Educação e inclusão
Uma experiência de vida
Vou contar um pouco de minha história para que vocês possam conhecer um pouco da vida de uma pessoa cega. Meu nome é Luzia Aparecida; sou cega total e aqui vai um pouco de tudo que passei durante minha vida de estudante.
Morava numa cidade pequena no interior de Goiás onde não tinha recursos escolares e nem sociais para uma pessoa com deficiência visual, pois eu era a única pessoa cega que residia naquela cidade. Com o passar do tempo tudo foi ficando mais difícil para minha família, pois meus pais se separaram e minha mãe ficou sozinha com quatro crianças pequenas e uma dessas crianças era cega e precisava ter uma vida melhor.
Um dia minha mãe achou melhor mudar de cidade, pois a vida para ela não era fácil lá. Os recursos eram poucos para ela cuidar de seus filhos. Mudamos para outra cidade pequena de Goiás com mais possibilidades para minha mãe, mas para mim não tinha nada ainda. Via que todos meus irmãos estudavam, mas eu que queria tanto ser professora de crianças cegas não conseguia estudar nem me socializar. A cidade não tinha o que eu precisava naquele momento.
Com o passar do tempo surgiu a oportunidade de minha família se mudar para Uberlândia/MG onde tudo começou para mim. A partir daí comecei a me sentir uma pessoa de verdade; sabia que minha vida ia mudar de uma vez.
Chegando na cidade, logo me matriculei numa escola do bairro que eu morava, pois era a mais próxima de minha casa. Para mim foi radiante estudar, pois, até então, eu nunca havia entrado numa sala de aula.
Que maravilha! - disse para mim mesma. Agora vou aproveitar tudo o que eu nunca tinha tido! Só que me faltava uma coisa - o braile. Lá não tinha, pois a escola não atendia nenhuma pessoa com deficiência. Fui a primeira a chegar numa escola de um bairro humilde e com professores que se depararam com uma situação nova na vida deles.
Nisso eu já tinha 18 anos de idade, era adulta, já tinha passado toda a etapa de alfabetização e achava que tudo era motivo de alegria, até as dificuldades dos professores eu encarava com naturalidade, para mim tudo era perfeito. Assim, fui seguindo minha vida dentro daquela escola. Conseguir terminar o ensino de primeira a quarta série foi uma vitória para mim.
Um dia eu e minha mãe estávamos assistindo televisão quando ouvimos falar de uma escola onde estudavam somente pessoas cegas. Na verdade não era uma escola, era uma associação de cegos que existia em minha cidade. Pedi para minha mãe para que me levasse até a tal escola. Chegando à associação me deparei com várias pessoas cegas que tinham diversos tipos de atividades para fazer. Atividades que eu nem imaginava que um dia fosse conseguir realizar.
Foi então, que comecei a viver numa realidade de pessoa cega, pois lá tinha tudo que eu precisava, era tudo muito novo para mim aquela situação. Lá eu me alfabetizei no método de leitura e escrita - o sistema braile. Aprendi a me locomover sozinha pela cidade, pratiquei esportes como natação, corrida, arremesso de peso, dardo e disco, cheguei a competir em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Mas, ainda continuava meus estudos fora da associação; ia para a escola na parte da manhã e para a associação no período da tarde. Já andava sozinha pela cidade, conhecia toda a cidade e aprendi a memorizar as paradas dos coletivos. Eu já era uma pessoa bastante independente, me sentia livre, pois não era mais aquela pessoa que dependia da família para tudo.
Os anos foram passando e meu estilo de vida foi melhorando. Só me faltava uma coisa, ter um trabalho do qual pudesse tirar meu sustento, pois não queria depender da minha família para toda vida.
Terminei o ensino fundamental. Fui para o ensino médio, pois queria fazer magistério para realizar meu sonho de ser professora de crianças cegas e fazer uma faculdade de pedagogia. Consegui terminar o magistério com muitas dificuldades, pois os professores não acreditavam em meu potencial, mesmo vendo meu desempenho na escola. Foi muito difícil provar para o professor que eu era capaz de ser uma profissional de qualidade e fazer com que acreditasse no potencial de uma pessoa cega.
