João 20.26-31
Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus o criador e a comunhão do Espírito Santo estejam entre nós.
Querida comunidade, estimados irmãos e estimadas irmãs em Cristo. Conforme o calendário litúrgico, estamos no tempo pascal. Que inicia no Domingo da Páscoa e encerra no Domingo de Pentecostes. Trata-se de um tempo importante para a comunidade aprofundar a fé no Cristo ressuscitado. O texto de pregação previsto para este dia tem esse objetivo. Nos fala de uma história bastante conhecida por nós, porém, de um personagem quase oculto nos relatos bíblicos. Afinal, quem é Tomé, autor de um dos jargões mais usados pelas pessoas cristãs – “Só acredito vendo!”. Quem é esse escolhido por Jesus? O que teria a nos ensinar? O que está por trás dessa história, que ainda não falamos? Pregar sobre Tomé seria “chover no molhado?” Lutero diria que não, pois, para ele, “a Bíblia é uma erva, quanto mais se manuseia, mais perfume ela exala.”. Assim também nos textos que já conhecemos, ainda existem “aromas” que podem ser descobertos.
Primeiro, conheçamos melhor esse importantíssimo personagem bíblico. Pouco se sabe sobre a sua personalidade, jeito de se portar, vestir, gênero musical e se gostava de pão de queijo e café. A primeira referência ao seu nome se encontra nos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) na lista dos apóstolos. Em Mateus 10.2, Marcos 3.18 e Lucas 6.15 o seu nome sempre está associado ao nome de Mateus, o publicano. Como se fossem uma dupla sertaneja – Tomé e Mateus. Sabemos também que ele tinha uma natureza questionadora, investigativa – por exemplo, quando Jesus fala da casa do Pai e de um lugar que irá preparar para eles. Vemos Tomé questionar Jesus: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (cf. Jo 14.5).
Já no evangelho de João, no capítulo 11.1-16 encontramos a primeira passagem que cita Tomé. O contexto é o seguinte. Ao saber da morte de Lázaro, seu grande amigo, e pelo carinho que tinha com Marta e Maria, Jesus convoca os discípulos - “Vamos outra vez para a Judeia.” Imediatamente, é reprendido - “Rabi, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e tornas para lá?” Apedrejar uma pessoa era a maneira vulgar de se aplicar a pena capital prescrita pela antiga Lei. As testemunhas punham as mãos sobre a cabeça do criminoso em sinal de que sobre ele repousava o crime, e o despojavam das suas vestes. Uma testemunha atirava a primeira pedra e depois toda a assembleia apedrejava até à morte do condenado. Voltar para Jerusalém era ir ao encontro da morte. O terror apoderou-se dos apóstolos em contraste com a serenidade do Mestre. No entanto, era impossível convencer Jesus a desistir do seu regresso à Judeia. Só havia duas soluções. Ou abandonar o Mestre, ou ir ao encontro da morte. “Vamos nós também, para morrermos com ele”. (Jo 11.16) Tomé foi o primeiro a decidir-se, estava consciente dos perigos dessa sua atitude. Mas, acima de tudo, estava convencido da responsabilidade que implicava ser um seguidor de Jesus, ir com ele até a morte.
Aqui, Tomé nos ensina algo valioso sobre a fé: Coragem, fidelidade e amor para com Jesus. Quem de nós nunca se sentiu com medo diante de alguma situação ou decisão a ser tomada? Quem de nós nunca duvidou? Quem de nós não sentiu aquele medo de viajar sozinho pela primeira vez. O medo de ir morar sozinho. Medo do julgamento das pessoas. Medo de um temporal. Medo de altura. Do escuro. Medo do governo. Da violência. Do futuro.
Situações de medo são comuns em nossa vida e elas são necessárias. Todas as pessoas nascem com medo, é uma das emoções primárias, a partir do medo se originam outros sentimentos. O medo nos torna vigilante. Cauteloso. Em alerta. É um mecanismo de autopreservação do ser humano. Se não tivéssemos medo de atravessar a rua sem olhar direito para os dois lados, certamente seríamos atropelados com mais facilidade. O medo torna as pessoas mais dispostas a enfrentar as situações que lhes são impostas.
Mas o medo também provoca situações que ameaçam a nossa estabilidade, justamente para não nos acomodarmos. O medo de ficar desempregado faz as pessoas se aperfeiçoarem mais no emprego, buscar especializações.
Assim também é a fé. É a força que de alguma forma te mantém de pé, mesmo quando tudo ao seu lado está caído. Te faz andar na luz, quando trevas te cercam. Te faz seguir confiando, quando tudo diz para você desistir. É a sanidade em meio à loucura. Para Lutero, “Fé é uma viva, e corajosa confiança na graça de Deus, tão certa do favor de Deus que arriscaria morrer mil vezes confiando nisso. Tal confiança e conhecimento da graça de Deus te faz feliz, alegre e forte em seu relacionamento com Deus e com todas as criaturas”.
Fé é atualizar-se. “A palavra desafia, não nos deixa acomodar”, diz o hino “Quando o povo se reúne”. É preciso estar buscando, o tempo todo, perguntas sobre a nossa fé. É preciso alimentá-la com a palavra de Deus que nos anima a trabalhar pela justiça, a promover a paz e espalhar o amor. Nos chama a ir com Jesus para a Judeia, mesmo correndo risco de apedrejamento. Tomé ficou mais conhecido como o símbolo da dúvida e da incredulidade, do que pela coragem e fidelidade. Ter a nossa fé comparada com Tomé, virou sinônimo de fraqueza. De ofensa. “Nossa, a sua fé é fraca como a de Tomé”. Ao convidar os discípulos, Jesus conhecia as potencialidades e defeitos de cada um. Sabia das caraterísticas fundamentais que cada um tinha para exercer a sua missão.
