai em vários lugares do evangelho e nas cartas joaninas, principalmente em 1 João. Nesses versículos Jesus intercede, grosso modo, pelos seus, que permanecem no mundo. Igual ao próprio Jesus, eles são enviados ao mundo, ou seja: Jesus foi enviado ao mundo pelo Pai e os discípulos foram (são) enviados ao mundo pelo Filho (v. 18).

c) v. 20-23 – Jesus ora pela unidade das pessoas que ainda vierem a crer nele por meio da palavra anunciada pelos discípulos, ou seja: Jesus intercede pela igreja futura.

d) v. 24-26 – Jesus intercede pela consumação derradeira (escatológica) das pessoas que nele creem (Schneider, 1976, p. 283, 285, 289 e 291). A delimitação do texto para pregação não causa prejuízo para a compreensão do todo da oração, mas é recomendável que se leve em consideração o capítulo inteiro.

2.3 Notas exegético-teológicas

O capítulo todo de João 17 é como uma prestação de contas de Jesus sobre o ministério que Deus lhe deu para que o exercesse na terra. A argumentação teológica do capítulo é comparável a uma avenida de duas vias opostas: uma se move de Deus em direção aos seres humanos; a outra se move dos seres humanos de volta para Deus. Nas duas direções existe um e mesmo mediador: Jesus Cristo – o Filho (cf. também Jo 1.11-13; 14.6 etc.). Na verdade, essa lógica de argumentação perpassa o quarto evangelho todo, por exemplo: na primeira parte (cap. 1 – 12) é destacado o investimento de Deus nos seres humanos por meio de Jesus Cristo, o logos encarnado, prefigurado já no prólogo (cap. 1.1-18). A segunda parte (cap. 13 – 20/21) foca na via de volta para Deus, com destaque aos discursos de despedida. Nessa segunda parte, o capítulo 17 tem função semelhante ao do prólogo na primeira parte. O específico da argumentação é que aqui está condensado todo o ministério de Jesus em forma de oração dirigida a Deus.

V. 1-5 – Nestes versículos, Jesus (o Filho) presta contas a Deus (o Pai) da obra que ele consumou e pede para que o Pai glorifique o Filho com a finalidade de o Filho glorificar o Pai (v. 1). No v. 4 Jesus afirma que ele já glorificou o Pai na terra. Isso aconteceu pela afinidade irrestrita com o Pai em tudo que o Filho disse e fez. Pai expressa “noção de afinidade” (familiaridade). Nos evangelhos, para se referir a Deus, a palavra Pai ocorre em torno de duzentas vezes, na maioria dos casos no Evangelho de João. Não é por acaso que a palavra Pai ocorre cinco vezes em João 17 (v. 5, 11, 21, 24, 25). Trata-se de uma maneira nova e singular de se dirigir a Deus, é a forma mais familiar de todas (Silva, 2019, p. 260). Obviamente, ao se referir a Deus, não se deve associar ao termo Pai qualquer conotação de gênero ou masculinidade. Fazer isso não passaria de uma caricatura de Deus perigosa. No v. 5 Jesus repete o pedido já externado no v. 1 e especifica que se trata da glória que o Filho tinha antes da fundação do mundo. Dessa glória o Filho se despojou ao tornar-se pessoa humana (cf. Fp 2.5-8) – ao tornar-se o logos encarnado (cf Jo 1.1ss, esp. o v. 14). Como logos encarnado, Jesus tinha glória, mas essa era glória encoberta, perceptível apenas por aqueles que criam nele (Jo 1.14; 2.11; 11.4, 40), ou glória perceptível por alguns instantes e que não podia ser detida pelo ser humano (Mt 17.1ss; cf. também Êx 3.14). A glória pela qual Jesus (o Filho) pede não é a do reconhecimento público, porém a glória de sua origem na eternidade.

V. 6-11 – Nestes versículos, Jesus pede a Deus duas coisas para os discípulos: uma é para que eles sejam guardados no nome de Deus. A outra, ele pede  pela unidade dos discípulos. Também nesses versículos, intercessão e o prestar contas a Deus se perpassam mutuamente. Primeiro, Jesus menciona que ele manifestou o nome de Deus às pessoas que Deus lhe deu do mundo. Essas, por sua vez, receberam e guardaram a palavra de Deus, reconheceram o vínculo indissolúvel entre Deus e Jesus, e que ele de fato foi enviado por Deus (v. 6-8). Assim foi gerada a fé nessas pessoas, o que misteriosamente não aconteceu com a maioria dos conterrâneos de Jesus (cf. Jo 1.10-13; 6.41-42 etc.).

