Dar tempo ao tempo

01/12/1999

Dar tempo ao tempo

• Sérgio Farina •

2000 é a contagem imediata de 1999. Olhem hipnoticamente os números. Não assustam? O primeiro está cheio de olhos cegos e vazio. 2000 é um número três vezes ciclópico. Já imaginaram se, de repente, abrisse os três olhos em cima de nós? Como reagiríamos? O segundo parece um serpentário enrolado, escondendo a cabeça, pronto para o bote. Estaria eu fantasiando? O que há atrás desses números? O que simbolizariam? Vejam como é fácil fantasiar em cima de números.


É em torno da numerologia, pois, que explode, a cada momento, o imaginário popular. Número, seja lá qual for, sempre é um explosivo jogado no caldeirão da imaginação. Ainda mais quando ele se arredonda como em 2000 ou quando se enrosca como em 1999.

Em outros tempos, outros eram os números, mas não era outra a provocação na fantasia das pessoas. Foi assim, creio eu, que começaram os mitos ao redor dos números, em todas as mitologias. Lá vem a Sagrada Escritura falando em 70 vezes 7 vezes, como quantidade estipulada para o perdão às pessoas. Vem o Apocalipse mistificando o número da bes ta: 666. Vem a superstição do 13, que já pulverizou o mundo no dia 13 de agosto de 1313, às 13 horas, 13 minutos e 13 segundos.

Números não faltam para o avivamento fantasioso da humanidade. Mas há outros, e bem assustadores, que alimentam não a fantasia, mas provocam o medo e o suspense. Veja alguns, apenas relativos ao Brasil: 8.000.000 de brasileiros, entre 10 e 17 anos, vivem de trabalhos realizados na rua; 4.000.000 de crianças, com menos de 3 meses, não têm registro de nascimento; 3.500.000 pessoas semivivem sem emprego; há 3.000.000 de brasileiros sem terra; 500.000 meninas se prostituem; 850 crianças morrem diariamente.

Diante dessas estatísticas estarrecedoras, você não acha que, para salvaguardar a pureza das galáxias, a terra deveria mesmo desaparecer? Com tanto menosprezo dado pelos humanos sobre problemas tão sérios, não seria melhor que o mundo sumisse de vez? 2000 seria um bom pretexto. Vamos aplaudir a possibilidade.

Mas sejamos tolerantes. Demos tempo ao tempo. Que venha o terceiro milênio, que venham o quarto, o quinto, o sexto e quantos mais forem possíveis, porque há um mediador que apara as arestas: o ser humano, aquele que determina as mudanças.

O tempo humano dispensa as cronologias oficiais. Seu ritmo transcende a esses limites temporais. O tempo humano amadurece na fé e na liberdade. Quem poderá medi-lo? Somente a esperança de cada um, voltada para as transformações interiores.

Sabendo que há tantos calendários — o islâmico, o judaico, o tibetano, o romano, o cristão, o gregoriano, etc. —, criados pela humanidade, dá para sentir que não é o ser humano que passa pelo tempo, mas é o tempo que floresce no viver humano e se deixa realizar em cada ser como um passo a mais na evolução cósmica.

O ser humano é sua eternidade, e a eternidade rejeita o tempo fragmentado em milênios, séculos, anos, meses, dias, horas. O tempo verdadeiro será sempre aquele que vai de uma transformação interior à outra. Nessa linha demarcatória que vai de uma transformação à outra, estão todas as possibilidades de vida e de conhecimento que vão coroar nossa vida na plenitude do agora.

Esqueçamos, portanto, o tiquetaquear imbecil do relógio, mesmo que ele detone, misticamente, lá pelas tantas, o minuto fatal em que vai anunciar o ano 2000. O tempo do ser humano é eterminavelmente interior e particular.


O autor é escritor e professor de Literatura Brasileira e Literatura Grega na UNISINOS, em São Leopoldo, RS


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Autor(a): Sérgio Farina
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2000 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33055
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