1 Coríntios 12.12-31 - 3º Domingo após Epifania - 23/01/2022

Auxílio Homilético

23/01/2022

Prédica: 1 Coríntios 12.12-31
Leituras: Neemais 8.1-3, 5-6, 8-10 e Lucas 4.14-21
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 23/01/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI

A insensatez da divisão
Reflexões sobre corpo, unidade e diversidade

1. Introdução

A unidade e a diversidade são temas constantes e fundantes no cristianismo. Esses temas transitam com frequência no discurso cristão. Muitas vezes na história do movimento cristão, porém, a abordagem não seguiu a ênfase encontrada nos ensinamentos bíblicos. Esse distanciamento dos ensinamentos aconteceu no início do cristianismo, como atesta a carta de Paulo aos coríntios e é assim também em expressões do cristianismo hoje. Ocorre uma confusão muito grande quando se cria uma perspectiva de que unidade é o mesmo que uniformidade. Ou seja, não se reconhecem a diferença e a multiplicidade dos dons e atividades no corpo de Cristo (a igreja) e na sociedade. Presenciamos atitudes de cismas, violências, exclusões em nome da unidade das igrejas. Esse tema, abordado por Paulo ao escrever aos coríntios, é também um tema que nos desafia hoje. Vivemos em um tempo em que a palavra intolerância frequenta abundantemente o cotidiano das comunidades de fé.

Diante disso, somos convidados e convidadas a refletir sobre o tema da unidade na perspectiva da perícope de 1 Coríntios 12.12-31, que nos desafia à  tolerância e à construção de caminhos de amor e de solidariedade. Esse tema, como afirmamos acima, é transversal nos ensinamentos bíblicos e perpassa as perícopes de Neemias e de Lucas. Em Neemias, após a redescoberta da Lei e o consequente choro do povo ao descobrir a distância entre a prática e as ordenanças da Lei, a ordem passa a ser a alegria e a partilha do alimento com os que não tinham nada. A redescoberta da Lei leva à celebração comunitária e ao cuidado com os mais fracos. O mesmo acontece no texto de Lucas. O início do ministério de Jesus é marcado pelo cuidado com os pobres cativos, cegos e oprimidos. O anúncio do ano aceitável do Senhor passa pelo cuidado com os mais fracos. A unidade está no reconhecimento e no cuidado com a outra pessoa. Esse é o convite que o texto de Coríntios nos faz.

2. Exegese

A carta de 1 Coríntios é marcadamente uma das mais conhecidas dentro do corpus paulino. De modo especial é no capítulo 13, o hino do amor, o lugar  onde encontramos uma resposta à problemática trabalhada em nossa perícope. O tema dessa carta é a preocupação do apóstolo com os conflitos, as divisões e incompreensões da comunidade. Por isso a estrutura da carta é um crescente. Nos capítulos 1 a 10, Paulo apresenta os problemas presentes na comunidade, que são muitos e diversos: divisões entre seguidores de Paulo, Apolo, Pedro e Cristo, conflitos que acabam envolvendo tribunais pagãos, práticas de sexualidade ligadas aos cultos da cidade, dúvidas sobre a participação em cultos e festivais solenes etc. O capítulo 15 retoma as incompreensões, agora acerca da ressurreição. Ou seja, a maior parte da carta apresenta o tema da falta de unidade que gera divisões. Não é à toa que a palavra corpo é um eixo temático dessa carta. Frente a tantas divisões, o conceito de corpo é apresentado como uma metáfora aglutinadora da comunidade.