Alguns professores diziam: Mas, e se ela não conseguir, vai ficar frustrada. Contudo, provei para a escola toda que eu sou apenas uma pessoa que não enxerga.
Terminei o magistério e fui logo batalhar por uma vaga na universidade federal da cidade, pois eu queria fazer o curso de pedagogia. Foi então que fui à luta e comecei a estudar para prestar a prova de vestibular.
Em 1999 prestei meu primeiro vestibular na Universidade Federal de Uberlândia, não tive muito sucesso, pois a prova era oral e não tinha ledores preparados para ler a prova. Os ledores não tinham nenhuma capacitação para nos orientar em termos de imagens visuais de gráficos e até mesmo de entonação na leitura. Não passei, pois o tempo dado para fazer a prova não foi suficiente para que eu pudesse terminar a prova.
Tentei no ano seguinte numa faculdade particular e passei. Contudo, não tinha recursos financeiros para uma vaga numa faculdade particular. Lutei por uma bolsa de estudo, com muito custo consegui e foi assim que fiz minha faculdade.
A faculdade de pedagogia já estava sendo para mim uma dádiva, mas novamente me deparei com a dificuldade de recursos didáticos, pois não tinha nada em braile para que eu pudesse estudar.
Pude contar com a ajuda de muitos colegas e professores para estudar, minha turma de colegas era maravilhosa, era a melhor turma que tinha no curso de pedagogia e comigo, então, eram muito solidários. Conclui o curso em quatro anos, pois me dedicava manhã e tarde para ir para as aulas pelo menos um pouco preparada.
Terminei o curso e logo surgiu um concurso público municipal, assim, mais uma vez me dediquei de corpo e alma aos estudos para que pudesse passar. E assim fiz. Estudava dias e noites com a ajuda de ledores voluntários, que liam os conteúdos para mim. Prestei o concurso em outubro de 2002 e passei em uma boa colocação.
No ano de 2003 fui chamada para exercer minha profissão de professora de crianças cegas numa escola pública no atendimento educacional especializado.
Eu me senti a pessoa mais feliz do mundo. Naquele momento, chegou o grande dia de realizar o sonho de ingressar no mercado de trabalho. Comecei a trabalhar numa scola que não fica perto de minha casa e me senti a mais feliz das pessoas que Deus colocou no mundo. Estava realizando meu sonho de ter meu primeiro trabalho.
Em 2005 fiz uma pós-graduação em educação especial que me capacitou ainda mais para desenvolver meu trabalho e ter um desempenho melhor diante de meus alunos.
Gosto muito do meu trabalho. Faço com toda dedicação e tenho condições de dar uma atenção melhor para cada aluno, pois trabalho com o atendimento individual e tento suprir as necessidades do aluno de acordo com suas dificuldades.
Hoje trabalho em duas escolas públicas municipais. Tenho 5 alunos com cegueira total e cada um com uma necessidade diferente. Alguns alunos vêm para a escola sem saber como realizar atividades cotidianas, pois alguns pais não estão preparados para lidar com a deficiência de seu próprio filho; muitos precisam superar os seus próprios preconceitos, seus medos de errar e a superproteção. Desta forma, como professora, estou suprindo parte do que o aluno não tem em casa que é este apoio familiar e, nas minhas aulas, lhes ensino algumas atividades para viverem de forma autônoma.
Faço meu trabalho tentando incluir meus alunos dentro da sala de aula com o professor e com os outros alunos também. A inclusão ainda não existe como deveria ser, mais enquanto ela não chega vou fazendo meu trabalho dentro das escolas em que atuo. Falo para meus alunos que eles são pessoas como as outras, que tem necessidades, reações e sensações como uma pessoa humana que precisa viver numa sociedade mais igualitária e que são importantes para a sociedade, escola e, principalmente, no meio familiar.
Luzia Aparecida N. do Nascimento
Pedagoga especialista em Educação Especial
Uberlândia/MG
Índice do Caderno de Subsídios da Semana Nacional das Pessoas com Deficiência - 2011