Carta de Martinus Torneirus do século XXI

01/08/2007


Meu caro Martim Lutero

Faz tempo que venho lendo seus escritos. Em alguns, você fala como um Pastor. Olha, achei sensacional sua explicação do ‘Cântico de Maria’, também adorei ‘Da Liberdade Cristã’. Agora, tem outros escritos em que você pega pesado! No ‘Do Cativeiro Babilônico’, você desancou os papistas de uma maneira que não é nada fraterna! Que língua afiada. Também seus segundo e terceiro escritos na Guerra dos Camponeses, pela madrugada, não são flor que se cheire. Seu forte está na explicação da Bíblia e suas aulas devem ser muito movimentadas para a alegria do estudantado. Andei lendo as anotações de seus estudantes, publicadas por um livreiro de Basiléia.

Não me apresentei. Sou cristão que mora na América do Sul, continente do qual você falou em duas oportunidades, dizendo que aqui moram ‘selvagens’. Continuamos selvagens, mas tem muita gente por aqui que procura ser fiel seguidor de Jesus e se alegra com a redescoberta do Evangelho do amor incondicional de Deus. Reaprendemos com você muitas coisas, das quais as principais são quatro, se bem o entendo. Veja, se o compreendemos bem. Fico grato, se me puder responder algumas dúvidas que tenho. Sua vasta correspondência vai ter que apresentar pelo menos uma carta dirigida ao meu continente.

Entendo a firmeza com que você acentua a centralidade de Jesus para a fé, quando afirma ‘somente Cristo ou Cristo somente’! Entendi também como lhe é importante que conheçamos esse Jesus a partir de cruz e ressurreição. Há algum tempo, mostraram-me aquele Cristo que está preso na parede externa da Igreja da cidade de Wittenberg e que lhe causava tanto terror. Fiquei com medo de Deus, pois aquele Jesus, sentado sobre o arco-íris, com espada de dois gumes na boca, mãos postas sobre os joelhos e relampejando através dos olhos, só pode botar medo nas pessoas que são, constantemente, fulminadas por ele.

Obrigado por você, com a ajuda do apóstolo Paulo e dos Evangelhos, haver verificado que Deus tem a cara do crucificado e que o ressurreto tem as marcas do crucificado. Na cruz, está estampada toda a nossa maldade e toda a raiva que temos de Deus. No fundo, não queremos saber de Deus e muito gostaríamos de ‘ser como Deus’. Por isso, acontece, sempre de novo, que nos consideramos senhores das outras pessoas e que, se necessário, passamos por sobre seus cadáveres para que nossa vontade seja feita. Foi por isso que Jesus acabou na cruz: nós, seres humanos, não conseguimos aceitar a Deus assim como ele é. Deus é um Deus que aceita as pessoas – não o pecado – incondicionalmente, assim como nós não as conseguimos aceitar. Somos incapazes de amar os nossos inimigos. Por isso, a cruz e a ressurreição nos acusam e nos mostram, sem rodeios, como somos: pecadores. Ao mesmo tempo, contudo, essa mesma cruz e ressurreição nos dizem do amor incondicional de Deus por nós. Deus não deixou de nos amar até o fim e continua a nos amar. Cruz e ressurreição aconteceram por nossa causa e em favor de nós. É,
consigo ver a Deus com outro rosto.

Nosso Deus é tão forte que tem a coragem de se mostrar na fraqueza e na humildade da cruz, mas ele também é tão forte que, na ressurreição de Jesus, condena tudo àquilo que produz morte e que leva à morte. Ele pode se colocar a meu lado nas situações mais difíceis e me dizer que não estou só. Por ter vencido a morte, me deixa ter a certeza de que a vida é maior do que a morte. Entendo que você, quando descobriu a centralidade de Jesus, mudou também a direção do seu olhar. Antes, você vivia olhando para cima, preocupado em como fazer a sua salvação, achando que, com seu esforço, conseguiria fazer Deus se agradar de você. Quando você descobriu que Deus já há muito havia descido até você, começou a ver também o mundo a sua volta como mundo amado por Deus. Só em Jesus a gente aprende a olhar para onde Deus olha: para baixo. A vocação dos cristãos não está no céu, mas no mundo amado por Deus. É aqui que podemos colocar os sinais da esperança que vem de Jesus. Estou feliz por esse amor de Deus que é de graça.

Aprendi, com você, que o Espírito Santo é quem abre os nossos olhos para podermos aceitar, confiadamente, este rosto de Deus voltado para nós. A fé que o Espírito Santo nos concede é confiança, certeza de que Deus é assim como ele se mostrou para nós, em Jesus. Por isso, é ‘somente pela fé’ que entendo o amor de Deus. Achei interessante, você afirmar que o Espírito Santo não vem a nós de maneira diferente daquela que Deus usou para vir a nós em Jesus. Na América do Sul, temos forte influência de religiões parecidas com aquelas que o apóstolo Paulo encontrou na Ásia Menor e em Corinto, na Grécia. Pensam que Deus só se revela a nós de maneira bombástica, por meio de fenômenos extraordinários e quando experimentamos o êxtase, quando ficamos fora de nós.