Os capítulos de 11 a 14 trabalham o impacto disso na vida cultual da comunidade. É no espaço do culto que as divisões mais se evidenciam. Elas aparecem também ligadas aos dons. Na igreja de Corinto, os dons não se manifestam como serviço à comunidade e ao mundo: são elementos de confusão e divisão. Por isso o hino fica no centro dessa discussão. No capítulo 11, temos as orientações para a participação das mulheres no culto; no 14, a orientação para a participação dos homens. O capítulo 12 apresenta a metáfora do corpo que introduz o hino ao amor. O amor solidário e desinteressado (agapē) é apresentado por Paulo como caminho que os dons devem percorrer. Dons que não percorrem o caminho desse amor provocam divisões, conflitos e são como sinos que soam distantes, fazem muito barulho, mas são ocos por dentro e não produzem atos de serviço e solidariedade.

Deste modo, nosso texto é o eixo para compreender a articulação da participação dos diferentes da comunidade na vida de fé: homens, mulheres, sábios segundo a carne; poderosos segundo a carne; ricos segundo a carne (1Co 1.26); simples deste mundo (1Co 1.27-29); seguidores de Pedro, de Apolo de Paulo (1Co 1.12). Na perspectiva da vocação cristã, todos e todas são iguais e partes de um mesmo corpo. Nessa perspectiva é que a metáfora do corpo se inscreve.

A metáfora do corpo como estruturante na resolução dos conflitos

Ao apresentar o corpo como uma forma de entender o caminho de superação dos conflitos na comunidade de Corinto, nosso texto segue uma estrutura pedagógica.

a) Para um corpo fomos batizados (v. 12-14)

12 Pois, assim como o corpo é um e muitos membros tem,
todos os membros do corpo sendo muitos, são um corpo,

assim também é com respeito a Cristo.
13 Pois, em um só Espírito,

todos nós para um só corpo fomos batizados,
quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres.

E a todos um só Espírito nos foi dado beber.

14 Pois o corpo não é um só membro, mas muitos.

Nessa tradução, buscamos destacar a organização da argumentação. No início e no final (v. 12 e 14), a ênfase é que o corpo é constituído de muitos membros, porém é um só corpo. Ao centro, a metáfora ganha os contornos de “corpo de Cristo”. Somos um corpo em Cristo por meio do batismo. Encontramos no v. 13 a afirmação de que em um só Espírito fomos batizados. Fomos batizados “para um só corpo”. Não fomos batizados para a divisão, fomos batizados para a unidade. Uma unidade que desconhece as diferenças entre judeus e gentios, entre livres e escravos. Aqui, podemos ligar essa formulação aos problemas da comunidade. No conflito descrito no início da carta de Paulo, destacamos que as pessoas se identificam a partir do seguimento de lideranças. Uns são de Pedro, outros de Apolo, outros de Paulo, outros de Cristo (1.12). Há sábios, ricos e poderosos segundo a carne e os pobres e desprovidos de recursos (1.26-29).

Nessa introdução de nossa perícope, o caminho de superação dos conflitos é a vocação batismal que ignora as diferenças deste mundo e vocaciona para a formação de um só corpo. Fomos batizados para um único corpo, que é o de Cristo, e nele não há divisão, há multiplicidade de funções.

b) A ironia dos membros inconformados com seu papel (v. 15-20)

Nesses versículos, o apóstolo utiliza o recurso da ironia, um importante recurso pedagógico da época. Por meio desse recurso, mostra-se a insensatez de algumas posturas. Mesmo que o pé, por não ser mão, disser que não é do corpo, ainda assim ele é corpo. Ou seja, os conflitos e as divisões ganham uma conotação quase hilária. Um pé que é parte do corpo pode ter uma ideia de si diferente. Mas ele é corpo e essa ideia de si é ridícula. É fala muito forte do apóstolo.

