Desafio: profissionalização do músico eclesiástico
André D. Lichtler
A expressão ¨músico eclesiástico¨ soa talvez um pouco pomposa. A ideia que está por trás, todavia, é bem simples. Penso aí em ¨músico de comunidade¨. Quem é ele ou ela? É aquele membro de comunidade que toca órgão, harmônio, teclado, violão ou outro instrumento acompanhador no culto, que rege o coro da comunidade ou o coro infantil.
Tornou-se consenso em nossa cultura que o músico de comunidade é uma pessoa que tem um dom especial e que deve colocá-lo a serviço da comunidade. Até há bem poucos anos, e em algumas comunidades até hoje, esta função era desempenhada, com muito gosto e desprendimento, pela ¨Frau Pfarrer¨ (a esposa do pastor). Entretanto, é cada vez menor o número de esposas de pastores que toca um instrumento ou sabe música. E é cada vez menor também o número de esposas de pastores que não tem sua profissão própria, não dispondo de tempo para investir na vida musical da comunidade (de seu esposo).
Um pouco de história
Convido o leitor e a leitora a darmos uma olhada na história. Podemos iniciar com o Antigo Testamento. Lá encontraremos o relato de que havia, no povo de Israel, pessoas que se dedicavam integralmente à prática da música no Templo. Eram levitas e viviam da profissão de músico do Templo. Nos primórdios do cristianismo, os trabalhos da Igreja estavam recém se estruturando; mas já na Idade Média se tem notícias dos primeiros músicos sacros.
Na Europa do Renascimento, do Barroco, do Classicismo, do Romantismo até os dias de hoje, encontramos a figura do Músico Eclesiástico (em alemão, Kirchenmusiker). Ele é justamente aquele profissional que estudou música profundamente e é pago para desempenhar todas as funções referentes à música em sua comunidade: colaborar no preparo do culto, tocar o órgão, reger os coros, dar aulas de música e organizar concertos.
Com o grande legado cultural que herdamos da Europa, herdamos também a necessidade de um Músico Eclesiástico, mas não a ideia de remuneração para ele. Com certeza vamos encontrar muitos motivos para tal, principalmente de ordem financeira. Mas sempre se acreditou, em todo o Brasil, que a música é muito importante na vida da comunidade. Um modelo que se cultivou no Brasil durante o Império foi o do músico escravo. Esse modelo permite que se conclua que um músico de comunidade não tenha necessidade de ser remunerado pelo seu trabalho. Também o modelo da ¨Frau Pfarrer¨ colabora neste sentido.
Formação de músicos
Conforme relatos feitos à nossa equipe do Instituto de Música (IM) da EST e nossa própria vivência, em muitas comunidades a situação da música deixa bastante a desejar. Esta situação é fruto direto de uma política educacional que baniu as aulas de música das salas de aula de todo o país. Pois, música antes de ser um dom, coisa de talentosos especiais, é algo que qualquer ser humano pode aprender. Naturalmente, alguns aprenderão mais rápido e melhor que outros — como acontece com qualquer habilidade. Mas temos no Brasil uma geração inteira que não foi musicalizada, não aprendeu os primeiros passos na música. Crianças e adultos. Reverter este quadro vai levar anos, pois os próprios professores são frutos dessa conjuntura e não sabem música. Se fôssemos hoje reintroduzir a música nas escolas, quem poderia lecioná-la?
E essa mesma geração que vai no culto aos domingos. E o canto comunitário é aquilo que muitos de nós vivenciamos em muitos cultos: quase ninguém sabe cantar e não há quem ensine ou quem toque algum instrumento para o acompanhamento. Será que essa situação não colabora para o esvaziamento de nossas igrejas?
O Instituto de Música da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo foi criado a partir dessa necessidade: formar músicos de comunidade bem como melhorar a formação musical de futuros pastores.
Desafio
É minha intenção com este artigo indicar alguns caminhos para o desenvolvimento da música em nossas comunidades. Em nossa igreja falamos com pouca naturalidade sobre dinheiro. Mas parece que com a nova estrutura da IECLB estamos começando a perder o pudor de reconhecer a importância de falar em dinheiro. Dessa maneira, lanço o desafio para que nossas comunidades comecem a pensar em destinar uma parcela de suas finanças para a música no momento de fazer seus orçamentos.
Naturalmente, não é o dinheiro sozinho que vai fazer com que a qualidade musical em cultos e corais melhore. É a formação que o profissional tem que é garantia de qualidade. No Brasil, é muito fácil ser considerado músico profissional: Basta tocar alguns acordes no violão e dizer que é, e todos aceitam. Todavia, quem trabalha seriamente com Música sabe que ser músico não é bem assim. Uma ilustração simplória: Se aprendo a dizer cinco frases em chinês, posso até me atrever a dizer que sei falar chinês. Mas por causa dessas cinco frases dificilmente alguém aceitará que sou professor de chinês.
Há 12 anos, o Instituto de Música da EST tem feito um grande exercício de profissionalização de músicos através de projetos-piloto. Nesses, alunos em formação do 1M têm oportunidade de aprender a ser profissionais da música; e comunidades têm a oportunidade de exercitar a remuneração de músicos. Em decorrência dessa iniciativa, podemos testemunhar sobre comunidades que estruturaram ou reestruturaram sua vida musical, colaborando também com a formação de mercado de trabalho para músicos comunitários.
O objetivo maior de todo esse empenho pela música é o culto da comunidade. É a serviço da comunhão dos cristãos e da proclamação do Evangelho que deve estar todo e qualquer esforço em relação à música. A comunidade que se reúne para culto tem investido financeiramente num profissional da Palavra. Fica aqui o desafio para que invista da mesma maneira num profissional da Música. Então poderemos experimentar o que o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher afirmou: ¨O que a palavra esclarece, a música deve vivificar¨.
O autor é diretor do Instituto de Música da EST, professor de Música e regente de coral em São Leopoldo, RS
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