Para entender melhor a passagem de hoje, Jo 20.26-31, é preciso saber que há uma aparição de Jesus que é anterior a esta descrita no evangelho de hoje. Esta já é a segunda vez que Jesus aparece aos discípulos, após a ressurreição. Uma semana antes, o encontro é bastante parecido! Os discípulos estão reunidos, Jesus aparece no meio deles e saúda-os dizendo: “Paz esteja convosco!” (Jo 20.19) Mas Tomé não está ali com eles. Onde estaria Tomé? Teria ele se refugiado, escondido porque estava com medo? Ou queria um momento sozinho para refletir sobre tudo o que havia acontecido? Tomé havia passado 3 anos perto de Jesus e mesmo sabendo de sua morte e ressurreição, tudo o que aconteceu deve ter abalado muito o seu coração e perturbado a sua cabeça. Não sabemos.
Fato é que também somos assim. Existem momentos que preferimos nos recolher, silenciar, se permitir sentir a dor e o sofrimento. Se questionar. Duvidar.
Uma vez ouvi de uma psicanalista que quando nos deparamos com uma dificuldade, com um obstáculo que parece não ser possível de vencer. Devemos nos recuar. Refletir. Esperar um tempo. Buscar forças e tentar de novo. Neste caso, recuar não é sinônimo de fraqueza ou de falta de coragem, e até de fé. É justamente o contrário. Demonstra sabedoria e persistência.
Tomé não havia se convencido com os detalhes expostos por Maria Madalena, logo quando viu Jesus. Ao saber da notícia, duvidou, sim. Recuou. Retirou-se. Ao ouvir pela segunda vez que Jesus havia de fato ressuscitado, quis mais. Quis sentir a verdadeira presença do Cristo ressuscitado. Palavras não bastavam. Nesse encontro, Jesus dirige-se imediatamente a Tomé e responde, todas as suas dúvidas. Não sabemos se foi necessário Tomé tocar nas mãos e no lado de Jesus. Sabemos que tão profundas foram suas palavras, tão forte foi sua presença, que foram suficientes para Tomé. E sua resposta foi a confissão de fé: “Senhor meu, meu Deus”.
Em muitas comunidades da IECLB é celebrado o “Culto de Tomé”, uma celebração meditativa, que através de estações estimula a prática da oração individual. Da confissão. Da intercessão. Tomé também é símbolo de cuidado da fé. Não quero ser o advogado de defesa de Tomé, mas uma coisa não devemos negar. A história de Tomé não quer exclusivamente escancarar as fraquezas da fé através das dúvidas, da incredulidade e da racionalidade, da desconfiança. A fé de Tomé quer fortalecer a nossa fé. Quer nos alimentar com a esperança e a certeza do Cristo ressuscitado. Quer afirmar em nós uma fé que vai se construindo vagarosamente. Quer lembrar que mesmo que tomemos pequenas doses de infernos diariamente, a ressurreição de Jesus Cristo nos oferece grandes doses de céu. De salvação.
Quer nos encorajar a identificar as situações que causam medos, que oprimem pessoas, que retiram direitos e que estimulam a prática da violência. É preciso enfrenta-las, sempre com a fé que nos é dada gratuitamente por Deus e que nos aproxima de Jesus Cristo. A fé não nos foi dada para ficar escondida atrás de uma montanha ou guardada dentro de uma vasilha. “Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo”. (Mt 5.13.14). Ser seguidor ou seguidora de Jesus Cristo vai além de ter decorados versículos bíblicos e usar em momentos oportunos. É confessar isso com o coração aberto, como Tomé – “Senhor meu, Deus meu!” Isso não para tornar Cristo um simples ídolo. Ou criar pessoas fanáticas por religião – lembremos que pessoas cristãs são capazes de oprimir e até matar em nome de Deus e da Igreja, causando consequências imensuráveis por toda a vida. Essa confissão de fé quer também fortalecer a nossa fé. Convidar para ser tornar dinâmica, em movimento. Quer tornar a Igreja de Cristo um evento que acontece. Que não cria limites, barreiras, mas que caminha junto. Que detecta as situações sombrias e perigosas que escravizam pessoas. Em nome de Deus, a Igreja escravizou os índios durante a colonização da América Latina no século XIX. Em nome de Deus perseguem e matam homossexuais. Em nome da Palavra de Deus se justifica a submissão da mulher ao homem.
Portanto, Tomé não é apenas um símbolo de incredulidade e descrença, mas, de uma fé corajosa e fiel ao Cristo ressuscitado. Uma fé em processo lento de construção. Uma fé cristocêntrica, ou seja, centrada em Cristo – que reconhece o próximo. Por isso, tenhamos sempre em nosso coração as palavras de Lutero. “Fé e amor perfazem a natureza do cristão. A fé recebe, o amor dá; a fé leva a pessoa a Deus, o amor aproxima dos humanos. Através da fé ela aceita os benefícios de Deus, através do amor ela beneficia seus semelhantes”.
Que a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guarde os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus. Amém.