A partir dessa fala dura, Paulo argumenta sobre as funcionalidades da diversidade. Se todos fossem só olho, o corpo seria surdo. Se todos fossem só ouvidos, não sentiriam cheiro. Essas funcionalidades ganham mais importância quando Paulo afirma que Deus colocou os membros, cada um deles, no corpo conforme Ele quis (v. 18). Ou seja, não é o olho que decidiu ser olho, não é o ouvido que decidiu ser ouvido. As funcionalidades a partir da diversidade são definidas por Deus. Não cabe ao pé decidir que, por não ser olho, ele não quer mais ser do corpo. Ele continuará sendo corpo e não existirá fora do dele. Esse bloco termina com a afirmação que há muitos membros e um só corpo (v. 20).

c) A ironia dos membros que depreciam outros membros (v. 21-26)

Se no bloco anterior Paulo questiona a imagem que cada membro do corpo tem de si, neste bloco ele questiona a imagem que as partes do corpo fazem das outras partes. Ou seja, aqui ele usa a metáfora para mostrar, uma vez mais de forma irônica, que seria ridículo a cabeça dizer ao pé que ele é desnecessário. Seguindo a metáfora do corpo, ele lembra que os membros mais frágeis e os que são mais indecorosos acabam sendo revestidos de mais honra. Ou seja, só existe corpo com a multiplicidade de membros e, ao revestir de honra os frágeis e desonrados, o grande objetivo do corpo é a unidade. Isso é confirmado no v. 25: a fim de que não haja cisma no corpo, mas para que os membros se preocupem uns com os outros. Optamos em manter a palavra cisma (que é a palavra grega no texto) para enfatizar a preocupação: um corpo com divisões deixa de existir. O cisma provoca o fim do corpo e de sua funcionalidade.

d) Da metáfora para a realidade (v. 27-31a)

Aqui a metáfora dá lugar à realidade. O conflito está entre os dons que são reconhecidos como mais importantes: apóstolos, profetas, mestres, fazedores de milagres, cura, ajuda, liderança, línguas. Temos conflitos envolvendo a condução da comunidade, a sabedoria e os dons extraordinários. É um retrato da religiosidade em geral deste mundo do qual a igreja de Corinto faz parte.

Há divisões entre lideranças caracterizadas por essas ênfases nos dons. Por isso esta é a conclusão dessa discussão: é inadmissível (de acordo com a metáfora) que em um corpo os membros se dividam. Uns promoveram a divisão por não terem a honra que gostariam de ter. Outros desprezaram os membros que não pertencem ao status de honra deles, especialmente por apresentarem dons semelhantes ou considerados superiores a esses reconhecidos na sociedade e na comunidade como poderosos, ricos, sábios, puros na lei, cheios do Espírito etc.

O capítulo 13 será uma resposta para essa situação impensável de divisões. Os dons caminham pela estrada do amor solidário e desinteressado (agapē). Dons que não promovam o serviço em função do outro não estão no caminho. São fontes de divisão e um atentado ao corpo e à missão.

e) Um olhar no conjunto da perícope

O apóstolo, ao se defrontar com uma comunidade dividida por discordâncias sobre os papéis, os dons e a própria pertença ao corpo, lança mão de uma metáfora para mostrar, de forma irônica, a loucura desses que promovem a divisão. Do mesmo modo que é impensável a cabeça desdenhar do pé ou o pé dizer que não é corpo por não ser cabeça, assim o mesmo acontece em uma comunidade que não reconhece a necessidade do cuidado mútuo e da igualdade entre os diversos membros do corpo. É impensável que isso aconteça. Por isso o caminho do amor solidário será o construtor de unidade e o critério para discernimento dos dons e sua importância na promoção do corpo como um todo.

3. Meditação

Se há um tema que necessita ser revisitado pelos cristãos e cristãs de nosso tempo é o tema da unidade. A sociedade em que vivemos passa por um período marcado pelas divisões. Não apenas divisões por pessoas que se aglutinam em torno de temas que lhes são caros. Vivemos no tempo em que o critério da divisão é o indivíduo. Tudo que é importante para o indivíduo deve ser preservado, tudo que é contrário deve ser expurgado. É lógico que, seguindo essa prioridade do indivíduo, os grupos que devem ser preservados e os grupos que devem ser expurgados mudam rapidamente. Basta o  interesse individual ser contrariado para o aliado tornar-se inimigo. O que chama a atenção nessa lógica é que em grande parte o discurso de ódio e de divisão é alimentado também pelas pessoas cristãs. Esse discurso não apenas promove a divisão e o ódio na sociedade, mas também nas igrejas. Nessa perspectiva, revisitar o texto paulino é um desafio para os tempos atuais.