A partir do v. 9, Jesus passa a interceder concretamente pelas pessoas que Deus lhe deu. Chama a atenção que Jesus não intercede por todo o mundo indistintamente. Esbarra-se aqui com um mistério não distinguido pela palavra. E o que a palavra não distingue não cabe a intérpretes fazer. Também paira aqui um mistério em torno da questão da unidade global no mundo globalizado.

3. Reflexões para a pregação

Em várias Bíblias e mesmo em comentários bíblicos, o capítulo inteiro de João 17 tornou-se conhecido como oração sacerdotal de Jesus a favor do seu povo – a igreja cristã. Melhor seria falar de oração de despedida, que transcende limites de tempo e de espaço. Em todos os casos, o texto para pregação no 7º Domingo da Páscoa é um verdadeiro tesouro de cuidado pastoral do bom pastor que dá sua vida pelas ovelhas. E da mão do bom pastor ninguém pode arrebatar o que o Pai celeste confiou ao Filho (Jo 10.27-29). Esse tom de cuidado pastoral vale para quem ouve a pregação deste domingo, mas antes disso é consolo também e principalmente para quem tem a tarefa de proclamar a palavra de Deus neste domingo.

Como dicas para a prédica do texto previsto, vale lembrar a unidade do capítulo todo e das circunstâncias para as quais essa oração sacerdotal foi proferida/registrada: a despedida da presença visível de Jesus. Isso poderia ser brevemente destacado no início da pregação. Além disso, vale lembrar também da singularidade dessa oração de Jesus. Especialmente no quesito da intercessão pela sua igreja e mesmo para situações particulares individuais, textos como Romanos 8.26-27, 34 e Lucas 22.28-32 servem como subsídios auxiliares valiosos para a elaboração e meditação da prédica.

Nossas comunidades ainda sofrem com as consequências diretas que a pandemia da Covid-19 trouxe. Não bastassem as perdas dolorosas de entes queridos, muitas pessoas ainda não acharam o caminho de volta para a comunhão cristã nos cultos. A esperança de que com a pandemia as pessoas se tornariam mais humanas e solidárias não se confirmou. Pelo contrário. Como se não bastasse a crescente solidão de muitas pessoas das nossas comunidades, a situação agravou--se ainda mais com as enxurradas e os bombardeios quase que ininterruptos de informações que invadem muitos de nossos lares e mais confundem do que orientam de forma sadia. A confusão e desorientação religiosa cristã mediada por redes sociais tornam difíceis a “fidelização” comunitária cristã, de maneira que muitas pessoas e várias comunidades sentem sua existência literalmente ameaçada.

À vista disso e de outras ameaças, a pregadora ou o pregador não precisa sentir-se sob forte pressão para dizer alguma coisa para dentro dessa situação, mas pode exercer sua tarefa de forma convicta e alegre a partir do socorro que advém do cuidado do bom pastor tal qual ele ecoa no nosso texto. A invisibilidade de Cristo na igreja no ínterim entre a ascensão dele e a consumação do povo de Deus e da história da humanidade é suprida pelo parákletos prometido nos discursos de despedida em João 13 – 16. O parákletos/Espírito Santo não é nada diferente do que a presença invisível e o agir de Cristo na sua igreja e no mundo; aqui está incluída a intercessão de Cristo por sua igreja.

Bibliografia

BERGER, Klaus. Kommentar zum Neuen Testament. München: Gütersloher Verlagsanstalt, 2011.
SCHNEIDER, Johannes. Das Evangelium nach Johannes (Sonderband). Berlin: Evangelischer Verlagsanstalt, 1976. (Theologischer Handkommentar).
SILVA, Rodrigo. Enciclopédia Histórica da Vida de Jesus. São Paulo: Pae Editora, 2019.
VOIGT, Gottfried. Die bessere Gerechtigkeit. Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reihe V. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1982.
WILCKENS, Ulrich. Theologie des Neuen Testaments. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 2005. (Band I. Teilband 4. Die Evangelien, die Apostelgeschichte, die Johannesbriefe, die Offenbarung und die Entstehung des Kanos.)


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Autor(a): Werner Wiese
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 7º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 11
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2022 / Volume: 47
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 69500
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