Para algumas dessas religiões, pecado não existe. O que existe são ‘encostos’, poderes que se apossam de nós e que nos fazem cometer atos pelos quais nós não somos responsáveis. Por isso, a função da religião é livrar a gente desses ‘encostos’ e a gente consegue se livrar deles, pagando um bom dinheiro a Deus. Nada existe de graça. Além disso, pensam que a gente consegue prosperidade se conseguir negociar com Deus. Quanto mais se pagar a Deus, tanto mais Deus será obrigado a nos devolver. Tem gente que pensa que quem tem o Espírito Santo consegue essa prosperidade. Será que, no Espírito Santo, Deus realmente age de maneira diferente daquela com que agiu em Jesus? Se eu o entendi direito, não.

O Espírito Santo também se vale da ‘fraqueza’, do esvaziamento para se comunicar conosco. Ele usa a palavra fraca de pregadores fracos, pessoas frágeis, como foram os primeiros seguidores de Jesus, para despertar a confiança, a fé, no Deus que estava presente em Jesus. Ele usa coisas frágeis para nos manter a fé: água, pão e vinho, oração, mútuo consolo de irmãos. Esses são alguns dos veículos dos quais ele se vale. Creio que foi por isso que você brigou tanto pelo Batismo, pela Santa Ceia, pela oração das pessoas, pela maioridade dos cristãos que, na comunidade, se consolam, refletindo o maior dom da segunda pessoa da Trindade: o amor. Nosso Deus tem a coragem de ser fraco porque o seu poder se aperfeiçoa na fraqueza. Grandes sinais são como o foguetório, entre nós muito usual, em situações especiais. No dia-a-dia não há foguetes e, aí, a gente precisa de água, pão e vinho, oração de consolo e de atos de amor, de diaconia.

Do que Deus fez, por nós, em Jesus e de como ele desperta a confiança nele através do Consolador, aprendemos na Bíblia. Nela, estão contidos os testemunhos dos apóstolos sobre o amor de Deus em Jesus e de como é a vida que Deus quer na comunidade, sinal do reino de Deus. Foi por isso que você tanto acentuou a centralidade da Escritura e isso o levou a outra de suas afirmações categóricas: ‘somente a escritura’. Também a Bíblia é veículo do Espírito, sinal da fraqueza de Deus. Deus se vale de um livro para chegar a nós. Deus teve a coragem de se expor a erros de leitura. Quando algo está escrito, os leitores podem ler o mesmo texto de muitas maneiras, mesmo quando alguns dizem que a Bíblia é inerrante. Para mim, foi de grande auxílio aquela sua afirmação de que a Bíblia é uma manjedoura dentro da qual Jesus está deitado. Se não o encontrar, só tenho palha. Que bom que o Espírito nos ajuda a encontrar a Jesus na Bíblia.

Meu caro Martim Lutero, minha carta está ficando longa. Tenho, porém, ainda uma questão que gostaria de lhe colocar para ver se o entendi corretamente. É a questão de sua quarta afirmação categórica: ‘somente a graça’. Aqui, na América do Sul, não se consegue nada de graça. Se paga por tudo e todos se orientam no mercado. Criam-se necessidades e, depois, se oferecem produtos. Como a comunitariedade também está desaparecendo e as pessoas ficam cada vez mais sozinhas, a forma de se oferecer produtos obedece ao critério das necessidades das pessoas. Assim, alguns cristãos pensam que igreja também deve ser igreja de necessidades e julgam que deva obedecer à lógica do ‘shopping center’. Igreja oferece produtos, as pessoas vêm, examinam o produto e o adquirem, pagando por ele a Deus ou a seus representantes. Parece-me que aqui há vários problemas. Igreja não é mais a assembléia das pessoas chamadas pelo Evangelho por causa de Cristo, pela fé, de acordo com as escrituras, atuando em amor para a salvação do mundo. Depois, como é que fica com a gratuidade? Se o entendi direito, o Evangelho anuncia que Deus nos aceita incondicionalmente e que nos dá gratuitamente. Será que vamos começar a pagar, novamente, pelo amor de Deus?

Peço que tenha paciência comigo. Corrija-me onde estiver errado e mostre-nos, onde for possível, caminhos para que possamos sair ‘ex eremo’, do deserto.

Graça e paz ao Martinus Eleutherius,
no amor de Cristo,

Martinus Torneirus

(autor: P. Dr. Martin Norberto Dreher)

Publicado no Jornal Evangélico Luterano 2007 agosto

Veja a resposta:

Carta de Martinus Eleutherius do século XVI


 


Autor(a): Martin Dreher
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Natureza do Texto: Artigo
ID: 19938
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