O cristianismo tem no batismo o seu rito de pertença. Ele marca o ingresso da família no corpo formado por irmãos e irmãs na fé. Nossa perícope vai aprofundar esse conceito, afirmando que somos batizados e batizadas “para um corpo”, isto é, na perspectiva da carta aos coríntios, uma fé que desafia à unidade. Somos batizados para um corpo (v. 13). A violência praticada pelos membros contra outros membros é abordada a partir da metáfora do corpo, descrevendo essa prática como uma insensatez. Dois aspectos são enfatizados pelo apóstolo. O primeiro é que mesmo que os membros do corpo digam que não fazem parte do corpo por não ser a parte do corpo que gostariam de ser, ainda assim eles são parte e dependem do todo. O segundo aspecto é que o desprezo de partes do corpo por outras partes é uma insensatez, pois só há corpo mediante a diversidade de partes e, à luz do corpo, damos mais honra e cuidado às partes mais desprovidas de honra. Da mesma forma que os membros do corpo não podem desprezar os demais membros devido ao risco do desaparecimento do próprio corpo, os participantes da comunidade cristã não podem provocar cismas, uma vez que isso contraria a vocação do batismo e a constituição, eficácia e existência do corpo.

Como uma grande conclusão nessa argumentação do apóstolo, a diversidade dos dons e das pessoas é dádiva de Deus e é o próprio Deus que distribui os dons, não é uma opção das partes do corpo. Questionar seu papel no corpo é, em última instância, questionar Deus. Desprezar outras partes do corpo é, do mesmo modo, desprezar Deus. Uma forte argumentação do apóstolo!

Com essa perspectiva, em um mundo marcado por divisões, violência e discursos e práticas de ódio, cada pessoa cristã deveria, como membro do corpo de Cristo, ser promotora do amor solidário, em que os dons, a liderança e o conhecimento deveriam ser colocados a serviço da unidade, do cuidado do outro e da outra, em especial dos mais frágeis.

4. Imagens para a prédica

No tema das igrejas e dos discursos de ódio e de divisão, temos, infelizmente, um enorme número de imagens para aplicar em nossas prédicas e na construção litúrgica. A sugestão aqui é consultar na internet o tema “igreja e violência” e selecionar o item notícias. Selecionar notícias locais em que a igreja produziu divisão e não unidade. Isso pode ilustrar a necessidade de revisitar o tema.

Sugere-se igualmente escolher notícias em que as igrejas foram portadoras de ações que promoveram a superação da violência e promoveram também a unidade. Assim podemos também apresentar sinais de esperança.

5. Subsídios litúrgicos

Oração pela unidade

Senhor Jesus,
É teu desejo que sejamos um, como tu és com o Pai,
E por isso esse também é o nosso desejo.
A despeito de todas as forças contrárias,
De todas as ameaças de dispersão,
De toda pressão e repressão desintegradora…
Apesar de tanta maldade,
De tanto egoísmo,
De tanta intolerância…
Nós nos dispomos a fazer a tua vontade
E, no que depender de nós, nos comprometemos
a construir a paz para toda família humana.
Cumpre em nós a tua palavra, ó Cristo,
de tal maneira que o mundo creia que tu nos enviaste
em missão de paz e em comunhão fraterna.
Amém.

Rev. Luiz Carlos Ramos
Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2021.

Bibliografia

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em Busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
ELLIOTT, Neil. Libertando Paulo. A justiça de Deus e a política do Apóstolo. São Paulo: Paulus, 1998.


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Autor(a): Paulo Roberto Garcia
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Natal
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 12 / Versículo Final: 31
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2021 / Volume: 46
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 68571
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